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As obreiras da Torre de Babel

por
pi­e­ter bruegel

É ine­vi­tá­vel que a nossa vi­são so­bre a di­ver­si­dade lin­guís­tica es­teja atra­ves­sada polo re­lato da Torre de Babel. A ideia da mul­ti­pli­ci­dade de lín­guas como cas­tigo di­vino leva sé­cu­los en­tre nós, a con­for­mar um ima­gi­ná­rio em que é pre­ciso des­pren­der-se dos di­a­le­tos que pro­vo­cam con­fu­são para ache­garmo-nos ao en­ten­di­mento, à lín­gua co­mum e universal. 

Ainda que se re­pita em nu­me­ro­sas cul­tu­ras, essa não é, po­rém, a única ex­pli­ca­ção mi­to­ló­gica para a glo­to­di­ver­si­dade. Na his­tó­ria que con­tam al­guns po­vos abo­rí­ge­nes do norte da Austrália, Waramurunggundji criou os se­res hu­ma­nos, ofe­re­cendo-lhes a cada um de­les um ca­cho de terra e uma lín­gua para jo­ga­rem com ela.

É evi­dente por que esta his­tó­ria é aplau­dida po­los na­ci­o­na­lis­mos lin­guís­ti­cos. A iden­ti­fi­ca­ção duma fala com um povo e com um ter­ri­tó­rio é uma sim­pli­fi­ca­ção que fa­vo­rece com força a le­al­dade ao idi­oma. Irinyili, abo­rí­gene wang­kan­guru, ex­pli­cava como não po­dia aban­do­nar a sua lín­gua por­que lhe fora dada ao seu povo, “e não é algo que se cambie”.

Mas não de­ve­mos cair no mito do es­ta­tismo para subs­ti­tuir o do cas­tigo di­vino. Sabemos bem que as lín­guas mu­dam, que há fa­lan­tes de ga­lego que nunca saí­ram da Argentina e que só três mu­lhe­res (se se­guem vi­vas) sa­bem como co­lo­car as na­sais pré-oclu­si­vas da lín­gua wang­kan­guru. A pre­ser­va­ção ina­mo­ví­vel dum idi­oma é im­pos­sí­vel, e isso é algo que não pode es­que­cer ne­nhuma po­lí­tica lin­guís­tica útil.

Como qual­quer pro­du­ção cul­tu­ral hu­mana, os idi­o­mas es­tão su­jei­tos aos ava­ta­res da so­ci­e­dade. A lín­gua em que se es­creve este ar­tigo foi for­mada por sé­cu­los de mi­gra­ções, co­mér­cio, co­lo­ni­a­lismo, in­ter­câm­bio cul­tu­ral e guerra. O pu­rismo mais es­trito na sua cor­re­ção não po­de­ria evi­tar a en­trada de es­tran­gei­ris­mos, hi­pe­ren­xe­bris­mos ou de­cal­ques lin­guís­ti­cos. As lín­guas são pro­duto da mes­ti­ça­gem, igual que o são os se­res humanos. 

A eco­lin­guís­tica per­mite-nos ver os idi­o­mas no con­texto das suas re­la­ções; isto é, das re­la­ções das pes­soas que os uti­li­zam. Se for­mos mais alá, per­mite es­ten­der essa pers­pe­tiva a qual­quer ato de fala. Nem to­das as fa­lan­tes uti­li­zam de igual jeito uma lín­gua, mas tam­pouco o fai a mesma fa­lante em mo­men­tos ou con­tex­tos dis­tin­tos. Todos es­ses usos po­dem ser con­si­de­ra­dos “fa­las” di­fe­ren­tes, e to­das elas são igual de va­li­o­sas e defendíveis. 

A de­fesa da glo­to­di­ver­si­dade não deve, pois, fi­car em ar­cá­dias idi­o­má­ti­cas ou na luita con­tra a de­tur­pa­ção. Temos di­reito a uma rei­vin­di­ca­ção lin­guís­tica va­lente, que desde a(s) língua(s) menorizada(s) re­co­nheça a va­ri­e­dade como ri­queza, em pé de igual­dade. Que não trace hi­e­rar­quias en­tre o ko­ru­nho e o ba­ra­lhete, en­tre o can­to­nês da imi­gra­ção chi­nesa e o cas­te­lhano da Galiza, en­tre o ga­lego da se­nhora Aurora de São Ciprião e o do seu neto Jonathan, que sai de mar­cha por Sánci

Isto não quer di­zer que po­da­mos ob­viar as dis­tin­tas si­tu­a­ções das lín­guas. O di­fe­rente não deve ser tra­tado igual, e nunca de­ve­mos con­fun­dir uma mi­no­ria lin­guís­tica com o idi­oma do po­der. Mas cum­pre sa­ber que mesmo no idi­oma do po­der há fa­lan­tes as­so­va­lha­das, e que tam­bém exis­tem as re­la­ções hi­e­rár­qui­cas nas lín­guas me­no­ri­za­das. De to­das as que são me­nos, na lín­gua que for, é do que vai que­rer fa­lar esta sec­ção que po­de­rás ler pe­ri­o­di­ca­mente no Novas da Galiza.

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