
Arredor da pandemia, desta volta entrevistamos Rebeca Baceiredo. Nascida em Ourense, é filósofa, poeta e escritora, e mais umha das principais exponentes galegas da linha de pensamento aberta por Gilles Deleuze. É sobre esse autor que versa a sua tese de doutoramento, que desenvolve como proposta ontológica que possibilitasse desfazer o sujeito em prol doutras subjetividades. Atualmente é professora de Filosofia do IES de Carril e vem de publicar “Éxodo” em Ápeiron Ediciones.
Como achas que o acontecimento da pandemia está a afetar as nossas vidas? Que implicaçons de género observas e sentes?
A situaçom parte dumha crise sanitária: à pressom que podem sentir as populaçons perante as crises económicas ordinárias, soma-se umha sorte de impotência e abafo por umha ameaça que, ao nom se localizar perfeitamente, intensifica os seus efeitos. Socavar a certeza é algo que o capitalismo da catástrofe sabe que funciona. Ao tempo, transfere umha sensaçom de irrealidade, porque a realidade costumamos ligá-la com algo mais estável, concreto, tangível. Precisamente, acentua todo o processo de tecnologizaçom e virtualizaçom das relaçons sociais. A planificaçom do lazer fica estriada na ordem ontológica do tempo, quanto na ordem económica –e biopolítica- da produçom de dados. Nom só durante o teletrabalho, a atividade laboral parece abranger grande parte do tempo vital. Parece que se assenta a ontologia do homo economicus, ou simplesmente emerge o que latejava. Ficam fracos os mecanismos do sistema e veem-se os ossos: o relevante é a açom económica, e o demais, é prescindível. Porque sem açom económica, nom há nutriçom do corpo.
Quanto ao género, as crises económicas sempre afetam mais às mulheres, sobretodo na estrutura familiar heterossexual, porque já partimos dum desnível na participaçom da esfera produtiva, quanto também da doméstica e dos cuidados. No nível emocional, as masculinidades tradicionalmente tendem a saber expressar menos os seus sentimentos dum modo assertivo. Quiçá a incidência psicológica nelas pode ser algo maior. A realidade resiste-se a ser conhecida. Enquista-se nas vidas restando-lhes todo o que excedia o nível de supervivência e também afetando à própria supervivência (sanitária e material).
Achas que a situaçom excecional de gestom da pandemia pode estar a propiciar umha biopolítica a cada vez mais autoritária, ou antes bem, pode estar a supor umha oportunidade para a sua democratizaçom?
Depende bastante do tipo de governo. A direita lidera mais o discurso das liberdades individuais, já que pretende umha menor intervençom legislativa e sanitária, traduzida em menores atrancos para o ‘normal’ funcionamento da economia, que acrescenta os benefícios de umha situaçom de choque: o sistema aproveita sempre as circunstâncias ao seu favor. No ensino, implementa-se a digitalizaçom, que passa por um processo de presencialidade e virtualidade ao tempo do que por umha tendência a ser reduzido a meros módulos de conteúdos e metodológicos. A tecnologizaçom evidencia a fenda digital, umha maior segregaçom social, umha limitaçom da promessa de mobilidade que o liberalismo anunciava. Afinal, evidencia-se a estrutura social: alunado pertencente a famílias de estratos sociais profissionalmente qualificadas tem melhor autoestima, maiores expetativas, acesso a recursos, e melhores hábitos de estudo.
“Assim normaliza o controlo a biopolítica: salva-che a vida, e nom só permanece no nível de supervivência do corpo, também oferece mais qualidade”
Existe o risco da assunçom acrítica e normalizaçom de umha maior responsabilidade e carga laboral: as novas normas apresentam-se como necessárias e diminui a possibilidade de réplica. A falta doutras medidas, delega-se o controlo da pandemia às açons quotidianas. Mas certamente, a biopolítica excede as políticas estatais. A biopolítica das sociedades de controlo fundamenta-se na tecnologia e a biotecnologia, e nom aparenta autoritarismo, se bem pode ser absolutamente totalizadora. Nom se impom, vende-se como fonte de segurança. Agora o poder ademais de despregar a racionalidade científica, apela à responsabilidade comum, assimila-se a umha racionalidade ética. O conhecimento científico costuma ser capturado polos processos económicos. De facto, volve-se apresentar o enunciado do progresso, constituindo umha sorte de escatologia laica que fala dumha ‘vida melhorada’. Assim normaliza o controlo a biopolítica: salva-che a vida, e nom só permanece no nível de supervivência do corpo, também oferece mais qualidade. Assume-se, e parece demandar-se mais exercício do poder. Formam parte desse projeto essa organizaçom científica da sociedade, mas também das próprias necessidades do Capital à hora de gerar novas borbulhas financeiras, muito ligadas à pesquisa tecnológica e ao mercado derivado.

Em contextos de crise, umha manobra típica dos governos, em cumplicidade com os seus aparelhos mediáticos, é tentar expiar o fracasso próprio responsabilizando do mesmo alguns sectores da populaçom. Detetas isto com a crise da Covid-19? Em que sentido achas que essa manobra governamental poderia provocar novas subjetivaçons sociais, ou afetar as já dadas?
Parece que evitar a expansom da pandemia depende do perfeito cumprimento dos protocolos. No ensino, delegou-se aos próprios centros a sua redaçom: o poder administrativo apenas emitia normas que mudavam em funçom dos recursos que, precisamente, nom queriam investir. Aliás, esses protocolos nom se traduzem em medidas de segurança objetivas nas grandes empresas. Neste sentido, parece relegar-se a gestom a um plano ético. Mas a ética depende de que os sujeitos tenham desenvolvida umha reflexom a respeito do comportamento e decidam aplicá-la. O papel dos médios está a consistir numha dinâmica de bombardeio de dados atualizados, inoculaçom do medo e distribuiçom da culpa; umha sorte de relato moral. Quando se compreendem as causas das normativas, interiorizam-se melhor. Isso nom se consegue através da imposiçom do medo, que pode gerar comportamentos de risco guiados por pulsons mais baixas para sentir que se está por riba dessa sensaçom de medo, ou dumha situaçom cuja gestom se percebe como aleatória.

Desde o macropoder, a populaçom a salvar torna-se potencialmente inimiga, e aplicam-se mecanismos jurídicos disciplinares de controlo dos corpos, que devem seguir sendo produtivos. Com certeza, esta biopolítica bota mao da responsabilidade face aos demais. As situaçons de risco de dissoluçom do seu sócius fam que, o neoliberalismo, tenha de evocar o papel da comunidade à hora de salvar problemas que um Estado ‘mínimo’ nom cobre. Novas subjetivaçons nom vam ser fomentadas polo sistema, assentam-se as já dadas porque simplesmente organiza-se biopoliticamente a situaçom sobre os dispositivos psico-sociais ou onto-sociais existentes.
No debate filosófico arredor da pandemia, das posiçons mais pessimistas, semelha-se emular o berro de Antígona contra a enésima volta de porca da dominaçom normalizada do nomos sobre a physis. Há quem depois disto, mesmo agoira o fim da Humanidade tal como a conhecíamos. Entre as posiçons mais otimistas, prevalece a tese da emancipaçom de qualquer normalidade anterior. Mesmo há quem se atrevem a profetizar o colapso da atual ordem capitalista, cuja remissom passaria, inexoravelmente, por umha forte socializaçom da economia. Que consideraçom che merece esta diatribe?
O capitalismo baseia-se na racionalidade estratégica: a ausência de paixons, valoraçons e juízos –e princípios‑, é o que lhe permite subsistir como sistema axiomático, flexível, adaptável. Aprendeu a nutrir-se dos estados de excecionalidade. De facto Feijóo, considera que toda essa excecionalidade sanitária deve expressar-se na normalizaçom de um marco legal que exceda a excecionalidade assinalada polo âmbito jurídico. Com cada crise económica pretende-se ver a possibilidade de colapso sistémico.
“É um bom momento para tentar fazer hegemónico o discurso da necessidade de socializar a economia”
Quiçá poderíamos prevê-lo com maior consistência a medida que a crise ambiental se acentuar e multiplicar os seus efeitos; um deles já é este. E nom creio que nem nesse caso seja demasiado fiável a elucubraçom, polas caraterísticas, polo funcionamento estratégico do sistema. Porém, é um bom momento para tentar fazer hegemónico o discurso da necessidade de socializar a economia, desde o investimento em sanidade pública à mudança do modelo produtivo em relaçom à crise ambiental e as suas consequências. Mas nom se está a fazer: o discurso que se viraliza é o psicológico e o moral: medos e culpáveis. À falta de investimento numha ciência nom enchoupada de interesses do Capital, controlam-se os corpos. E o investimento em ciência é em investigaçom e em trabalhadores profissionais, porque, igual que o vírus, o conhecimento também viaja nesses corpos (a maisvalia que gera a tecnociência é clara, evidente e imediata).
Achas que a imagem do Êxodo, de que botas mao no teu último livro, poderia também acompanhar praxes políticas coletivas, capazes de contrarrestar o individualismo neoliberal à hora de afrontar hipotéticos cenários de colapso sistémico?
A imagem pode evocar umha fugida coletiva de um território em que já nom se pode estar, face as multiplicidades pré-individuais que som para alguns autores, um espaço onto-ético e político. A minha utopia nom consiste apenas na soma de egos em permanente intuito de deconstruçom, com a dificuldade que isso tem. Contudo, sim creio no despregamento das potências dos indivíduos, que se conseguiria desfazendo as subjetivaçons normativas, sistémicas. Esse exercício constante tem umha dimensom intelectual, a do pensamento, que permite a reflexom, a análise, e umha dimensom prática, de adestramento. O que sempre foi a ética. Nesse plano penso que é mais doado gerar multiplicidades. Quiçá tampouco é tam complicado, avonda, como em tudo, com querer, com ter vontade.