Em abril de 2004, o movimento anti-represivo basco celebrava uma Conferência Internacional de Solidariedade em Donostia. O encontro reunia 26 delegações dos cinco continentes com o objetivo de “criar laços de solidariedade” entre presos e presas políticas do mundo. Bascas, catalãs, corsas, bretãs, irlandesas, saarauís, palestinas, argentinas, chilenas… partilharam três jornadas de convívio nas que Galiza participou com uma comitiva formada por três integrantes. O evento concluiu com a instauração do 17 de abril como Dia Internacional das Presas Políticas. A efeméride, que cumpre o seu 19º aniversário, permite pôr a nu as práticas, transos e atitudes das militantes presas na atualidade.
O que é uma presa política? Não existe, oficialmente, uma definição exata ou um reconhecimento por parte do sistema estatal responsável do seu cautério. Apenas há a delimitação do termo à força de anos e práticas policiais, judiciais e penitenciárias. “Em Ocidente, por exemplo, só empregam a etiqueta fora do seu território, em que dão em chamar ‘países não democráticos’, mas não reconhecem que nas suas cadeias haja presas políticas”, expõe Yolanda Ferreiro Novo, advogada e integrante de Esculca, observatório para a defesa de direitos e liberdades.
Esta distinção implícita nas práticas e atitudes estatais permitiu que movimentos civis e políticos chegaram a um espaço de consenso sobre o seu significado. “Som um coletivo que se auto-define e entende que os delitos pelos quais são condenados têm a ver com a sua ideologia política, com as suas ideias”, propõe Ferreiro. Em Ceivar, organismo popular anti-repressivo, coincidem em assinalar “a militância política na rua” como o detonante para o encarceramento, e também somam “a atitude de luta pelos seus direitos” dentro da cadeia.
Segundo os cálculos de Ceivar, “atualmente há 176 pessoas que ingressaram na cadeia por causas políticas, se bem é possível que haja alguma mais”
Presa política, então, é aquela para quem a estância em prisão é uma reação repressiva do Estado e, também, o alongamento da sua atividade militante. Não existe interrupção da prática política, mas sim mudança de cenário, com menos ferramentas e uma margem de manobra mínima. Aqui o Estado regulariza o seu regime de vida e, ao mesmo tempo, converte o seu presídio em estratégia. “Não cessa em intentar desviar o conflito político da sua origem: faz um trabalho constante para se apropriar da perspetiva histórica do problema”, atestam as conclusões finais do encontro de 2004.
Negar a existência das presas políticas, deslocar o foco à conduta punida e não estabelecer nenhum outro recurso social para gerir o conflito anula qualquer possibilidade de diálogo e desvirtua a realidade social em eque nasce o problema. Afasta mais a solução, aproxima-se à revanche.
Ideias perigosas
Os motivos pelos que as pessoas chegam a ser presas políticas são múltiplas. Há presas anarquistas ou comunistas, responsáveis de sabotagens ou outros protestos. Porém, a maior parte são indivíduos ligados “a movimentos de liberação nacional”, sinalam em Esculca, lutas onde convergem muitas sensibilidades (feminismos, defesa da terra, luta de classes…). Eis os casos do Curdistão, o Saara, a Argentina, Palestina…
Nas cifras do Estado espanhol, esta tendência repete-se. Atualmente ainda continuam em prisão comunistas dos GRAPO e PCR, o anarquista Pombo da Silva ou o rapper anti-fascista Pablo Hásel, mas a maioria destas reclusas estão ligadas ao independentismo basco e galego. Os dados coincidem com a última memória da Fiscalia, que identifica os três principais inimigos do Estado: a ETA e a sua contorna, os GRAPO e o movimento independentista radical galego.
Segundos os cálculos de Ceivar, “atualmente há 176 pessoas que ingressaram na cadeia por causas políticas, se bem é possível que haja alguma mais”. O não reconhecimento do caráter político das presas dificulta o registo. Deste modo, segundo os últimos dados de Instituciones Penitenciarias, hoje em dia há 56.614 pessoas presas, das quais só 7% som mulheres. Em consequência, as presas políticas seriam 0,31% da população reclusa. “Nas décadas de 80 e 90 chegou a haver arredor de 900 presos políticos”, detalha Antom Garcia Matos, porta-voz do CPIG (Coletivo de Presos/as Independentistas Galegos).
Uma minoria organizada
Se bem som só um segmento das reclusas, estas presas destacam entre o resto pela sua movimentação e ação coletiva dum mesmo grupo político. A fronte comum é indispensável contra as práticas da instituição. Dentro das que historicamente foram denunciadas destacam a intervenção das comunicações, a liberdade vigiada ao sair do cárcere, as medidas agravadas para aceder a direitos penitenciários, o FIES (Ficheiros de Internas de Especial Seguimento) e o fim da dispersão.
“O FIES é um documento administrativo declarado nulo pelo Tribunal Constitucional há muitos anos porque supunha uma mudança no regime de vida das pessoas presas”, lembra a advogada de Esculca. Agora não existiria tal ficheiro, “mas continuam existindo pessoas às que se lhe aplica uma redução de direitos na cadeia, recorrendo a miúdo a sanções como o isolamento, a limitação de comunicações e atividades, horas de pátio…”.
Se bem som só um segmento das reclusas, estas presas destacam entre o resto pela sua movimentação e ação coletiva dum mesmo grupo político
Por outra parte, a dispersão das presas por centros penitenciários afastados da sua residência é uma medida que não conta com respaldo legal. Hoje fica como um traço residual entre o coletivo de presas políticas, exceto Pombo da Silva, “galego que acaba de ser deslocado a Madrid”, fazem notar de Ceivar. Ferreiro, pelo contrário, põe ênfase em que a medida não é “exclusiva das presas políticas”, senão que é uma injustiça da qual adoecem todas as pessoas inseridas no sistema penitenciário.
Por seu lado, em Ceivar fazem notar o poder do Estado em desativar aquelas vagas de solidariedade com as pessoas presas. “Hoje há mudanças na dispersão, justo a questão que mais empatia e apoio lograra socialmente”, apontam. O organismo também insiste em assinalar a possibilidade de direitos penitenciários serem usados como “moeda de troca”, que poderia neutralizar os protestos e as correntes de colaboração comum entre presas.
Margem de ação mínima
Estas práticas organizadas e reivindicativas das reclusas por razões políticas são muito limitadas. “O jejum, as greves de fome e higiene, as auto-mutilações… são protestos muito extremos porque a margem de ação é pequena”, fazem ver. Esta atitude de luta dentro da cadeia implica não entrar em conivência com o sistema, fugir de chantagens e de situações que possam limitar a sua luta e solidariedade.
O CPIG destaca, entre estas ações, as greves de fome dos GRAPO e PC® ou a desobediência e revoltas do EG para lograr o reagrupamento. “Contudo, cada centro penitenciário é um pequeno ecossistema, e nem sempre se modula do mesmo jeito”, relata Matos. Encaixam estas declarações no quadro de um dos últimos comunicados do coletivo, que advogou por “desativar a frente carcerária naqueles aspetos que implicam um prolongamento inecessário da prisão”.
Do CPIG comparam o presente cenário “com os últimos presos do EGPGC”, que desfrutaram de permissões, “que são tão direito legal como participar em ateliês”
Se a prisão é um alongamento do conflito na rua, Matos entende que “a luta contra o sistema penitenciário nunca foi um objetivo em si mesmo (…) pelo que cumpre readequar as táticas carcerárias, mantendo linhas vermelhas que protejam a nossa dignidade, já que o movimento social não deu mostras de revalidar as vias de tensão social”. Compara, da mesma maneira, o presente cenário “com os últimos presos do EGPGC”, que desfrutaram de permissões, “que são tão direito legal como participar em ateliês”.
Comuns e políticas
Em definitivo, as presas políticas podem ser distinguidas das comuns pelo motivo do seu presídio, mas sobretudo a sua organização e, por extensão, o apoio. “Quantitativamente não são quem mais maltrato ou tortura sofrem, mas som das mais conflituosas com o sistema pelo seu conhecimento, a sua organização e os seus protestos”, assegura Yolanda Ferreiro.
A relação entre os dous grupos, que depende exclusivamente da pessoa e do contexto de cada centro, deita luz sobre dilemas ainda por explorar. “É possível um estado democrático com presas políticas?”, questionam as conclusões do encontro de 2004. Quase vinte anos depois, a pergunta ecoa. De Esculca lançam outra. É possível integrar as lutas de presas político-ideológicas com as económicas, ou comuns? É a luta contra o Estado, contra a prisão, ou a favor de uma outra sociedade?