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Imagem da presidenta de Peru, Dina Boluarte, durante a sua tomada de posse.

Peru à sombra da Ucrânia

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Imagem da presidenta de Peru, Dina Boluarte, durante a sua tomada de posse.
Dina Boluarte | pre­si­dên­cia do go­verno do peru

Após o pri­meiro ano da guerra na Ucrânia, com um eixo da NATO de­ter­mi­nado a sa­cri­fi­car to­dos os re­cur­sos ma­te­ri­ais e hu­ma­nos e com os Estados Unidos a re­cu­sar qual­quer pro­posta de paz vinda do ou­tro lado, a in­for­ma­çom e a re­fle­xom so­bre a po­lí­tica in­ter­na­ci­o­nal pa­rece es­tar tam me­di­ada polo con­teúdo de umha Europa in­ca­paz de olhar para além do seu pró­prio bolso que mui­tas ve­zes há pouca ener­gia ou es­paço para li­dar com ou­tros con­fli­tos. É claro que sem­pre houvo con­fli­tos mais re­pre­sen­ta­dos do que ou­tros, de­pen­dendo dos in­te­res­ses da in­dús­tria dos me­dia e do po­der a que ser­vem. Mas a cada dia que passa, a dis­si­mu­la­çom e de­sin­for­ma­çom so­bre os con­fli­tos que nom in­te­res­sam está a tor­nar-se mais ex­trema, e isto nom é coin­ci­dên­cia. Um caso pa­ra­dig­má­tico é o golpe de Estado em curso no Peru, que co­me­çou em de­zem­bro de 2022, quando o Presidente Pedro Castillo foi de­posto e subs­ti­tuído, sem mais ex­pli­ca­çons, polo mesmo po­der que ti­nha der­ro­tado nas eleiçons.

A cada dia a de­sin­for­ma­çom so­bre os con­fli­tos que nom in­te­res­sam está a tor­nar-se mais extrema
O ex-presidente peruano Pedro Castillo.
Pedro Castillo, du­rante a sua pre­si­dên­cia. | pre­si­dên­cia do go­verno do peru

A mai­o­ria dos meios de co­mu­ni­ca­çom so­cial, ca­pa­zes de mol­dar a opi­niom pú­blica, es­pe­rá­rom po­las de­cla­ra­çons dos che­fes di­plo­má­ti­cos dos Estados Unidos e da Uniom Europeia para mar­car a sua po­si­çom. Os aplau­sos de Washington e Bruxelas dei­xá­rom clara ao ben­çom das po­tên­cias im­pe­ri­a­lis­tas e qual de­via ser a nar­ra­tiva, que desde en­tom as­sen­tou ape­nas em três pi­la­res. Primeiro: apre­sen­tar o golpe de Estado como umha subs­ti­tui­çom sim­ples e ro­ti­neira do pre­si­dente Pedro Castillo por umha nova pre­si­denta, Dina Boluarte, no âm­bito da de­ten­çom do pró­prio Castillo e de acordo com as dis­po­si­çons da Constituiçom pe­ru­ana — o que é ab­so­lu­ta­mente falso. O se­gundo pi­lar era ne­gar a vi­o­lên­cia re­pres­siva e as suas ví­ti­mas e apre­sen­tar a ma­ciça res­posta po­pu­lar à bru­ta­li­dade po­li­cial como epi­só­dios de “con­fron­tos” en­tre duas for­ças opos­tas, o povo e o novo go­verno, como se am­bas ti­ves­sem a mesma le­gi­ti­mi­dade — o que sig­ni­fica, de facto, re­co­nhe­cer im­pli­ci­ta­mente que a ad­mi­nis­tra­çom ces­sada pola força era ile­gí­tima. Finalmente: dei­xar o resto do ce­ná­rio às es­cu­ras, o que sig­ni­fica tanto ocul­tar as ví­ti­mas da re­pres­som como, so­bre­tudo, im­pe­dir a en­trada em jogo dos sec­to­res po­pu­la­res sem­pre dei­xa­das à mar­gem, que para a grande im­prensa mais nom eram do que um re­curso cé­nico ou cen­tral. Umha exa­ge­rada e de­li­rante nar­ra­tiva so­bre a Rússia e Vladimir Putin con­tri­buiu enor­me­mente para a lei do si­lên­cio. Nem umha pa­la­vra so­bre o pro­cesso po­lí­tico que ti­nha le­vado o país a esse ponto, nem so­bre o blo­queio sis­te­má­tico com que o Estado pro­fundo im­pe­diu que as po­lí­ti­cas do go­verno eleito fos­sem pos­tas em prá­tica, nem so­bre as ame­a­ças per­ma­nen­tes da oli­gar­quia de Lima que ten­tou em vá­rias oca­si­ons, sem su­cesso, re­ti­rar o pre­si­dente do cargo “por va­cán­cia”. Nem so­bre como a pró­pria Dina Boluarte, as­se­di­ada por esse mesmo golpe en­ca­be­çado por José Williams, aca­bou por ser no­me­ada para subs­ti­tuir Castillo por­que, desta forma, foi pos­sí­vel apre­sen­tar o golpe como umha su­ces­som na­tu­ral de li­de­rança. Na mai­o­ria dos meios de co­mu­ni­ca­çom so­cial, Pedro Castillo apa­re­ceu em ju­lho de 2021 como um pro­fes­sor ru­ral sur­pre­en­den­te­mente eleito para pre­si­dente do país, e nom re­a­pa­re­ceu até à sua de­ten­çom em de­zem­bro de 2022 e a sua subs­ti­tui­çom pola “sua” vice-presidente. 

Contudo, por baixo deste apa­ga­mento se­le­tivo, o golpe no Peru con­ti­nua a ten­tar es­ta­be­le­cer-se de­fi­ni­ti­va­mente no meio de pro­tes­tos ma­ci­ços que, longe de de­sa­pa­re­ce­rem, con­ti­nuam a ga­nhar força e a apro­fun­dar as suas exi­gên­cias. Ainda, para quem olhar de perto ou com aten­çom, a enorme mo­bi­li­za­çom po­pu­lar con­tra o golpe, e con­tra Dina Boluarte como o seu prin­ci­pal sím­bolo, ser­viu para evi­den­ciar agen­tes que até ao mo­mento ti­nham fi­cado em grande parte à mar­gem do pro­cesso po­lí­tico — além do seu apoio a Pedro Castillo no mo­mento da sua elei­çom, chave para ma­te­ri­a­li­zar a vi­tó­ria de 2021. Desde o iní­cio, as co­mu­ni­da­des in­dí­ge­nas Aymara e Quechua ape­lá­rom a mo­bi­li­za­çons que ra­pi­da­mente to­má­rom as ruas das ci­da­des do in­te­rior e que co­me­çá­rom a es­pa­lhar-se ge­o­gra­fi­ca­mente com a in­cor­po­ra­çom de no­vos sec­to­res — mo­vi­men­tos po­lí­ti­cos ur­ba­nos, es­tu­dan­tes e sin­di­ca­tos. Os pro­tes­tos che­gá­rom a Lima, a ca­pi­tal his­to­ri­ca­mente nas maos da oli­gar­quia cri­oula, e o mesmo aos seus su­búr­bios mais eli­ti­za­dos: Surco, Miraflores ou San Isidro. A enorme ca­pa­ci­dade de mo­bi­li­za­çom das co­mu­ni­da­des in­dí­ge­nas do sul mon­ta­nhoso do país, que já ti­nha sido cons­ta­tado nas lui­tas con­tra o golpe na Bolívia, ve­ri­fi­cou-se tam­bém no Peru, para hor­ror da oli­gar­quia de Lima, que só con­se­guiu re­a­gir ten­tando cri­mi­na­li­zar as mar­chas, as gre­ves, as vi­gí­lias ou os bloqueios. 

A ines­pe­rada der­rota do ne­o­fu­ji­mo­rismo em 2021 le­vou a oli­gar­quia a bus­car um en­vol­vi­mento mais di­reto com os Estados Unidos

Ao mesmo tempo, a re­pres­som in­dis­cri­mi­nada, que pode ser ocul­tada do nosso lado do mundo, mas nom in situ, des­ven­dou tam­bém, para am­plos sec­to­res da po­pu­la­çom, in­dí­gena ou cri­oula, o ní­vel real de ra­cismo e su­pre­ma­cismo que su­pu­ram as ar­té­rias do es­tado pe­ru­ano. A ri­di­cu­la­ri­za­çom de Pedro Castillo como can­di­dato, an­tes da vi­tó­ria elei­to­ral, e a subs­ti­tui­çom gra­dual das brin­ca­dei­ras pelo medo à me­dida que a pos­si­bi­li­dade da sua vi­tó­ria nas elei­çons se tor­nava mais real, já dava su­fi­ci­en­tes in­di­ca­çons do re­gresso da oli­gar­quia ao po­der, atra­vés da fi­gura de umha Boluarte que é vista como trai­dora aos elei­to­res do Peru Libre — a pla­ta­forma de Castillo que tam­bém a con­ver­tera a ela em vice-pre­si­dente -, dei­xou a si­tu­a­çom clara o su­fi­ci­ente mesmo para que nom qui­gesse ver. E nom só. 

Manifestantes reclamam a liberdade de Pedro Castillo no centro da cidade de Lima.
Manifestantes pro­tes­tan no cen­tro da ci­dade de Lima. | mayimbú

Mais umha evi­dên­cia deste ra­cismo que con­si­dera os e as in­dí­ge­nas in­com­pe­ten­tes tem a ver com a in­ca­pa­ci­dade do pró­prio Estado e da oli­gar­quia cri­oula em com­pre­en­der que aque­les que li­de­ram a opo­si­çom ao golpe no Peru som pre­ci­sa­mente as co­mu­ni­da­des que­chua e ay­mara, e a es­querda ins­ti­tu­ci­o­na­li­zada, que ob­vi­a­mente se opujo ao golpe e tam­bém exi­giu a li­ber­ta­çom de Pedro Castillo e a re­a­li­za­çom de elei­çons que te­nhem sido adi­a­das re­pe­ti­das ve­zes. A exi­gên­cia de que os pro­tes­tos se­jam co­lo­ca­dos em cima da mesa, po­rém, vai muito além da re­cu­pe­ra­çom do sta­tus quo pré-golpe. Com de­ze­nas de pes­soas mor­tas e cen­te­nas fe­ri­das por ba­las, nom ad­mira que es­tas mes­mas co­mu­ni­da­des es­te­jam a apro­vei­tar o seu pró­prio es­forço nesta crise para exi­gir um de­bate pro­fundo so­bre o que o país é e deve ser, re­nun­ci­ando ao pa­pel de su­bal­ter­ni­dade que lhes é re­ser­vado desde o nas­ci­mento do Estado pe­ru­ano, con­tes­tando a cen­tra­li­dade po­lí­tica da oli­gar­quia e su­bli­nhando a ur­gên­cia de dar aos po­vos ori­gi­ná­rios o re­co­nhe­ci­mento (na li­nha de umha pos­sí­vel re­for­mu­la­çom plu­ri­na­ci­o­nal) e for­mas re­ais de par­ti­ci­pa­çom po­lí­tica. A to­mada de cons­ci­ên­cia des­tas co­mu­ni­da­des, que já ti­nha vindo a ga­nhar ter­reno de­vido à sua pró­pria di­nâ­mica in­terna (mo­vi­men­tos au­to­no­mis­tas na Amazónia, en­tre ou­tros) e ex­po­si­çom a ou­tros pro­ces­sos no con­ti­nente — par­ti­cu­lar­mente im­por­tan­tes na Bolívia e no Brasil — nom pa­rece que vaia de­sa­pa­re­cer da noite para o dia. E, por­tanto, tam­pouco pa­rece que o golpe te­nha via li­vre para se ins­ti­tu­ci­o­na­li­zar de ma­neira definitiva. 

O que é evi­dente, em qual­quer caso, é que a di­reita gol­pista nom está a agir so­zi­nha nesta crise. A ines­pe­rada der­rota do ne­o­fu­ji­mo­rismo em 2021 le­vou a oli­gar­quia a bus­car um en­vol­vi­mento mais di­reto com os Estados Unidos. As em­pre­sas norte-ame­ri­ca­nas som, nom por acaso, as prin­ci­pais be­ne­fi­ciá­rias do sis­tema de cor­rup­çom ins­ti­tu­ci­o­na­li­zada que ca­rac­te­ri­zou o pe­ríodo 1990 a 2001 (pe­ríodo de Alberto Fujimori), e que es­tava em pe­rigo de ser des­man­te­lado ou re­ver­tido com um go­verno po­pu­lar que ti­vesse ver­da­dei­ra­mente a ca­pa­ci­dade de agir e cum­prir o seu pro­grama. A his­tó­ria das in­ter­ven­çons de Washington na América Latina, dis­si­mu­la­das ou di­re­tas, é tam longa e evi­dente que é em­ba­ra­çoso men­ci­oná-lo, mas é no mí­nimo in­te­res­sante lem­brar que este tipo de vi­o­lên­cia po­lí­tica é in­se­pa­rá­vel de umha elite lo­cal e umha elite trans­na­ci­o­nal que afirma os seus bens por todo o pla­neta. Ainda mais num país como o Peru, cujo PIB de­pende em dous ter­ços deste mesmo ex­tra­ti­vismo. O ra­cismo e a su­bal­ter­ni­dade das co­mu­ni­da­des na­ti­vas res­pon­dem a me­ca­nis­mos es­pe­cí­fi­cos que se en­con­tram por toda a América Latina, África e grande parte da Ásia e, no caso do Peru, como re­cen­te­mente na Bolívia, tam­bém res­pon­dem sem dú­vida às ve­lhas re­la­çons co­lo­ni­ais que es­tám em vi­gor há sé­cu­los e que fo­ram re­for­ça­das gra­ças à di­vi­som in­ter­na­ci­o­nal do tra­ba­lho im­posta pola glo­ba­li­za­çom ca­pi­ta­lista. Mas se ainda sub­sis­tem, é por­que tra­ba­lham para os po­de­res atu­ais: um im­pe­ri­a­lismo que se ex­pan­diu ne­gando a so­be­ra­nia dos po­vos e fará tudo o que for pos­sí­vel para pre­ser­var a as­si­me­tria. Tenhem, nesse sen­tido, um ca­rác­ter tam­bém exó­geno que nin­guém de­via es­que­cer. As co­mu­ni­da­des em luita no Peru te­nhem isto muito pre­sente. E nós tam­bém de­vía­mos, por muito que o po­der pre­tenda ocul­tar as evidências. 

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