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Tranzine Sete Outeiros: “Cada mandato de género que se quebra é um passo cara a fora do sistema cisheteropatriarcal”

por
pa­blo santiago

Xácia Ceive é a organizadora do espaço e projeto Sete Outeiros, um refugio e retiro na natureza da Ribeira Sacra para pessoas trans e queer (LGBTIA). Gael Papel é umha pessoa nom-binária que se nomeia em neutro —pronome eli—. É portuguesa e leva dous anos morando em Compostela, militando nos coletivos Amizando e Ninguén sen Coidados. Falam-nos do primeiro Tranzine de Sete Outeiros, uma colaboraçom literária e artística que nasce num momento em que o coletivo trans também sofre discriminaçom dentro do feminismo, e que busca abrir os olhos a todas as pessoas que o leiam.

Quando e como surge o Tranzine de Sete Outeiros

X: O co­le­tivo trans está num mo­mento de exi­gir dig­ni­dade em igual­dade, e para che­gar a es­tas al­tu­ras —que nos res­tau­ra­ria a um es­paço de plena dig­ni­dade na nossa cul­tura— fai falta muito tra­ba­lho ela­bo­rando dis­cur­sos e en­ten­di­men­tos, com­par­tindo as nos­sas ex­pe­ri­ên­cias e fa­zendo um es­forço pe­da­gó­gico. Por isso nas­ceu o nosso Tranzine. 

Polo pri­meiro nu­mero as con­tri­bui­do­ras es­ta­vam pre­pa­rando os tex­tos no in­verno, fi­gem a ma­queta na pri­ma­vera, mas a co­vid-19 atra­sou a pu­bli­ca­çom e nom con­se­gui­mos im­pri­mir até de­pois da quarentena. 

Por que de­ci­dis­tes de­di­car este nú­mero à lín­gua, e par­ti­cu­lar­mente à lin­gua­gem nom-bi­ná­ria (NB)?  

X:  O facto de es­tar­mos co­me­çando a ter mais es­paço cul­tu­ral para in­ter­ro­gar, in­ves­ti­gar e ex­pe­ri­men­tar com o gé­nero está cau­sando um au­mento na quan­ti­dade de pes­soas que­rendo ex­pe­ri­men­tar com a neu­tra­li­dade lin­guís­tica para me­lhor des­cre­ver as suas vi­das. Na Galiza, es­tando lin­guis­ti­ca­mente do­mi­nada polo cas­te­lhano, isto im­plica que, se nom fa­ze­mos um es­forço in­ten­ci­o­nal, va­mos com­prar to­das as nos­sas op­çons lin­guís­ti­cas neu­trais de Madrid, em vez de in­ter­ro­gar a ló­gica pró­pria do nossa idi­oma para neu­tra­li­zar com mo­dos pró­prios. Nom me auto de­fino com re­gu­la­ri­dade nom-bi­ná­ria, e por isso dei­xei a voz do tran­zine a ou­tras pessoas.

Para bem cap­tu­rar a re­a­li­dade atual da nossa lín­gua, con­vi­dei um ati­vista da nossa lin­gua­gem, Dani Amarelo, umhe ar­tista de Lisboa, Gael Papel, que já po­de­ria cha­mar Galiza um se­gundo lar, e umha pes­soa de Madri, Mirzam Jay Lokabrenna, quem or­ga­ni­zou o pri­meiro en­con­tro ibé­rico nom-bi­ná­rio aqui mesmo em Sete Outeiros. Mirzam mora em Compostela e está no pro­cesso de apren­der ga­lego. Assim te­mos as prin­ci­pais pos­sí­veis in­fluên­cias na ex­plo­ra­çom de lin­gua­gem neu­tra em galego. 

As exis­tên­cias nom­bi­ná­rias som em si mes­mas for­mas de re­sis­tên­cia ao sis­tema cishe­te­ro­pa­tri­ar­cal, por­que de­sa­fiam os fun­da­men­tos bá­si­cos em que ele assenta”

É a lin­gua­gem nom-bi­ná­ria chave para re­ma­tar com o cisheteropatriarcado? 

G: É uma per­gunta moi com­pli­cada, mas acho que sim. As exis­tên­cias NB som em si mes­mas for­mas de re­sis­tên­cia ao sis­tema cishe­te­ro­pa­tri­ar­cal, por­que de­sa­fiam os fun­da­men­tos bá­si­cos em que ele as­senta. A lin­gua­gem NB é um sin­toma disso. Pondo‑o um pouco mais em con­texto, no nosso uni­verso oci­den­tal som per­mi­ti­dos dous gé­ne­ros e a cada um de­les as­so­ciam-se ca­rac­te­rís­ti­cas que pre­ten­dem jus­ti­fi­car de­si­gual­da­des e dis­cri­mi­na­çons, e man­ter sis­te­mas de pri­vi­lé­gios. Mas a de­ci­som de va­lo­rar ou des­pre­zar de­ter­mi­na­das ca­rac­te­rís­ti­cas é umha de­ci­som po­lí­tica, umha cons­tru­çom so­cial. E este sis­tema de ma­nu­ten­çom das de­si­gual­da­des nu­tre-se de que nom se­ja­mos cons­ci­en­tes disso, de que pen­se­mos que as nor­mas de gé­nero som algo inato ao que nom po­de­mos es­ca­par, de que pen­se­mos que es­ses es­te­reó­ti­pos som o de­se­já­vel e o “nor­mal”, e de que es­ca­par à “nor­ma­li­dade” é ter­rí­vel. As mo­ças gos­tam do rosa, os mo­ços do azul; as mo­ças som sen­sí­veis e cui­da­do­ras, os mo­ços agres­si­vos e va­len­tes, as mo­ças le­vam ca­belo longo e gos­tam dos mo­ços, os mo­ços le­van o ca­belo curto e na­mo­ram de mo­ças com o ca­belo longo, etc… Mas que passa quando se co­me­çam a trans­gre­dir es­tas nor­mas? O nom-bi­na­rismo é muito mais do que umha ter­ceira iden­ti­dade de gé­nero: mas­cu­lino, fe­mi­nino, outro. 

Quando Monique Wittig di­zia que as bo­lhe­ras nom eram mu­lhe­res, já es­tava, na mi­nha opi­niom, abrindo umha fenda no bi­na­rismo do sis­tema sexo-gé­nero. Para mim, o nom-bi­na­rismo é a re­cusa dos dog­mas pa­tri­ar­cais e co­lo­ni­a­lis­tas que au­to­ma­ti­ca­mente nos co­lo­cam num ex­tremo ou nou­tro da vida. Cada man­dato de gé­nero que se que­bra é uma forma de nom-bi­na­rismo (ainda que nom nos iden­ti­fi­que­mos com umha iden­ti­dade NB) e é um passo cara a fora do sis­tema cishe­te­ro­pa­tri­ar­cal. E o que é mais rom­pe­dor que umha lin­gua­gem que esse sis­tema nom contempla?

pa­blo santiago

Mirzam Jay fala na sua en­tre­vista so­bre o duro que pode ser con­se­guir que res­pei­tem a iden­ti­dade pró­pria. A lin­gua­gem NB pode ser umha so­lu­çom a longo prazo ao binarismo? 

G: Penso que é im­pos­sí­vel ser per­ci­bide exa­ta­mente como so­mos ou nos sen­ti­mos e que esse nom é o prin­ci­pal pro­blema por­que ten mais a ver com as ex­pe­ta­ti­vas des ou­tres que com a nossa iden­ti­dade. Na ver­dade, nom pe­di­mos nin­guém que en­tenda, pe­di­mos ape­nas que se res­peite. Podemos co­mu­ni­car al­guém como que­re­mos ser tra­ta­des mas nom po­de­mos con­tro­lar como essa pes­soa nos vê. E nom es­tou se­gure de que isso seja o mais im­por­tante. Por exem­plo: Eu som uma pes­soa NB que se re­la­ci­ona sexo-afe­ti­va­mente quase sem­pre com mu­lhe­res lésbicas/bolheras. Que elas se con­si­de­rem bo­lhe­ras nom fai de mim umha mu­lher lés­bica. E por ou­tro lado, que eu seja umha pes­soa NB e nom umha mu­lher, nom fai que elas se­jam me­nos bo­lhe­ras. A lin­gua­gem NB serve para di­ri­gir-se às pes­soas que a uti­li­zem para re­fe­rir-se a si mes­mas, in­de­pen­den­te­mente da in­ter­pre­ta­çom que o nosso cé­re­bro poida fa­zer de­las. E acho que se a uti­li­za­mos, pouco a pouco acos­tu­ma­re­mos a ver com olhos mais fluidos.

No tran­zine fa­la­des bre­ve­mente do “des­prezo” tam­bém den­tro do fe­mi­nismo ao que se con­si­de­ram qua­li­da­des fe­mi­ni­nas, pen­sa­des que isto é assim?

X: Acho que isto está em parte li­gado a umha dis­cus­som fi­lo­só­fica nos fe­mi­nis­mos. Eu nom som abo­li­ci­o­nista de gé­nero. Som abo­li­ci­o­nista de opres­sons e de to­dos os ele­men­tos obri­ga­tó­rios no nosso sis­tema de sexo-gé­nero. Mas, há nos que veem to­dos as ex­pres­sons de gé­nero, so­ci­al­mente vis­tas como ‘fe­mi­ni­nas’, como parte do pro­blema, parte da im­po­si­çom. Estes ar­gu­men­tos es­tám apa­re­cendo mui­tas ve­zes, es­pe­ci­al­mente con­tra mu­lhe­res trans. Há algo de pa­ter­na­lista nesta ló­gica. Acho este des­prezo como umha nova pres­som que cria um novo li­mite à li­vre ex­pres­som de mu­lhe­res, pes­soas nom-bi­ná­rias, e no fim, a ho­mens tam­bém. Penso que en­quanto mu­lhe­res, já ex­pe­ri­men­ta­mos pres­sons enor­mes na nossa ex­pres­som de gé­nero, a ul­tima cousa que há de fa­zer o fe­mi­nismo é acres­cen­tar no­vas pres­sons. A ques­tom de o que fa­zer com o gé­nero, abo­li­çom, li­ber­dade, etc., é enorme. Se ca­lhar me­re­ce­ria en­cher o nu­mero dous do tran­zine. Enquanto es­ta­mos a na­ve­gar sis­te­mas com­ple­xos, com ní­veis de opres­som e de­se­qui­lí­brios de po­der, sem­pre es­tou em fa­vor de so­lu­çons e lin­gua­gem que dei­xam as pes­soas me­nos pri­vi­le­gi­a­das na­ve­gar, ex­pres­sar e ex­plo­rar es­tes sis­te­mas com má­xima liberdade. 

G:  Neste tema nom acabo de ter a mesma opi­niom que Xácia, ainda que em parte sim coin­ci­da­mos. Da mi­nha ex­pe­ri­ên­cia nunca sen­tim um des­prezo pola fe­mi­ni­dade, ainda que me per­gunte, ao fi­nal, a que nos es­ta­mos a re­fe­rir. Se nos es­ta­mos a re­fe­rir aos es­te­reó­ti­pos de fe­mi­ni­dade —como a ten­dên­cia para cui­dar, a sen­si­bi­li­dade ou pôr-se saia— en­tom penso que o que existe nal­guns uni­ver­sos (trans)feministas nom é des­prezo, se­nom o de­sejo de que essa nom seja a única op­çom, e de que nom seja um re­qui­sito in­dis­pen­sá­vel para ser, o que quer que isso queira di­cir, femenina/e/o. Por exem­plo, é co­mum es­pe­rar que uma mu­lher trans tente fe­mi­ni­zar-se o mais pos­sí­vel se­gundo o pa­drom cul­tu­ral de fe­mi­ni­dade. Que se po­nha saias, que se ma­qui­lhe e que seja he­tero. Noutras pa­la­vras, a “fe­mi­ni­dade obri­ga­tó­ria” é uma con­di­çom para mais ou me­nos po­der ha­bi­tar o sis­tema bi­ná­rio com um mí­nimo de tran­qui­li­dade. O tam so­bre-va­lo­rado pas­sing que nos per­mite so­bre­vi­ver neste sis­tema cishe­te­rohos­til. E aqui es­tou de acordo com Xácia, nom é justo, de­ve­ría­mos po­der ser livres.

O co­le­tivo ‘trans’ está num mo­mento de exi­gir dig­ni­dade em igualdade”

-Xácia, a pa­la­vra wo­men tem para ti umhas co­no­ta­çoms dis­tin­tas que a pa­la­vra mu­lher. Muda a nossa pers­pe­tiva do mundo se­gundo o idi­oma que use­mos? Nas lín­guas onde nom há gé­nero gra­ma­ti­cal mar­cado os gé­ne­ros fluem mais?

G: Cada idi­oma que fa­la­mos ou en­ten­de­mos am­plia a ma­neira como ve­mos o mundo e trae ou­tras for­mas de co­mu­ni­car-nos que su­po­nhem um en­ten­di­mento dis­tinto da nossa con­torna. Penso que nos idi­o­mas onde o gé­nero nom está gra­ma­ti­cal­mente (tam) mar­cado, a in­ser­çom da lin­gua­gem neu­tra é mais sim­ples, e quiçá o pro­cesso men­tal atra­vés do que per­ce­be­re­mos o gé­nero além do bi­ná­rio, seja mais rápido.

X: Eu es­tou con­ven­cida que en­tre a am­pla he­te­ro­ge­nei­dade das nos­sas so­ci­e­da­des, te­mos de todo. Pessoas que pre­ci­sam a li­ber­dade para fluir en­tre ca­te­go­rias fi­xas, pes­soas que va­lo­ram a es­ta­bi­li­dade de ca­te­go­ries para o uso pes­soal —nom para di­tar as iden­ti­da­des dou­tras, claro—. Há pes­soas que ne­ces­si­tam as pa­la­vras ho­mem e mu­lher, pes­soas que ne­ces­si­tam ou­tros es­pa­ços de sexo/género, pes­soas que que­rem co­mu­ni­car, atra­vés dumha ex­pres­som de gé­nero que en­cai­xem num grupo ou ou­tro, pes­soas que exi­gem, cor­re­ta­mente, que a sua ex­pres­som de gé­nero nom im­plica es­tar alo­cada a um grupo ou ou­tro. Penso que o nosso reto é ten­tar fa­zer es­paço, lin­guis­ti­ca­mente e cul­tu­ral­mente, para to­das es­tas necessidades.

O uso do neu­tro pode che­gar a ser um pro­blema para lín­guas mi­no­ri­za­das como a nossa?

X:  Sei que existe umha crí­tica de lin­gua­gem neu­tra no ga­lego, que si­gue es­tas li­nhas. Convidei Dani Amarelo es­cre­ver desta tema no tran­zine, por­que ele po­de­ria ex­plo­rar es­tes di­fi­cul­da­des desde umha po­si­çom de sen­si­bi­li­dade, en­ten­dendo me­lhor as ne­ces­si­da­des do co­le­tivo nom-bi­ná­rio, que ou­tras ati­vis­tas lin­guís­ti­cas. E, fa­lando com Dani nos me­ses de­pois, ele la­men­tou o facto de nom en­con­trar exa­ta­mente o tom que que­ria no tran­zine, e que­ria mos­trar mais auto-co­nhe­ci­mento do pri­vi­le­gio de nom sen­tir a ne­ces­si­dade de em­pre­gar lin­gua­gem neu­tra diá­ria cerca si mesmo. Também, afirma que a lin­gua­gem neu­tra nom pre­senta um “pro­blema”, só é que pode ser um de­sa­fio maior para umha lín­gua minorizada.

Como na­ve­ga­mos es­tas va­rias ne­ces­si­da­des? Penso que os tex­tos no tran­zine nom ten­ta­ram dar res­pos­tas fi­nais a es­tas per­gun­tas com­pli­ca­das. Pintárom o es­paço em que po­de­mos con­ti­nuar a ex­plo­rar, ne­go­ci­ando, e co-cri­ando linguisticamente. 

G: Na mi­nha opi­niom o uso do neu­tro nom al­tera muito a si­tu­a­çom. Esta lin­gua­gem é mui pouco uti­li­zada, pra­ti­ca­mente nom é re­co­nhe­cida e me­nos ainda va­li­dada —o que re­sulta na in­vi­si­bi­li­za­çom das pes­soas que se iden­ti­fi­cam com ela e que a uti­li­zam—. Quem a usa ne­ces­sita dela ur­gen­te­mente. Acho que a lin­gua­gem NB irá mu­dando e adap­tando às ne­ces­si­da­des re­ais de quem a uti­liza e ao idi­oma que es­sas pes­soas fa­lam, tornando‑o mais pró­prio e mais au­tén­tico, por­que tam­bém o se­rám es sues falantes.

pa­blo santiago

Entom, acha­des que se nor­ma­li­zará rá­pido o uso do neu­tro nas lín­guas ou resta muito por fazer? 

G: Som só uma pes­soa NB que nom co­nhece o fu­turo (ri­sos). Mas penso que fi­cará sem­pre muito por fa­zer e que a ma­neira como nos ex­pres­sa­mos —sin­toma de como ve­mos o mundo— está mui mar­cada nom só por um sis­tema cis, he­tero, pa­tri­ar­cal e bi­na­rista, se­nom tam­bém por man­da­tos co­lo­ni­ais, ra­cis­tas, ca­pa­ci­tis­tas, es­pe­cis­tas… e que te­mos muito por desconstruir.

Algumha ou­tra cousa que con­si­de­res de in­te­resse comentar? 

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