No dia 17 de abril celebra-se o dia internacional de luta pela terra, o dia internacional de luta camponesa. Este foi escolhido após o massacre em Eldorado dos Carajás, no Pará ‑Brasil‑, em 1996 em que 19 pessoas foram assassinadas. Vinte e dois anos depois a ONU aprova a Declaração sobre os Direitos dos Camponeses, Camponesas e Outras Pessoas que Trabalham nas Áreas Rurais. Como parte do processo, o Sindicato Labrego Galego organizou a sua leitura pública com a participação de diversas organizações e coletivos sociais, entre elas, o Movimento de Trabalhadores Sem-Terra, do Brasil. Nesta ocasião, entrevistamos a sua representante e integrante da Direção Nacional do Movimento, Marina dos Santos
A Declaração dos Direitos das Camponesas, Camponeses e outras pessoas que trabalham nas áreas rurais foi aprovada pela Assembleia Geral da ONU com 119 votos favoráveis, 7 contrários e 49 abstenções. Qual é a importância dessa declaração de direitos?
A declaração das Nacões Unidas sobre os Direitos dos Camponeses e outras pessoas que trabalham nas zonas rurais é muito importante para todas as pessoas que trabalham no mundo rural. O seu processo todo de apresentação e negociação na ONU foi realizado diretamente pelos movimentos camponeses de base que fazem parte da Via Campesina Internacional.
A conquista dessa declaração é um símbolo da resistência dos camponeses a nível internacional. A gente não pode deixar de contextualizar o mundo agrário e as questões agrárias que estamos vivendo hoje sem falar da disputa de projetos para o campo. De um lado estão as empresas do capital internacional, que querem disputar os bens da natureza e transformar tudo em lucro. Do outro lado há muitos milhões de camponeses que continuam no processo de resistência, de produção de alimentos saudáveis, de proteção e recuperação da natureza. A declaração vem para fortalecer o projeto destes grupos a nível internacional. Falamos das comunidades locais, dos assentamentos, dos quilombos, das comunidades nos territórios.
Como essa declaração pode ser útil para essas comunidades?
Ela pode ser uma ferramenta de pressão nos países, nos locais e nos municípios, para que os governos elaborem políticas públicas agrárias com fortalecimento da agricultura camponesa familiar. Pode ser um instrumento de formação e informação, tanto para dirigentes das organizações como para toda a sua base, com respeito aos seus direitos e os direitos da natureza. Pode ser uma ferramenta para o trabalho de base no âmbito dos direitos de conscientização, de mobilização e de luta. Para nós, a declaração pode ser uma ferramenta para ser colocada como um tripé: trabalho de base, formação e lutas.
Outro ponto importante que está na introdução da Declaração é o reconhecimento do sujeito camponês: do homem, da mulher, dos jovens e dos idosos. No Brasil e na América do Sul, em especial, o sujeito reconhecido no campo é o homem. Não tem o reconhecimento da mulher, das crianças, dos jovens. Então a Declaração traz esse reconhecimento, que para nós é muito importante.
Também traz a descrição das obrigações que os Estados têm que ter, as responsabilidades institucionais, as questões que devem orientar a construção e implementação das políticas públicas agrária nos países. Ou seja, ela compromete também os Estados para ela não ficar só nessa aprovação no âmbito internacional da ONU, mas que os Estados, de fato, a aproveitem, a tragam para si, para sua realidade concreta.
Outro elemento que destacaria da Declaração é que reconhece os direitos coletivos, ou seja, valoriza as comunidades, os assentamentos, os quilombolas, enfim, as formas organizativas do campesinato e não só o indivíduo.
Como se desenvolveu o processo de cara à Declaração?
É bom destacar também que nesse processo, o sindicato da Indonésia, o SPI, que é membro da via Campesina, estabelece no ano 2000 os primeiros contatos de Genebra para buscar o reconhecimento e a institucionalização dos direitos camponeses. A partir daí, dentro das conferências, dos coletivos, dos setores da Via Campesina vai-se aprofundando. Também houvera muitas contribuições de aliados, amigos, parceiros, governos populares, organizações não governamentais, de Evo Morales, de pescadores, dos povos indígenas, dos trabalhadores agrícolas católicos e de várias organizações de direitos humanos da Argentina, da Colômbia… O que quer dizer que esse processo foi conquistado a partir de um trabalho articulado internacionalmente muito forte.
A Declaração foi uma conquista da qual a Via Campesina foi uma atriz fundamental. Poderias contar o que é a Via Campesina?
A Via Campesina é um movimento social popular que se organiza desde o início dos anos 1990, articulada em mais de 70 países e que representa em torno de 200 milhões de camponeses a nível mundial. Hoje está organizada em 10 regiões, 4 continentes e tem várias agendas comuns para elaborar e sugerir políticas a nível internacional. Defende projetos coletivos como a soberania alimentar, a agroecologia e tem um rol de intenções e de lutas internacionais de enfrentamento, principalmente às instituições internacionais que impedem uma agricultura familiar como a OMC, o Banco Mundial e o FMI.
A Via Campesina tem muitos desafios, como no processo de organização das mulheres, dos jovens… Agora está iniciando a articulação e organização de pessoas LGBT na Via Campesina. Acho que esses são temas bastante importantes que dialogam com a Via Campesina internacional.
Um dos grandes exemplos de ações da Via Campesina é o 17 de Abril, porque em função do massacre de Eldorado dos Carajás no Pará, que esse ano completa vinte e três anos, a Via Campesina internacional determinou que o dia 17 de Abril seria o dia internacional de luta pela terra, o dia internacional de luta camponesa. Nesses vinte e três anos aí se faz necessário e se garante ações em todos os países onde a Via Campesina está organizada.
Qual é a realidade da propriedade da terra no Brasil?
A questão agrária no Brasil não pode ser dissociada da questão agrária da América Latina e do conjunto da Terra, porque a nossa situação agrária está sofrendo a ofensiva internacional das empresas transnacionais que defendem o agrohidronegócio e o negócio do mineral. Essas empresas querem disputar o conjunto dos bens da natureza para fazer um projeto de desenvolvimento no meio rural, mas é um projeto baseado na alta concentração de terra, no sistema de produção baseado em poucos produtos e para exportação. Ou seja, em grandes extensões de terras, através de monocultivos, e produção com a utilização de venenos agrotóxicos. Infelizmente, não é uma realidade dissociada de vários países, especialmente vizinhos nossos.
Segundo o último censo agropecuário feito em 2006 no Brasil, 1% dos proprietários detém 46% das terras agricultáveis. Brasil somos o segundo país que mais concentra a Terra no mundo. Esse censo de 2006 diz que no Brasil existem 4,8 milhões de famílias sem-terra, ou seja, em torno de 15 milhões de pessoas sem-terra. É uma contradição: por um lado 1% tem quase a metade do país e o outro lado, 15 milhões de sem-terra. Também estamos na lista dos países que mais produzem e consomem agrotóxicos. Segundo os dados da Anvisa, que é um departamento do Ministério da Saúde no Brasil, cada brasileiro consome em torno de cinco litros de veneno por ano através do ar, da água, daquilo que a gente come. Isto é fruto do modelo que eles querem fazer e estão fazendo.
O MST, organização da qual você faz parte, é um dos movimentos sociais de referência internacional por pautar as questões da terra, a questão agrária. Podes explicar o que é o MST e como está organizado?
Acho que essa realidade do Brasil é o que faz ter uma organização como o MST. Consideramos-nos herdeiros especialmente das ligas camponesas e de tantas lutas polas terras no país que já houveram. O MST surge com três objetivos: o da luta pela terra, pela reforma agrária e por uma sociedade mais justa e igualitária. São 35 anos do MST desde 1984. O MST começou a se organizar no sul do país e teve o seu primeiro encontro nacional em Cascavel, no Paraná. Depois acabou se espalhando pelo Brasil inteiro, hoje nós estamos organizados em 24 estados do país. Nós nos consideramos um movimento que tem 35 anos de lutas, resistências e conquistas. Na verdade, a luta do MST, a organização dos sem-terra é para enfrentar o que tem de mais atrasado na sociedade que é latifúndio, uma das coisas mais arcaicas que existe no país.
Consideramo-nos um movimento social, político, sindical e popular. Político não de partido, mas a ocupação da terra improdutiva é uma ação política, por isso nos considerarmos um movimento político. Não só temos propostas de reforma agrária, mas temos um propósito de projeto de sociedade para toda a classe trabalhadora. Um movimento popular porque é um movimento que não tem distinção de credo, de religião, de raça, cor, opção sexual… Enfim, é um movimento popular em que quem quer lutar pela terra e pela mudança da sociedade tem espaço.
É um movimento sindical porque a reivindicação pela terra é econômica. Depois da conquista da terra, a organização do assentamento é econômica também, a organização das cooperativas, da produção, da comercialização, da qualidade, da organização, da qualidade de vida do povo no assentamento e na comunidade conquistada.
Qual é a base social com a que conta o MST?
Hoje temos em torno de 90 mil famílias acampadas. São famílias organizadas que estão na luta pela conquista de um pedaço de terra. E temos 450 mil famílias assentadas, ou seja, que já conquistaram a terra. A nossa base social hoje no país é em torno de dous milhões de pessoas. Temos em torno de 2.000 escolas organizadas nos assentamentos pelo Brasil afora. Nos últimos anos, principalmente com alguns programas que fortaleceram os nossos projetos de educação, temos cinco mil jovens que se formaram em diversos cursos com parcerias nas universidades públicas do país.
Também temos a nossa escola nacional Florestan Fernandes para formação de líderes, de política. Hoje a escola nacional não é mais uma escola do MST, mas é uma escola de irradiação de ideologia, de política nacional e internacional.
Temos em torno de 300 cooperativas de produção, processamento e comercialização. Nesse sentido a produção tem o objetivo de recuperar e preservar o meio ambiente, com a intenção da gente construir a soberania alimentar.
Hoje nós podemos dizer que o MST tem em torno de 20 mil militantes em todos os estados que contribuem na organização dos acampamentos, dos assentamentos nas regiões que, por sua vez, estão articuladas nas direções estaduais, na direção nacional, na coordenação nacional do movimento que são em torno de 400 pessoas. Então, todo o nosso processo da formação permeia todas as instâncias; desde o trabalho de base na organização dos sem-terra para ir para a ocupação da terra até a nossa instância máxima que é o Congresso Nacional do MST, que acontece de quatro em quatro anos, que onde se decidem as linhas políticas do movimento.
Quais são as bases do programa agrário do MST?
O nosso programa agrário é fruto do último congresso. Poderia resumir-se em quatro ou cinco pontos. Primeiro é a questão de desconcentrar a terra. Um dos grandes objetivos de organizar os sem-terra e de fazer a ocupação das terras improdutivas é justamente pressionar o estado no sentido de garantir o reparto dessa terra.
O segundo é a organização das agroindústrias, ou seja, da gente disputar os recursos com o agronegócio, com as grandes empresas como a Sadia, a Nestlé, que se apropriam dos nossos produtos. Então, garantir recursos para a organização das cooperativas para os assentados beneficiarem os seus produtos: fazer a farinha, o queijo ou o iogurte na comunidade e poder comercializar.
Um terceiro é a necessidade de construir uma nova matriz tecnológica de produção. Ou seja, de como a gente ter uma produção que esteja baseada na agroecologia sem reproduzir nas nossas comunidades a mesma forma que o latifúndio. Queremos a partir disso garantir a soberania alimentar, que as pessoas possam decidir o que, quanto, como e para quem produzir, com um apoio financeiro e de políticas públicas para fazê-lo com qualidade.
Outro elemento é a educação. Não têm como desenvolver um outro modelo no campo com uma população analfabeta. Por isso a educação está dentro das nossas prioridades, desde a educação das crianças nas escolas e nas comunidades, e a educação para jovens e adultos que não tiveram a oportunidade de aprender a ler e escrever.
Dentro do MST outro tema que tem ganhado repercussão social é a luta das mulheres.
Um dos desafios é a garantia de participação das mulheres e dos jovens. Vamos avançando na sua capacitação e na participação efetiva. No último período, juntamente com os coletivos de mulheres da Via Campesina e da Coordenação Latino-Americana de Organizações do Campo, temos construido o que nós chamamos de feminismo camponês e popular. É um debate de como construir as novas relações de género, mas também avançar para a participação das mulheres num projeto mais amplo e que as mulheres se apropriem de todas os processos organizativos.
Nos últimos anos, as mulheres vêm fazendo ações muito importantes de enfrentamento, de denúncia das empresas transnacionais, colocando-se como sujeitas autônomas com condições de se organizar e enfrentar esse tema. As mulheres tem feito ocupações, têm feito denúncias, têm se organizado, mas também juntamente com os companheiros. Não tem sido um outro setor ou dois tipos de ações. É uma forma das mulheres se apresentarem e terem autonomia no processo organizativo.
No Brasil, a eleição de Jair Bolsonaro é um dos exemplos do avanço do fascismo pelo mundo. Há oportunidades e esperança para reverter o seu crescimento? O que se tem feito dentro do campo dos movimentos sociais?
Temos trabalhado no sentido de construir ações conjuntas com os diversos representantes de movimentos sociais organizados no Brasil, seja no campo ou na cidade. Especialmente temos nos organizado no Frente Brasil Popular, que é um guarda-chuva organizativo na que tem estado várias organizações sociais do campo e da cidade. A nossa tática tem sido trabalhar o desgaste desse governo que tem essa cara neo-fascista.
Temos tratado de ter algumas bandeiras comuns, como a da reforma da presidência que o governo está discutindo com os objetivos essenciais de tirar os direitos dos trabalhadores e dar privilégios para os bancos. Outra bandeira é no caso Marielle, no 14 de março fez um ano do seu assassinato da Marielle e nós também queremos resposta à pergunta de quem matou Marielle. Também a defesa da educação e da saúde pública, a bandeira do ‘Lula livre’… Também agora no dia 7 fez um ano da prisão que nós também acreditamos ser injusta arbitrária. E também ações com os movimentos sociais em defesa também das políticas públicas que foram historicamente conquistados para fortalecer a agricultura camponesa e familiar que agora estão sendo destruídas.
As nossas ações têm que convergir com as lutas e resistências locais, nacionais e internacionais. Na América Latina temos a Coordenação Latino-americana de Organizações do Campo. Estamos também na construção da Assembleia Internacional dos Povos, com 700 organizações do mundo inteiro que tem o objetivo de construir um projeto de enfrentamento para esse capital globalizado.