Durante o presente mês de dezembro foi excarcerado o preso político Miguel Garcia Nogales, detido em junho de 2019 no quadro da operação Lusista e privado de liberdade desde então. Os primeiros dois anos e meio da condena foram cumpridos pelo independentista com carácter preventivo, até o momento do seu juízo em janeiro de 2022. Além da prisão, a mesma sentença condenatória impunha também um período de liberdade vigiada (LV), neste caso 1 ano, que acaba de começar a limitar, de uma forma diferente, os direitos do penado. O Código Penal espanhol (CP) coloca no seu artigo 106.2 as possíveis medidas a aplicar, deixando aberta a sua concretização até o momento da excarceração.
Menor liberdade que na prisão
No caso de Miguel, tem proibido sair da província de Ourense, onde mora, bem como contactar por qualquer meio com as pessoas imputadas no seu mesmo procedimento. “É ridículo. Até há uns dias podíamos falar, dentro, e hoje não posso aproximar-me a menos de 500 m. No caso de quem está já fora, devemos coordenar para não assistir aos mesmos eventos, mas não podemos contactar, então tem de ser uma terceira pessoa a tratar entre nós… As condições em liberdade são em muitos aspectos mesmo mais restritivas para mim do que eram no cárcere”.
“As condições em são em muitos aspectos mesmo mais restritivas para mim do que eram no cárcere”, afirma o ex-preso independentista Miguel Garcia
Perguntamos se a província de Ourense é um cerco muito restrito para a sua atividade habitual fora da prisão. “Agora que recebi as medidas, vejo-me obrigado a revogar muitos planos. Minha mãe faleceu estando eu preso e as suas cinzas ficam desde então na sua morada, em Vigo, à espera de eu sair para fazer uma despedida digna com toda a família. Parece que não vou poder estar e que esperamos para nada”.
Também colocam ao independentista a proibição de assistir a qualquer ato público que vise “exaltar ou enaltecer qualquer grupo terrorista ou algum dos seus membros, incluído qualquer tipo de ato em que seja ele o homenageado”. Isto, além de representar um rude assanhamento, bate frontalmente com a sentença da operação Jaro, que reconheceu plena legitimidade a celebrações como a Galiza Combatente ou o recebimento de presas.
Outras medidas destacam-se pela sua ambiguidade. O condenado não poderá participar em qualquer ato público a “exibir a sua atividade terrorista” e deverá evitar o acesso a lugares virtuais “proclives à radicalização”. A jurista Raquel Crespo, do observatório Esculca, chama a atenção para a insegurança de medidas como aquelas: “o incumprimento de alguma das medidas da LV constitui um novo delito diferente, de quebrantamento de condena, e o problema é que, com tal indefinição, o penado pode estar a delinquir sem saber”. Na mesma linha se manifesta o afetado: “Eu não sei o que entendem que é a minha atividade terrorista, nem sei que sites consideram proclives à minha radicalização. Como pressupõem que me vou radicalizar… ainda mais? Lendo Galizalivre? Lendo Clara Corbelhe? Também não sei se haverá qualquer coisa mais radical que a Antena 3!”. A psicóloga Concha Rousia identifica nesta situação de incerteza o que as terapias sistémicas denominam de duplo vínculo: um questionamento constante não só da própria moral, como também da própria perceção. “Já não sabe se o que quer fazer está bem ou não. É comum em mulheres maltratadas, submetidas aos sinais contraditórios dos agressores”.
Joam Manuel Sanches foi condenado no mesmo processo que Miguel, a três anos de cadeia mais um de liberdade vigiada. “É um incómodo em muitos sentidos. Tens que levar constantemente uma pulseira ligada a um geolocalizador e é responsabilidade tua que tenha bateria e cobertura. Eu gosto muito de ir à montanha e, depois de estar preso, estive um ano sem ir porque perdia sinal”. Fala-nos também do estigmatizante que é portar a pulseira e o stresse que produz. “A gente tem associado esse dispositivo a violadores e maltratadores. Por vezes, estando eu no super, perdia sinal e começava a apitar; quando ia ao cinema ou ao teatro tinha que andar pendente de que não soasse ali”. Este estado de alerta constante, diz Rousia, causa “uma desregulação do sistema nervoso autónomo que deveria levar implícito que lhe pagassem sessões semanais de psicoterapia”.
Sanches foi novamente denunciado e fica pendente de juízo por quebrantamento de condena, por ter assistido à homenagem a Martinho organizada em 2022 pelas Assembleias Abertas Independentistas, por ocasião do Dia da Galiza Combatente.
Liberdade vigiada e neoliberalismo
A LV surgiu no ordenamento jurídico espanhol como uma medida cautelar, portanto aplicável só até ao momento da condenação. Entretanto, as reformas do CP de 2010 e 2015 avançaram na sua incorporação como medidas finais, compatíveis com a privação de liberdade, sempre que se dê uma condição nas condenadas: a perigosidade.
Num artigo deste mesmo periódico (julho 2022) David Soto colocou algumas das fraquezas argumentais da LV. No seu dizer, a imposição de uma sanção deve responder à culpabilidade da pessoa acusada, não a uma coisa “tão etérea como a perigosidade”. Aliás, a LV pós-penitenciária reconhece, de facto, a incapacidade das prisões para ressocializar, sendo que os réus abandonam a prisão constituindo ainda um perigo para a sociedade; o Estado renuncia assim ao discurso clássico de legitimação das prisões como instituições para a reinserção.
No livro Vidas culpáveis (Laiovento, 2017) Borxa Colmenero identifica este tipo de medidas como características da gestão neoliberal do crime. Em vez de punir, ressocializar e disciplinar, os regimes neoliberais transferiram a responsabilidade para os próprios indivíduos. Em conversa com o autor, exemplifica: “neste caso deverá ser Miguel a controlar a sua própria conduta, e não mais o Estado, que só monitorizará a sua atividade”.
O estado de alerta constante, ligado às medidas de liberdade vigiada, causa “uma desregulação do sistema nervoso autónomo que deveria levar implícito que lhe pagassem sessões semanais de psicoterapia”, em palavras da psicóloga Concha Rousia
Para não investir grandes energias na vigilância, os Estados neoliberais põem o foco naqueles coletivos sociais que, entendem, são propensos à criminalidade, colocando-os no escopo do controlo: migrantes, pessoas em exclusão social e, naturalmente, aqueles que apelidam de terroristas.
É neste sentido que a União Europeia tem colocado as suas diretrizes, a olhar para o exemplo de medidas como a Parole ou a Probation, provenientes dos EUA e fundamentadas nesta lógica.
O independentismo galego, um perigo político
Portanto o perigo nestes casos não é atribuído a um sujeito, mas a um delito: presume-se ao tipo penal uma propensão à reincidência, o que acarreta vários problemas.
Em primeiro lugar, diz Raquel Crespo, “são em grande medida os media a construir esse suposto perigo, a difundir uma insegurança inexistente, aconteceu em casos mórbidos como o de Alcàsser, Marta del Castillo, Mariluz…”. Isto mesmo concluiu a jornalista Helena Domínguez, que no seu A construción mediática do conflito: o caso de ‘Resistência Galega’ (Axóuxere, 2020) documentou largamente as deficientes práticas jornalísticas que delinearam a imagem pública da suposta organização armada.
Por sua parte, Colmenero, que exerceu a defesa jurídica de não poucas acusadas do independentismo organizado, assinala um segundo problema. “Eu tenho todos os sumários do ciclo da Resistência Galega, desde 2005. Dentre as dezenas de processadas, há um único caso de reincidência”. Nesta linha aponta também a conduta das presas independentistas na prisão, alheias a qualquer conflito e sem expedientes que pudessem justificar a perigosidade. O jurista lembra um facto: embora à já extensa inatividade armada, as memórias da Fiscalía General del Estado continuam, ano após ano, incluindo o independentismo galego entre as principais preocupações. “O perigo então não é jurídico, mas político, não temem que volte a delinquir: temem que volte a militar e, aí sim, a reincidência é altíssima”.
Alinha então com o seu colega, David Soto, na conclusão do artigo citado: “se a pessoa condenada não fosse independentista, mui possivelmente não estaríamos a falar de uma extraordinária perigosidade”.
Um processo sem garantias
Para além da medida, também o procedimento que a medeia é um caminho jurídico inçado de irregularidades. De novo Raquel Crespo dá algumas chaves sobre o assunto.
O CP determina que a concretização das medidas de LV devem ser comunicadas ao condenado com uma antecedência de dois meses, recomendando a Orden de servicio 5/2021 da Dirección General de Ejecución Penal y Reinserción Social um prazo preferente de até cinco meses. Neste caso, Garcia Nogales foi notificado menos de um mês antes da sua excarceração.
Existe o chamado ‘Recurso de súplica’ que “deve resolver o mesmo tribunal que ditou a sentença, retificando a sua decisão, o que é quase impossível”, aponta a jurista Raquel Crespo
“O sentido dessa margem é garantir o direito de audiência e de recurso, isto é, que possa ser ouvido numa vista e recorrer a proposta”, diz a jurista. Já o próprio Miguel Garcia declara: “Quando me transmitiram a proposta de medidas, o formulário tinha uma cela de conforme/desconforme, eu disse que estava desconforme e a funcionária marcou. Essa foi toda a minha audiência”, o que corroboraram fontes de Esculca.
Quanto aos recursos, a situação contempla apenas o chamado Recurso de súplica, que “deve resolver o mesmo tribunal que ditou a sentença, retificando a sua decisão, o que é quase impossível”, aponta Crespo. Ao ser uma medida sem quase andamento judicial, os procedimentos não estão totalmente determinados e as hipóteses de batalhar são mais que em outros casos com maior jurisprudência. O próprio Garcia Nogales assinala como uma das frentes importantes a procura da admissão de mais recursos, com a consequente intervenção de outros tribunais.
O organismo anti-repressivo Ceivar organizou uma concentração solidária de boas-vindas para Miguel na sexta dia 15, na cidade de Ourense. Uns dias antes, foi recebido na saída da prisão por familiares e amizades, que celebraram a sua volta cantando para ele Fuxan os ventos: “E ao vento dizia: pronto hei-de volver para tirar a fome, para poder comer!”
As misérias de ‘Interior’
A concretização das medidas de LV deve ser determinada pelo mesmo tribunal que condenou, neste caso da Audiencia Nacional, mas a proposta parte da Junta de Tratamiento do cárcere definitivo do réu. “Quando solicitas uma permissão para sair, és entrevistado. Eu, sabendo que iam concretizar as medidas da LV, estava aguardando pela entrevista”, conta Garcia. Nesta ocasião, fazia todo o sentido avaliar a sua perigosidade antes de determinar as condições.
“De repente um dia, sem prévia avaliação, notificam-me das medidas. Eu perguntei a uma funcionária da Junta de Tratamiento e ela nem sabia de que estava a falar, nem sequer se tinham reunido para a tomada de decisões. Passados uns dias, perguntou a outros membros. «Isso vem dado de Madrid. Convosco já sabes, é assim». É curioso como o debate que há fora, sobre se somos ou não prisioneiros políticos, dentro é totalmente inquestionado: mesmo as carcereiras o reconhecem”.
Aprofundamos nesta questão com o jurista e criminólogo David Castro e com o processualista David Soto. Que significa que “vem dado de Madrid”? Segundo dizem, muitas decisões no âmbito penitenciário são tomadas pelo Centro Directivo General. Advertem ser esta uma denominação consuetudinária e o seu funcionamento informal, porquanto “não há ordens nem circulares que o regulem”. Trata-se de uma junta das direções dos centros penitenciários espanhóis integrada na Secretaría General de Instituciones Penitenciarias, que, além de funções de coordenação, assume também a emissão de algumas diretrizes. Com efeito, apesar do procedimento marcado na legislação, nos casos de terrorismo são agentes do establishment espanhol a decidir sobre a vida das pessoas penadas. Porém, aquela informalidade empece a observação real e completa do seu funcionamento. Os peritos declaram: “a tua pesquisa atingiu o limite do pesquisável”
E, sobre outros presos, a vigilância cai com a mesma severidade? Garcia Nogales é claro: “O que posso assegurar é que os presos comuns são avaliados e é realmente a prisão quem elabora a proposta”. Joam Manuel Sanches saiu da cadeia de Teixeiro em junho de 2022. “Eu fui avaliado, num primeiro momento emitiram um relatório favorável e parecia que ia ficar em nada, mas, de repente, sem novas entrevistas, retificaram a proposta em favor de uma outra bem mais severa, que é a que me foi
aplicada”, como corroborou também o seu advogado Daniel Amelang. Algumas das fontes apontam para uma intervenção de Madrid no processo.
Não é trivial, nesta questão, a composição do governo. Desde a incorporação da LV como medida penal em 2010, outras presas têm saído da prisão sem conhecer, até agora, tal dureza e assanhamento. A LV de Antom Santos foi declarada sem efeito. Diego Santim teve como única medida acudir periodicamente a sessões com uma trabalhadora social durante um ano e meio. No caso de Maria Osório, o recurso deixou como única obrigação a de assinar presencialmente com frequência fixa. Estes casos decorreram quando ainda havia guerrilheiras galegas na clandestinidade e nalguns deles os delitos eram de posse ou depósito de explosivos. Agora, com um comunicado do Coletivo de Pres@s Independentistas Galeg@s declarando o final do ciclo político-militar, o governo de PSOE-UP, agora PSOE-Sumar, entende, paradoxalmente, que a perigosidade do independentismo é maior.
Tal como denunciou Garcia Nogales num artigo no Galiza Livre, o respeito pelas nações oprimidas é só uma posse do governo, e a Galiza “o saco de boxe com que a linha dura do PSOE paga a frustração de não poder seguir encarcerando democratas catalães”.