Periódico galego de informaçom crítica

Acho necessário um exercício de descolonização”

por
charo lo­pes

No passado dia 20 de dezembro Ardora (s)Ediçons Anarquistas apresentava na Gentalha do Pichel o último livro de Carlos Taibo, ‘Anarquistas de ultramar. Anarquismo, indigenismo, descolonização’. Aproveitamos o tempo antes da palestra para falarmos, na biblioteca do centro social compostelano, sobre velhos e novos colonialismos, sobre umha possível leitura indigenista das realidades galegas e sobre vias e experiências para a vida fora do capitalismo.

Qual está a ser a re­ce­ção do li­vro den­tro do mo­vi­mento li­ber­tá­rio?
Até o de agora foi mui po­bre. Mas  acon­tece que o li­vro apa­re­ceu em se­tem­bro e qual­quer juízo é pre­ci­pi­tado, se ca­lhar nuns me­ses a mi­nha im­pres­são é di­fe­rente. A dis­tri­bui­ção co­mer­cial foi muito dé­bil, mas su­po­nho que por ra­zoes bu­ro­crá­ti­cas. Contudo eu te­nho a im­pres­são de que no mundo anar­quista este li­vro se per­cebe como um li­vro eru­dito, que se in­te­ressa por ma­té­rias de algo que acon­te­ceu há mais de cem anos e em es­pa­ços ge­o­grá­fi­cos mui afas­ta­dos, o que do meu ponto de vista é um erro.
Porém, fora das fron­tei­ras do es­tado es­pa­nhol a aco­lhida foi a me­lhor de qual­quer dos meus li­vros. A pri­meira crí­tica apa­re­ceu em México, já fo­ram pu­bli­ca­das edi­ções em México e Chile, apa­re­ceu uma tra­du­ção fran­cesa e vai sair mais uma ita­li­ana, de tal ma­neira que pa­rece que há uma dis­fun­ção evi­dente en­tre o que acon­tece den­tro das fron­tei­ras do Estado e fora delas.

Como é es­cre­ver de co­lo­ni­a­lismo sendo ho­mem, branco, eu­ro­peu…?
É pro­ble­má­tico. Eu pro­curo ope­rar como um su­jeito neu­tro, que ana­lisa algo que es­tima que tem mui­tas vir­tu­des e que tem tam­bém fa­lên­cias. Mas ad­mito que a mi­nha po­si­ção tem de ser com­plexa e sus­peito tam­bém que a ma­neira de su­pe­rar essa pro­blema é pre­ci­sa­mente mar­gi­na­li­zar es­sas di­men­sões e pro­cu­rar uma vi­são di­fe­rente, que pode ser pa­ra­do­xal­mente ar­ti­fi­cial tam­bém. Contudo, não posso pre­su­mir de ter re­sol­vido os pro­ble­mas correspondentes.

Por que achaste es­pe­ci­al­mente in­te­res­sante a etapa de 1870–1930?
Porque é a etapa de ex­pan­são do anar­quismo nos paí­ses do sul. É ver­dade que po­de­ría­mos dis­cu­tir es­sas da­tas, por­que an­tes de 1870 há ma­ni­fes­ta­ções do so­ci­a­lismo utó­pico, do pro­to­a­nar­quismo em de­ter­mi­na­dos paí­ses do sul… e po­de­ría­mos dis­cu­tir tam­bém a data de 1930, mas de­ve­mos lem­brar que a ex­pan­são do anar­quismo, por exem­plo, no con­ti­nente asiá­tico é bas­tante pos­te­rior à que se ve­ri­fi­cou em América. De tal ma­neira que é uma etapa am­pla de mais mas que pre­tende aco­lher re­a­li­da­des distintas. 

charo lo­pes

Introduzes as ex­pe­ri­ên­cias de Rojava e Chiapas. Pode-se fa­lar de co­lo­ni­a­lismo na etapa ana­li­sada como na atu­a­li­dade?
Bom, acho que sim, que esse ho­mem oci­den­tal, branco e he­te­ros­se­xual que men­ci­o­na­vas leva na ca­beça to­das as pe­ga­das de mui­tos dis­cur­sos no­jen­tos, en­tre eles o co­lo­nial. E não es­tou a fa­lar ne­ces­sa­ri­a­mente do ‘ho­mem da rua’, es­tou a fa­lar de nós mes­mos. De tal forma que acho ne­ces­sá­rio as­su­mir um exer­cí­cio de de­fi­ni­tiva des­co­lo­ni­za­ção do anar­quismo, do fe­mi­nismo, e de tan­tas ou­tras mer­ca­do­rias ide­o­ló­gi­cas que sur­gi­ram no mundo oci­den­tal. Por isso ad­virto que o meu li­vro não é um li­vro de nos­tal­gia his­tó­rica que pre­tende res­ga­tar algo que acon­te­ceu há cem anos. Penso que é um li­vro de atu­a­li­dade, na me­dida que co­loca no foco a ne­ces­si­dade de re­pen­sar mui­tas coi­sas que pa­rece que fo­ram esquecidas. 

Que pa­pel po­dem jo­gar os paí­ses do norte no pro­cesso de­co­lo­ni­za­dor ou de se­gunda des­co­lo­ni­za­çom?
Quase pre­firo não fa­lar em ter­mos de paí­ses se­não em ter­mos de mo­vi­men­tos so­ci­ais, de agen­tes, de ati­vis­tas, de mi­li­tan­tes. Acho im­por­tante es­ta­be­le­cer um ven­ce­lho di­fe­rente com to­das es­sas co­mu­ni­da­des in­dí­ge­nas que no seu caso de­sen­vol­ve­ram prá­ti­cas li­ber­tá­rias, ou mesmo que não as de­sen­vol­ve­ram. Esse é o pro­jeto que no li­vro fica re­tra­tado da mão do con­ceito de anar­cain­di­ge­nismo, que é uma ten­ta­tiva de li­gar três tra­di­ções: a in­dí­gena, a anar­quista e a fe­mi­nista ao abrigo de um pro­jeto res­pei­toso dos di­rei­tos des­sas três tra­di­ções e ao tempo en­ca­mi­nhado a unir com muita cla­ri­dade o que sig­ni­fi­cam, a re­co­nhe­cer o di­reito de au­to­de­ter­mi­na­ção em to­dos os âm­bi­tos às co­mu­ni­da­des in­dí­ge­nas, a apren­der, da mão de um pro­cesso de de­co­lo­ni­za­ção o que sig­ni­fi­cam mui­tos dos ter­mos de re­la­ção com o meio na­tu­ral que com toda evi­dên­cia nós não te­mos na ca­beça e que são mais efi­ci­en­tes e mais res­pei­to­sos com esse meio. 

Os ci­ga­nos, por exem­plo, no con­junto da Europa, são cu­ri­o­sa­mente um exem­plo de povo não ori­gi­ná­rio mas que nas suas prá­ti­cas são cla­ra­mente hos­tis a ins­ti­tui­ções como o Estado e mui­tas ve­zes re­ve­lam o pulo de fór­mu­las autogestionárias” 

Podemos fa­lar de co­lo­ni­a­lismo em ter­ri­tó­rios eu­ro­peus?
Bom, a dis­cus­são que propôs está pró­xima, acho, a ou­tra um bo­cado di­fe­rente: a de se exis­tem na Europa po­vos ori­gi­ná­rios. É uma dis­cus­são muito com­plexa, mas em qual­quer caso, acho há mui­tos ele­men­tos que con­vi­dam a con­cluir que esse tipo de co­mu­ni­da­des in­dí­ge­nas de prá­ti­cas li­ber­tá­rias têm pre­sença em Europa.
Têm pre­sença his­tó­rica atra­vés dos con­ce­lhos aber­tos me­di­e­vais, têm pre­sença atra­vés do que sig­ni­fica na Rússia o pro­jeto do anarco-co­mu­nismo, que é um pro­jeto de de­fesa da co­muna ru­ral tra­di­ci­o­nal e têm pre­sença atra­vés do pró­prio anar­quismo es­pa­nhol. Digo no li­vro que mui­tos anar­quis­tas an­da­lu­zes do sé­culo XIX não eram anar­quis­tas por te­rem lido Bakunin ou Kropotkin, se­não em vir­tude de uma cons­ci­ên­cia his­tó­rica de longo aço que acar­re­tava um ven­ce­lho com o que acon­te­cia ao abrigo dos co­muns na Idade Meia. Mas acho que to­dos es­tes ele­men­tos con­fi­gu­ram, por exem­plo, a ne­ces­si­dade de pres­tar aten­ção a de­ter­mi­na­das co­mu­ni­da­des em apa­rên­cia muito afas­ta­das do mundo anar­quista e que bem têm a ver. Os ci­ga­nos, por exem­plo, no con­junto da Europa, são cu­ri­o­sa­mente um exem­plo de povo não ori­gi­ná­rio mas que nas suas prá­ti­cas são cla­ra­mente hos­tis a ins­ti­tui­ções como o Estado e mui­tas ve­zes re­ve­lam o pulo de fór­mu­las au­to­ges­ti­o­ná­rias, bem é ver­dade que com­bi­na­das com ou­tras que nada têm a ver com o ideá­rio libertário. 

A par­tir do con­ceito de anar­coin­di­ge­nismo, achas que po­de­ria dar-se em es­pa­ços onde nao existe exa­ta­mente povo in­dí­gena mas se­guem a dar-se prá­ti­cas li­ber­tá­rias? E penso, por exem­plo, na Galiza.
Sim, acho que é le­gi­timo fa­zer isto. Se ca­lhar ha­ve­ria que per­fi­lar a ter­mi­no­lo­gia mas se­ria uma ques­tão for­mal. De qual­quer modo, há um pro­blema e é que o con­ceito de co­lo­ni­za­ção em re­la­ção com Galiza nor­mal­mente re­mete a re­a­li­da­des muito mais pro­sai­cas e re­cen­tes: a co­lo­ni­za­ção do Estado es­pa­nhol, a par­ti­lha de­si­gual… De tal forma que sus­peito es­tou a fa­lar de coi­sas di­fe­ren­tes mas que se­ria per­fei­ta­mente le­gí­timo pen­sar numa even­tual adap­ta­ção do con­ceito de anar­coin­di­ge­nismo à re­a­li­dade ga­lega, ou a de­ter­mi­na­das re­a­li­da­des galegas.

charo lo­pes

Com o exem­plo de al­guns dos anar­quis­mos atu­an­tes na Galiza, po­de­ría­mos fa­lar da ne­ces­si­dade de de­co­lo­nizá-los? No sen­tido de te­rem atu­ado em mui­tos ca­sos de cos­tas à ques­tão da di­fe­rença his­tó­rica e cul­tu­ral apli­cando prá­ti­cas do marco es­ta­tal.
É ver­dade… Certamente acho que este é um de­bate de atu­a­li­dade. Em efeito, mui­tos dos anar­quis­tas es­pa­nhóis de há cem anos e de agora pa­re­cem vi­ver no mundo do na­ci­o­na­lismo ba­nal ou tri­vial de Estado, pa­rece que acei­tam o na­ci­o­na­lismo de Estado con­fi­gura uma re­a­li­dade na­tu­ral que se bem não é apoi­ada de ma­neira ma­ni­festa, não me­rece tam­pouco uma re­jei­ção ex­trema.
Admito que este é um ar­gu­mento que tem um peso re­la­tivo, que é o feito de a prin­ci­pal or­ga­ni­za­ção, a Confederação Nacional do Trabalho, uti­lize um termo tão de­li­cado como este, o de na­ci­o­nal. Haverá quem dirá que foi uma im­po­si­ção no seu mo­mento das au­to­ri­da­des, mas de facto o termo fi­cou e não foi mo­di­fi­cado. Haveria que per­gun­tar-se qual na­ção é essa por­tanto. Portanto eu acho que isso que apon­tas é ver­dade, e não ape­nas isso, a re­la­ção de mui­tos anar­quis­tas com re­a­li­da­des na­tu­rais que re­me­tem à he­rança dos con­ce­lhos me­di­e­vais é fraca, ou para me­lhor di­zer é forte no âm­bito teó­rico, de re­co­nhe­ci­mento como an­te­ce­dente his­tó­rico in­te­res­sante mas pa­rece que nunca se per­ce­bem como re­a­li­da­des pró­prias, na­tu­rais, ati­vas, que me­re­cem ser re­cu­pe­ra­das.
Isto acon­tece no caso do anar­quismo ga­lego de ma­neira evi­dente, se ca­lhar nem tanto agora por­que há cor­ren­tes di­fe­ren­tes, e acon­tece tam­bém no caso do anar­quismo basco. Mas não é a mesma evi­dên­cia no caso do anar­quismo ca­talã, onde há uma cons­ci­ên­cia clara do que sig­ni­fi­cam es­ses co­muns no pas­sado e da pos­si­bi­li­dade de ar­te­lhar um pro­jeto pró­prio e singularizado.

Em efeito, mui­tos dos anar­quis­tas es­pa­nhóis de há cem anos e de agora pa­re­cem vi­ver no mundo do na­ci­o­na­lismo ba­nal ou tri­vial de Estado”

Apontas Chiapas e Rojava como re­fe­ren­tes para a cons­tru­ção de al­ter­na­ti­vas ao ca­pi­ta­lismo, que tem como única saída para o co­lapso o eco­fas­cismo. Podes ex­pli­car este úl­timo con­ceito?
Acho que a única res­posta ativa no mundo ca­pi­ta­lista pe­rante a crise e o risco do co­lapso é o que al­guns au­to­res cha­mam eco­fas­cismo. Sei que é um termo mo­de­ra­da­mente sur­pre­en­dente, por­que es­ta­mos afei­tos a con­cluir que o pre­fixo eco- acom­pa­nha sem­pre re­a­li­da­des sau­dá­veis ou no mí­nimo re­a­li­da­des neu­tras. Lembro sem­pre que no par­tido alemã na­ci­o­nal-so­ci­a­lista, o par­tido de Hitler, ha­via um po­de­roso grupo de pres­são de ca­rá­ter eco­lo­gista que de­fen­dia o re­gresso ao mundo ru­ral, que re­jei­tava as di­men­sões ne­ga­ti­vas da in­dus­tri­a­li­za­ção e a ur­ba­ni­za­ção e que pos­tu­lava o de­sen­vol­vi­mento de prá­ti­cas ve­ge­ta­ri­a­nas. Isto todo, na­tu­ral­mente, ao ser­viço de uma raça eleita que es­tava em con­di­ções de im­por re­gras de jogo de obri­gada sa­tis­fa­ção. No mi­olo do pro­jeto eco­fas­cista há uma dis­cus­são de­mo­grá­fica: a ideia de que no pla­neta so­bram pes­soas. De tal ma­neira que se trata de mar­gi­na­li­zar a quem so­bra, isto já o fa­zem, é a ver­são mais su­ave, e na ver­são mais reja e forte de ex­ter­mi­nar a quem so­bram, que é o mi­olo, do meu ponto de vista, do pro­jeto eco-fas­cista. Isto é um pro­jeto que está em pro­cesso de ela­bo­ra­ção e de de­sen­vol­vi­mento mas con­ve­nha­mos em que é uma res­posta en­ge­nhosa à crise eco­ló­gica, sendo que esta as­sume um per­fil bem di­fe­rente se no pla­neta há 7500 mi­lhões de se­res hu­ma­nos ou há 800 mi­lhões de se­res hu­ma­nos. Não es­tou a di­zer que a crise se re­solva ma­gi­ca­mente mas os pro­ble­mas com toda evi­dên­cia se­riam sen­si­vel­mente menores.

Achas que pudo ser a re­la­ção en­tre o anar­quismo com as prá­ti­cas li­ber­tá­rias das co­mu­ni­da­des in­dí­ge­nas o que des­ta­cou as lu­tas de em­po­de­ra­mento das mu­lhe­res des­sas co­mu­ni­da­des?
Não… di­ria que não, por­que de facto acho que a mai­o­ria des­tas co­mu­ni­da­des não são um mo­delo no âm­bito do dis­curso das prá­ti­cas fe­mi­nis­tas. É ver­dade que há cir­cuns­tân­cias muito di­fe­ren­tes. Há co­mu­ni­da­des ge­nui­na­mente ma­tri­ar­cais e há co­mu­ni­da­des equi­li­bra­das na re­la­ção en­tre ho­mens e mu­lhe­res. Mas re­co­nhe­ça­mos que na mai­o­ria dos ca­sos eram co­mu­ni­da­des pa­tri­ar­cais. Provavelmente eram, e são, de um pa­tri­ar­cado re­bai­xado em com­pa­ra­ção do que é ha­bi­tual en­tre nós. Parece-me que em de­ter­mi­nada al­tura cito Rita Segato, quem afirma que no mundo pré-co­lom­bi­ano, em América, ha­via um pa­tri­ar­cado de baixa in­ten­si­dade. Existia, mas não com o re­levo que tem hoje en­tre nós. Mas sus­peito que não é este o ca­mi­nho que ex­plica o pulo de um dis­curso anar­co­fe­mi­nista, se­não an­tes bem uma cons­ci­ên­cia ób­via do que acon­tece nas so­ci­e­da­des do norte.
Quando no caso es­pa­nhol em 1936 é fun­dada Mulheres Livres, o mi­olo dessa for­ma­ção é a von­tade de de­nun­ciar o ca­rá­ter pa­tri­ar­cal da so­ci­e­dade es­pa­nhola e tam­bém de su­bli­nhar o ca­rá­ter pa­tri­ar­cal que im­pregna a vida de mui­tas das or­ga­ni­za­ções li­ber­tá­rias. Mas re­sulta di­fí­cil in­ter­pre­tar que esse dis­curso anar­ca­fe­mi­nista tem a sua ori­gem numa con­si­de­ra­ção do que acon­tece nos po­vos ori­gi­ná­rios ou nas co­mu­ni­da­des in­dí­ge­nas. De facto ve­rias que o pró­prio con­ceito de anar­coin­di­ge­nismo vem de América do norte, das co­mu­ni­da­des ín­dias dos EUA e de Canadá, nas quais os pro­ble­mas de mar­gi­na­li­za­ção das mu­lhe­res, na mai­o­ria dos ca­sos, são muito evi­den­tes. Digo na mai­o­ria dos ca­sos por­que há ex­ce­ções, como por exem­plo, se não erro, a dos iro­que­ses, que são uma so­ci­e­dade equi­li­brada que in­te­res­sou por certo e muito nos úl­ti­mos anos da sua vida a Marx. 

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