
No caminho de volta da minha estadia por um ano na Noruega, como chefe executivo dum grupo de restaurantes numa vila conhecida por ser destino de férias da classe alta do país, reflexionava sobre como, ainda que o tardo-capitalismo tente afastar os espaços de exploração da vista das metrópoles, as suas estruturas e consequências sempre estão presentes pela própria limitação material. Essa mesma semana, o ministro de Petróleo e Energia do país ‑no próprio nome da pasta ministerial há muita densidade de discurso- tentava-se desculpar diante de representantes do povo sámi pela construção de enormes extensões de centrais aerogeradoras nalguns dos seus pastos tradicionais de renas. O ato era só simbólico, um jeito de pacificar a imprensa e os grupos ativistas mobilizados contra a desfeita ecológica tingida de verde, pois nas mesmas declarações o político assegurava que seria necessário encontrar uma “solução que permitisse seguir produzindo energia na zona”.
Desde a sua própria conceção como espaço geográfico-cultural, os países escandinavos constituem-se, como todos os estados-nação no capitalismo, como espaços de exclusão do privilégio. Ainda que no papel não for assim, na prática é que “o escandinavo” define-se sob os determinantes culturais duma maioria que fala línguas do contínuo germano-escandinavo, deixando fora da sua construção como entidades nacionais e supranacionais os povos urálicos que não atingiram estado próprio, como o sámi e o carélio, e olhando sempre com receio e superioridade os que sim, como o finlandês. Do mesmo jeito, o modelo da social-democracia nórdica, tantas vezes posta como exemplo dum capitalismo “mais humano” e marcado como guia pelos reformismos esquerdistas, constrói sobre a contradição fundamental de toda economia capitalista, erguendo simplesmente uma barreira mais alta e mais mesta entre os espaços de extração e os de acumulação do capital.
As cozinhas, as fábricas e os serviços do país estão populados por pessoas migrantes e refugiadas, atraídas pela promessa nórdica de altos soldos e magníficas condições laborais
Se na Finlândia procuram não reparar muito nos conflitos que permitem a extração das terras raras que Nokia precisa para operar, na Suécia ignoram ativamente a destruição das florestas e as condições de trabalho dos polacos contratados por IKEA, do outro lado do mar Báltico, ou a implicação dos seus grandes conglomerados bancários e de inversão na economia especulativa global. A nação norueguesa procura manifestar o seu compromisso contra a mudança climática, sendo cientes de palavra das consequências de que o seu crescimento económico está totalmente construído sobre a grande empresa petrolífera nacional. Muitos dos discursos do “capitalismo verde”, que começamos a conhecer na Galiza também, nascem no intento norueguês de deixar atrás a dependência do cru, sem renunciar ao seu “liderado no mercado energético”.
Nesse avião de volta não deixava de pensar em quantas outras medidas social-democratas na boca de todos os partidos reformistas estavam a ser aplicadas no país que deixava atrás e todas as contradições que implicavam. A maior parte do povo norueguês trabalha na economia terciária e desfruta da chamada “jornada de 6 horas”, por defeito. Porém, esta “revolução” laboral não se sustém, como tampouco acontecerá quando se expanda ao resto da Europa, com a automatização ou o aumento exponencial da produtividade, mas com uma massa trabalhadora migrante invisível da qual eu formara parte, ainda que com certos privilégios derivados da especialização do meu posto de trabalho. As cozinhas, as fábricas e os serviços do país estão ocupados por pessoas migrantes e refugiadas, atraídas pela promessa nórdica de altos soldos e magníficas condições laborais. As remunerações são altas, se as comparamos com a Galiza, mas um remata por descobrir que os benefícios sociais estão desenhados para ser apenas acessíveis à população norueguesa, isolados por desenho numa burocracia à qual só acedes logo de anos de “compromisso com o país”. A medicina pública opera em base a mútuas e o re-pagamento de serviços. Os sindicatos noruegueses procuram ignorar a massa migrante que trabalha lá para empresas intermediárias, muitas com sedes nas repúblicas bálticas.
Quando o avião aterra na Galiza leio sobre os projetos “verdes” para inçar de eólicos o país e a filtração dum rascunho com o plano do governo espanhol para deixar a saúde em mãos das asseguradoras.