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Portada da revista 'Sight and Sound' com um fotograma do filme 'Jeanne Dielman' na sua capa, e brochura informativa de umha projeçom de 'Jeanne Dielman'.

O cânone, umha diretora belga e um filme do Senegal

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Portada da revista 'Sight and Sound' com um fotograma do filme 'Jeanne Dielman' na sua capa, e brochura informativa de umha projeçom de 'Jeanne Dielman'.

Desde o ano 1952 a re­vista bri­tâ­nica Sight & Sound ela­bora o câ­none ofi­ci­oso da his­tó­ria do ci­nema. Mediante um inqué­rito-vo­ta­ção a di­fe­ren­tes agen­tes do mundo do ci­nema, se­le­ci­o­nando dez fil­mes por pes­soa, são pu­bli­ca­dos cada dez anos no mês de se­tem­bro os re­sul­ta­dos. Há qua­tro me­ses este pro­ce­di­mento pro­mo­veu o pri­meiro posto do filme da belga Chantal Akerman Jeanne Dielman, 23, quai du com­merce, 1080 Bruxelles, de 1975. Tão só ou­tros três fil­mes en­ca­be­ça­ram a lista an­tes: O mundo a seus pés (Citizen Kane), Ladrões de bi­ci­cle­tas e Vertigo. Este facto, apa­ren­te­mente tão inó­cuo, vem pro­vo­cando uma sé­rie de iro­sas reações.

O ci­ne­asta norte-ame­ri­cano Paul Schrader re­co­lhia na sua vo­ta­ção a ma­neira como des­fru­tava com a “na­tu­reza mu­tante das lis­tas”, fa­lando de um “exer­cí­cio crí­tico vi­go­ri­zante” que nos força a “re­a­va­liar os fil­mes e a sua im­por­tân­cia pes­soal”. Recentemente, pu­bli­cou nas suas re­des so­ci­ais um texto es­can­da­li­zado com a vi­tó­ria do filme, que, se­gundo ele, será lem­brado a par­tir deste mo­mento como “um marco da re­a­va­li­a­ção dis­tor­cida da cor­re­ção política”.

Além do ab­surdo de dar um va­lor ab­so­luto e ob­je­tivo a uma mera lista de “os me­lho­res fil­mes de to­dos os tem­pos”, Schrader oculta que a as­cen­são de Jeanne Dielman não sai do nada. Na vo­ta­ção de 2002 já ti­nha ocu­pado o posto 73 e em 2012 as­cen­dera à 37ª po­si­ção. Ainda mais, o ou­trora re­fe­rente de uma certa forma de ci­ne­fi­lia na te­le­vi­são pú­blica es­ta­tal, José Luis Garci, de­di­cou-lhe uma edi­ção es­pe­cial do seu pod­cast Cowboys de Medianoche à lista em com­pa­nhia de Luis Herrero, Inocencio Arias e Luis Alberto de Cuenca. O úl­timo, cinco mi­nu­tos de­pois de ma­ni­fes­tar que nunca es­cu­tara fa­lar do filme, es­pe­cula que foi posto aí pela re­vista de ma­neira in­te­res­sada por­que à re­vista lhe in­te­res­sava um filme que trans­mi­tisse “uma men­sa­gem de­ter­mi­nada: o hi­per­fe­mi­nismo (sic)”. Por con­tra, se­gundo essa mesma te­o­ria, ci­ne­as­tas como Sofia Coppola e Kathryn Bigelow –e cu­ri­o­sa­mente men­ci­ona duas di­rec­to­ras es­ta­du­ni­den­ses de fic­ção– “não va­lem” para esse fim.

Esta ba­ta­lha con­tra a su­posta cor­re­ção po­lí­tica que apa­ren­te­mente está fa­zendo de­sa­pa­re­cer os fil­mes de fic­ção norte-ame­ri­ca­nos di­ri­gi­dos por ho­mens bran­cos pro­voca num mo­mento a per­ple­xi­dade do pró­prio Garci vendo que Touki Bouki, o se­mi­nal filme afri­cano de Djibril Diop Mambéty está à mesma al­tura de Casablanca; “Um filme do Senegal!” re­pete per­plexo vá­rias ve­zes. Evidentemente, con­sul­tando a lista ve­mos a abru­ma­dora mai­o­ria de fil­mes de fic­ção en­tre os 100 pri­mei­ros: ape­nas uma obra ex­pe­ri­men­tal (Meshes of the af­ter­noon), dois en­saios (Histoire(s) du ci­néma e Sans Soleil) e pouco mais de uma de­zena de do­cu­men­tá­rios. E, na­tu­ral­mente, 89 de­les di­ri­gi­dos por homens.

Nenhuma no­vi­dade. Já há anos pro­pu­nha Harold Bloom a sua te­o­ria de uma “es­cola do res­sen­ti­mento” que tenta so­ca­var o câ­none in­tro­du­zindo re­fle­xões fe­mi­nis­tas, pós-co­lo­ni­ais ou queer nas es­cri­tu­ras sa­gra­das de câ­no­nes que, como con­sa­bido, che­gam por ilu­mi­na­ção di­vina, não por in­te­res­ses en­vi­e­sa­dos da his­tó­ria das dis­ci­pli­nas ar­tís­ti­cas. Diz Schrader no texto an­tes men­ci­o­nado que “na de­mo­cra­cia não im­porta quem é vo­tado, im­porta quem conta o voto”. Caberia dis­sen­tir le­ve­mente, sem sair-se desse con­ceito do “quem”. Quem é con­vi­dado a vo­tar? A quem lhe é pe­dida opi­nião? A quem lhe é dada voz pela pri­meira vez? Reflexões que al­guns não es­tão dis­pos­tos a assumir.

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