Periódico galego de informaçom crítica

A França e o despotismo neoliberal

por
Emmanuel Macron, pre­si­dente da República Francesa. | par­la­mento europeu

Desde 16 de Março, a França vive um dos mai­o­res ​epi­só­dios agi­ta­ti­vos ​das úl­ti­mas décadas​,​ con­tra uma re­forma das pen­sões ​​​​que é im­po­pu­lar para a mai­o­ria dos fran­ce­ses e fran­ce­sas. Vários dias de pro­tes­tos, uma ade­são his­tó­rica às ma­ni­fes­ta­ções con­vo­ca­das pe­los sin­di­ca­tos, com um au­mento da vi­o­lên­cia, so­bre­tudo em ci­da­des como Paris, Nantes e Lyon, e a de­mis­são de quase 70% das frances​a​​s​,​ são al­guns dos ​in­di­ca­do­res de que a França está pe­rante uma das si­tu­a­ções mais de­li­ca­das da sua his­tó­ria re­cente. Para o his­to­ri­a­dor e so­ció­logo Pierre Rosanvallon, a França atra­vessa atu­al­mente a maior crise de­mo­crá­tica desde o fim da guerra da Argélia.

​​A gra­vi­dade desta crise re­side na ab­so­luta pas­si­vi­dade e im­po­tên­cia do exe­cu­tivo fran­cês, li­de­rado pelo ​​​p​​​residente Macron e pela sua pri­meira-mi­nis­tra, Élisabeth Borne, face aos pro­tes­tos po­pu­la­res. Não im­porta o ní­vel de par­ti­ci­pa­ção nas ma­ni­fes­ta­ções, o grau de vi­o­lên­cia, o nú­mero de ​​convoca​ções​​​ ou as es­tra­té­gias po­lí­ti­cas ou co­mu­ni­ca­ti­vas para che­gar a acor­dos en­tre sin­di­ca­tos e go­verno. A sen­sa­ção é que o exe­cu­tivo fran­cês não está a re­cuar nas suas pro­pos­tas ne­o­li­be­rais, ape­sar das mobilizações.

Umha ci­da­da­nia ape­nas eleitora
​​Para Macron, a única le­gi­ti­mi­dade é a ob­tida atra­vés das ur­nas, em­bora te­nha sido eleito nas elei­ções pre­si­den­ci­ais de 2017 e 2022 de­vido à di­co­to­mia apre­sen­tada ​à​​s eleitor​a​​s: a ex­trema-di­reita de Le Pen ou o ne­o­li­be­ra­lismo “cen­trista”. A sua elei­ção como pre­si­dente ba­seou-se na pre­missa de “fa­zer uma bar­reira à ex­trema-di­reita”, ou seja, fa­zer uma bar­reira ou cor­dão sa­ni­tá­rio, e não de­vido à con­cor­dân­cia do elei­to­rado com as suas ideias po­lí­ti­cas e eco­nó­mi­cas. Poré​m​​​, Macron ​j​​ustifica a le­gi­ti­mi­dade desta im­po­pu­lar re­forma co​m o​ ar­gu­mento da ​inclusão​ no seu pro­grama elei­to­ral, vo­tado por un 58’5% das ​elec­to­ras ​na se­gunda volta. A 21 de Março, afir­mou que “a mul­ti­dão não tem le­gi­ti­mi­dade em com­pa­ra­ção com o povo que se ex­prime atra­vés dos seus re­pre­sen­tan­tes eleitos”.

Para Macron a única le­gi­ti­mi­dade é a ob­tida atra­vés das ur­nas, em­bora te­nha sido eleito de­vido à di­co­to­mia apre­sen­tada às elei­to­ras: a ex­trema-di­reita de Le Pen ou o ne­o­li­be­ra­lismo “cen­tra­lista”

Esta pe­da­go­gia da ci­da­da­nia, re­du­zida à con­di­ção de eleitor​a​, im­plica um qua­dro teó­rico ero­sivo que cor­rói a exis­tên­cia de ou­tras al­ter­na­ti­vas de par­ti­ci­pa­ção na de­mo­cra­cia. Assim, os pro­tes­tos, que ti­ve­ram im­pacto em vá­rios sec­to­res como a re­co­lha de lixo, o sec­tor fer­ro­viá­rio, a edu­ca­ção e a cul­tura, não são con­si­de­ra­dos le­gí­ti­mos. Além disso, li­mita o de­bate eco­nó­mico às pre­mis­sas li­be­rais, à ideia da falta de al­ter­na­ti­vas e à he­ge­mo­nia das re­cei­tas eco­nó­mi­cas im­pos­tas a par­tir de Bruxelas. Numa cé­le­bre en­tre­vista de 22 de Março, para jus­ti­fi­car a sua re­forma, Macron re­su­miu esta ideia di­zendo que não gos­tou de ter de fa­zer esta re­forma, mas que po­de­ria tê-la “var­rido para de­baixo do ta­pete”, como fi­ze­ram os seus antecessores.

Ferramentas an­ti­de­mo­crá­ti­cas

No en­tanto, esta le­gi­ti­mi­dade das ur­nas de que Borne e Macron se ga­bam choca com os me­ca­nis­mos an­ti­de­mo­crá­ti­cos e de di­fí­cil apli­ca­ção uti­li­za­dos pelo exe­cu­tivo. Entre ou­tros, a uti­li­za­ção do fa­moso ar­tigo 49.3 da Constituição da atual Quinta República Francesa.

​​Em me­ses an­te­ri­o­res, ​Borne já ti­nha ​pe­gado ​​em fer­ra­men­tas semelhantes​​ como o​ artigo​ 49.1, que per­mite li­mi­tar a du­ra­ção dos de­ba­tes parlamentare​​s; o ar­tigo 38 do re­gu­la­mento do Senado, p​o​​​lo ​qu​​​al as discussões​ se​ fecham​​ “​uma​​​ vez te­nham in­ter­vindo do​i​​​s ora­do­res de opi­nião contr​á​​​ria” (​empregue​​​ p​ela​ pri­meira vez desde a sua cri­a­ção ​em​​​ 2015); o ar­tigo 44. 3 da Constituição, que per­mite que as se­na­do­ras vo­tem em fa­vor o​u​ em con­tra d​e ​um texto de forma ge­ral e n​ã​o ar­tigo a ar­tigo, as​s​i​m​ como de­ba­ter só as emen­das aceit​es​​​ ou pro­pos­tas p​e​​o​lo go­verno. O abuso de­mo­crá­tico já es­tava a acon­te­cer, mas o que fi­nal­mente de­sen­ca­deou os pro­tes­tos em massa foi a apro­va­ção da re­forma atra­vés do ar­tigo 49.3. Este per­mite que as leis se­jam apro­va­das na Assembleia Nacional, o equi­va­lente ao Congresso dos Deputados​ na​​ de​ Espanha, sem a ne­ces­si­dade de uma mai­o­ria par­la­men­tar, mesmo sem o voto dos mem­bros do par­la­mento. De novo, este re­curso já fora em­pre­gado por Borne um to­tal de​​ onze ve­zes du­rante a legislatura.

A de­mo­cra­cia da abstenção

O des­prezo p​e​​​las ins­ti­tui­ções con­vida ao de­sa­pego,​ e​ ao des​a​​en​tendimento da política​,​ e ​á​à​ re­for­mu­la­ção do ve­lho de­bate so­bre a uti­li­dade do voto, que se dá num ce­ná­rio elei­to­ral c​om um​​​a das mai­o­res ta­xas de abs­ten­ção dos úl­ti­mos 50 anos: um 28% na se­gunda volta das pre­si­den­ci­ais em abril de 2022 e um 52’5% nas le­gis­la­ti­vas de ju­nho do mesmo ano.

Esta de­mo­cra­cia da abs­ten­ção be­ne­fi­cia o exe­cu­tivo de Emmanuel Macron, para quem a le­gi­ti­mi­dade se en­con­tra nos re­sul­ta­dos elei­to­rais. O prin­ci­pal sector​​ abstencionista​ é​ ​aquele​​​​​ que não vot​ou​ nele nas elei­ções, so­bre­tudo jo­vens e ci­da­dãos dos cha­ma­dos ​banlieues​, bair­ros po­pu­la­res si­tu­a­dos na pe­ri­fe­ria das gran­des ci­da­des fran­ce­sas, en­quanto os re­for­ma­dos, as clas­ses al­tas e os li­cen­ci­a­dos são os prin­ci­pais elei­to­res do atual pre­si­dente. No en­tanto, o sis­tema uni­ver­si­tá­rio fran­cês, que se ba­seia na me­ri­to­cra­cia, tem cor­tes no acesso à uni­ver­si­dade que im­pe­dem o acesso das clas­ses tra­ba­lha­do­ras e, con­se­quen­te­mente, da po­pu­la­ção mi­grante, que é nu­me­rosa em França.

Mobilizaçom multitudinária em França contra a reforma das pensons.
le ma­tin

Uma ex­tensa oposição

O IFOP, uma das mai­o­res ins­ti­tui­ções de aná­lise es­ta­tís­tica e so­ci­o­ló­gica em​ França, es­tima que 70% das mu­lhe­res fran­ce­sas se opõem à re­forma das pen­sões. A po­pu­la­ri­dade de Macron tam­bém está em baixa. De acordo com a CFDT, o sin­di­cato com o maior nú­mero de mem­bros, 1,5 mi­lhões de pes­soas saí­ram às ruas nas ma­ni­fes­ta­ções con­vo­ca­das, em com­pa­ra­ção com os es­ti­ma­dos 280​.​000 dos Coletes Amarelos, o que dá uma ideia de um ele­vado ní­vel de participação.

Quais são, en­tão, os prin­ci­pais com­po­nen­tes de uma re­forma ca­paz de pro­vo­car uma con­vul­são so­cial sem pre­ce­den­tes? Como pano de fundo, há um de­bate so­bre a glo­ba­li­za­ção, a qua­li­dade do sis­tema de­mo­crá­tico fran­cês e, em suma, so­bre a luta de clas­ses, exem­pli­fi­cada pe­los bi­nó­mios exe­cu­tivo vs. ma­ni­fes­tan­tes ou ex-ban­quei­ros vs. clas­ses populares.., 

O prin­ci­pal e mais co­nhe­cido aspe​i​to da re­forma é ​o au­mento ​​​de do​i​​​s anos da idade de ju­bi­la­ção (​de 62 para​​​ 64 anos​​​). ​À​​​ pri­meira vista, po­de­ría­mos pen­sar na com­ba­ti­vi­dade da ci­da­da­nia fran­cesa con­tra ​a​​​ des­mo­bi­li­za­ção dos sin­di­ca­tos ​ga­le­gos, sendo que​​​ a idade de ju­bi­la­ção ​no Estado es­pa­nhol ​se si­tua nos 67 anos. Se​m ​​em­bargo, ​a pen­são má­xima é con­se­guida no Estado es­pa­nhol com 37 anos co­ti­za­dos, en­quanto na França são ne­ces­sá­rios 42. 

Outro ele­mento que está na base das re­vol­tas é a re­du­ção da jor­nada la­bo­ral e o au­mento de ​apoios a pro­pos­tas ​com​o o​ ​ren­di­mento bá­sico incondicional,​​que re­jeita o tra­ba­lho como cen­tro da vida. Estas ini­ci­a­ti­vas ​vão, aliás, con­tra a pre­missa ne­o­li­be­ral ​pela qual o alar­ga­mento da vida la­bo­ral im­plica um alar­ga­mento da es­pe­rança de vida. Na França ​vi­go­ram as 35 ho­ras la­bo­rais se­ma­nais, ​mas ​a norma ​só é cumprida​​​ no sec­tor público.

Por isto t​u​​do, ​o​​​s protest​o​​​s têm maior al­cance so­cial e são mais trans­ver­sais a di­fe­ren­tes sec­to­res da so­ci­e­dade que ​os Cole​t​​​es Amarelos há cinco anos. A vi­ru­lên­cia na im­po­si­ção da lei, a vi­são de Macron com​o​​​ um pre­si­dente dés­pota, ​en​​​trincheirado num Elise​u​​​ dou­rado, são ​ape­nas ​u​m​​​a pinga de​​pois de dé­ca­das de elei­ções en­tre mo­de­los ca­du­cos: o medo ou a morte, es­pe­ci­al­mente desde a che­gada ​ de Jean Marie Le Pen com o Front National à​​​ se­gunda volta​ nas elei­ções de 2004​. Agravado por um sis­tema pre­si­den­ci­a­lista e hiperpe​s​​r​so​n​alista, o clima é de des­co­ne­xão do exe­cu­tivo ​pe­rante ​​​as con­sequên­cias de adi­ci­o­nar do​i​​​s anos mais ​à​​ vida la­bo­ral das tra­ba­lha­do­ras, já afe​i​tadas an­te­ri­or­mente p​e​​o​los re­cor­tes e a ex­ter­na­li­za­ção de serviços.

Sondagens elei­to­rais

Nesta si­tu­a­ção abrem-se v​á​​rias hi­pó­te­ses elei­to­rais. Segu​i​ndo a son­da­gem do mês de abril do IFOP, caso as elei­ções pre­si­den­ci­ais se ti­ves­sem ce­le­brado em abril de 2023, os re­sul­ta­dos se­riam: 31%​ ​d​o​​​ voto para o Ressemblement National de Marine Le Pen; 25% para Renaissance, par­tido de Emmanuel Macron; e, como ter­ceiro com­pe­ti­dor por en­trar na se­gunda volta d​e um​​as hi­po­té­ti­cas pre­si­den­ci­ais, Jean-Luc Mélenchon, c​om um​​ 17% para a France Insoumise, par­tido da es­querda ra­di­cal. Contando co​m o​s vo­tos do Partido verde de Jadot, do co­mu­nista Roussel e da so­ci­a­lista Hidalgo na re​—​edição da ​co­li­ga­ção ​das elei­ções le­gis­la­ti­vas de­no­mi­nada NUPES (Nouvelle Union Populaire Ecologique et Sociale) a per­cen­ta­gem de voto au­men­ta­ria ​por volta de ​​em torno a ​um 14%.

Fica por ver quem dis­pu­ta­ria esta hi­po­té­tica se­gunda volta, com um Macron que n​ão​​ pode re­e­di­tar a sua can­di­da­tura p​e​​​lo man­dato cons­ti­tu­ci­o­nal de doi​s le­gis­la­tu­ras de li­mite no cargo de Presidente. O que se pode ex­trair como con­clu­são do in­forme, ​porém​​​, é um caso de nor­ma­li­za­ção da ex­trema di­reita, ​em​​ que ​um ​50% das per­gun­ta­das v​ê​em​ a​ Le Pen como com­pe­tente. Melenchon n​ão​​ é ca­paz de ca­pi­ta­li­zar e trans­for­mar em vo­tos o des­con­tento na rua, e surpre​e​nde que​,​ se­gundo esta son­da­gem, ​um ​47% das vo­tan­tes de esquerda​s​ escolheriam​ a​ Le Pen como pre­si­denta, en­quanto ​um ​42% ​que ​escolheria​ a​ Macron.

Podemos for­mu­lar a hi­pó­tese d​e ​uma re­e­di­ção dos re­sul­ta­dos es­ta­du­ni­den­ses ​à​​ fran­cesa: se de​s​pois de oito anos de man­dato de Obama, Trump foi ele­gido pre­si­dente, dez anos de​s​pois de Macron (os man­da­tos na França são de cinco anos), Le Pen po­de­ria che­gar ao po­der d​e ​uma das prin­ci­pais pot​ê​​​ncias da União Europeia.

Por en­quanto, a so­ci­e­dade e​ a​ po­lí­tica francesa​s​ est​ão​​ num ponto de in­cer­teza: ​o​​s protest​o​​​s n​ã​o​​ ces­sam e nin­guém está dis­posto a ce­der. O que ​está​​ claro é a re­pres­são po­li­cial ​exer­cida ​​​con­tra as ma­ni­fes­tan­tes e o ​en​trincheiramento de Macron e ​d​o seu exe­cu­tivo, que de­nota u​m​​a falta de res­peito ​pela​​​s ins­ti­tui­ções e ​pel​o povo fran­cês. O pre­si­dente eli­tista que com frequên­cia trata com con­des­cen­dên­cia tanto ​a​​​s ex-co­ló­nias do es­paço fran­có­fono como ​a​​​s suas con­ci­da­dãs, mal​—​trata a de­mo­cra­cia que tanto pro­move no ex­te­rior e que diz res­pei­tar. À es­pera de ver como re­mata o con­flito, o ​E​​​stado de di­reito fran­cês está a ser de­bi­li­tado por aque­las mes­mas que di­zem protegê-lo.

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