Periódico galego de informaçom crítica

Ailton Krenak: o coração no ritmo da terra

por
Ailton Krenak. neto gonçalves

No dia 5 de outubro de 2023 foi anunciada a eleição de Ailton Krenak para ocupar a cadeira número 5 da Academia Brasileira de Letras (ABL), que estava vazia trás a morte de José Murilo de Carvalho, em agosto.

A et­nia Krenak, mas­sa­crada desde o sé­culo XVIII, tanto pe­los por­tu­gue­ses quanto pelo es­tado bra­si­leiro, per­tence ao que aque­les cha­ma­ram de po­vos “bo­to­cu­dos”, e hoje ocupa re­giões do Mato Grosso, Minas Gerais e São Paulo. O seu nú­mero, se­gundo da­dos de 2014, está re­du­zido a ape­nas 434 pes­soas. Sobrevivente des­ses mas­sa­cres, Ailton Krenak tem uma am­pla tra­je­tó­ria como li­de­rança e ati­vista pelo me­nos desde os fi­nais da dé­cada de 1970 e é au­tor de li­vros como Ideias para adiar o fim do mundo (2019), A vida não é útil (2020), O ama­nhã não está à venda (2020) ou Futuro an­ces­tral (2022).

A fi­lo­so­fia in­dí­gena ela­bo­rada por Krenak é uma emenda à to­ta­li­dade do ca­pi­ta­lismo, pois nega a ló­gica da pro­pri­e­dade e do in­te­resse pri­va­dos. E a crí­tica é feita igual­mente às di­rei­tas e ao ne­o­li­be­ra­lismo e às es­quer­das re­for­mis­tas, re­pre­sen­ta­das pelo con­sumo dito cons­ci­ente e o am­bi­en­ta­lismo da sus­ten­ta­bi­li­dade, que Krenak de­no­mina de “vai­dade pes­soal”. Na sua pro­posta, não existe tran­si­ção pos­sí­vel den­tro do ca­pi­ta­lismo: ape­nas a re­sis­tên­cia à ago­nia da morte.

Utilizando como me­tá­fora o rio Doce (o Watu para o seu povo), que mer­gu­lhou baixo uma ca­mada de gra­nito para não su­por­tar mais o en­ve­ne­na­mento das suas águas, Krenak ad­verte que “no tal ca­pi­ta­lo­ceno que es­ta­mos ex­pe­ri­men­tando não res­tará ne­nhum lu­gar da Terra que não seja como o corpo desse rio, as­so­lado pela lama.” (2022)

O ques­ti­o­na­mento es­tende-se ao pen­sa­mento an­tro­po­cên­trico que pre­co­niza a ex­cep­ci­o­na­li­dade e a cen­tra­li­dade hu­ma­nas. Para o fi­ló­sofo bra­si­leiro a vida hu­mana é mais uma, em es­tado tran­si­tó­rio como to­das, e sem trans­cen­dên­cia es­pe­cial no con­junto das vi­das pos­sí­veis. Frente às ideias de evo­lu­ção e de­sen­vol­vi­mento, an­tro­po­cen­tra­das, ur­ba­nas e tec­no­ló­gi­cas, Krenak traz o ‘nós’ ori­gi­nado nos não hu­ma­nos: “a pe­dra e a água nos im­pli­cam de ma­neira tão ma­ra­vi­lhosa que nos per­mi­tem con­ju­gar o nós: nós-rio, nós-mon­ta­nhas, nós-terra. Nos sen­ti­mos tão pro­fun­da­mente imer­sos nes­ses se­res que nos per­mi­ti­mos sair de nos­sos cor­pos, dessa mes­mice da an­tro­po­mor­fia, e ex­pe­ri­men­tar ou­tras for­mas de exis­tir.” (2022).

A fi­lo­so­fia in­dí­gena ela­bo­rada por Krenak é uma emenda à to­ta­li­dade do ca­pi­ta­lismo, pois nega a ló­gica da pro­pri­e­dade e dos in­te­res­ses pri­va­dos. E a crí­tica é feita igual­mente às di­rei­tas e ao ne­o­li­be­ra­lismo e às es­quer­das reformistas

E re­volta-se con­tra a ur­ba­ni­za­ção an­si­osa, de­pre­da­dora e in­su­por­tá­vel dos que já não sa­be­mos viver,“presença ba­ru­lhenta dos hu­ma­nos ur­ba­nos, que sem­pre que­rem mais e, se pre­ciso for […] fa­zem bar­ra­gens em tudo quanto é ba­cia para sa­tis­fa­zer a sede in­fi­nita de suas ci­da­des, casa dos que já não sa­bem vi­ver nas águas e nas flo­res­tas.” (2022).

O re­jei­ta­mento da or­ga­ni­za­ção ca­pi­ta­lista e das suas es­tru­tu­ras ins­ti­tu­ci­o­nais (como o Estado, por exem­plo) en­raíza-se­num pen­sa­mento ra­di­cal­mente in­dí­gena e ame­rín­dio, sem dí­vi­das com ide­o­lo­gias im­por­ta­das do dito “mundo oci­den­tal”, como o mar­xismo: “as­sim como o vento vai fa­zendo o ca­mi­nho dele, as­sim como a água do rio faz o seu ca­mi­nho, nós na­tu­ral­mente fa­ze­mos um ca­mi­nho que não afirma es­sas ins­ti­tui­ções como fun­da­men­tos para a nossa saúde, edu­ca­ção e fe­li­ci­dade” (2015).

Nas dé­ca­das de 1980 e 1990, Krenak, junto com li­de­ran­ças como Davi Kopenawa e Raoni, teve um pa­pel re­le­vante na in­ter­na­ci­o­na­li­za­ção da luta pelo ter­ri­tó­rio e a so­bre­vi­vên­cia da Amazônia e dos po­vos da flo­resta, fa­zendo re­pe­ti­das vi­a­gens ao he­mis­fé­rio Norte para re­a­li­zar ações po­lí­ti­cas e re­ce­ber prê­mios, acom­pa­nhado por no­mes muito co­nhe­ci­dos da mú­sica pop glo­bal. Na mesma época foi co­fun­da­dor da União das Nações Indígenas e da Aliança dos Povos da Floresta e in­te­grou a sub­co­mis­são que tra­tava dos as­sun­tos dos po­vos in­dí­ge­nas e ou­tras “mi­no­rias” nos tra­ba­lhos de re­da­ção da Constituição ci­dadã de 1988.

Um dos mo­men­tos mais mar­can­tes da Assembleia Constituinte foi no dia 4 de se­tem­bro de 1987, quando Krenak ocu­pou a tri­buna e dis­cur­sou so­bre a ne­ces­si­dade de re­co­nhe­cer o pa­pel dos po­vos ori­gi­ná­rios e a ur­gên­cia da de­mar­ca­ção dos seus ter­ri­tó­rios. Vestido com um terno branco que iria criar o dra­má­tico con­traste com o seu rosto pouco a pouco pin­tado com je­ni­papo preto, sím­bolo de luto (as ima­gens são fa­cil­mente lo­ca­li­zá­veis na in­ter­net), con­se­guiu a apro­va­ção da emenda po­pu­lar que su­pri­mia dois ar­ti­gos da Constituição que de­cla­ra­vam as pes­soas in­dí­ge­nas “in­ca­pa­zes” (e, por­tanto, tu­te­la­das) e des­pos­suía de di­reito à terra in­dí­gena aque­les que a bu­ro­cra­cia ava­li­asse como “acul­tu­ra­dos” e, por­tanto, “não indígenas”.

Nas dé­ca­das de 80 e 90 Krenak, junto com li­de­ran­ças como Davi Kopenawa e Raoni, teve um pa­pel re­le­vante na in­ter­na­ci­o­na­li­za­ção da luta pelo ter­ri­tó­rio e a so­bre­vi­vên­cia da Amazônia e dos po­vos da floresta

Ambas ques­tões vol­ta­ram à pauta po­lí­tica em ou­tu­bro deste ano, quando o pro­jeto de Lei 2.903/2023, ve­tado par­ci­al­mente pelo pre­si­dente Lula, pre­ten­dia reins­tau­rar a tese do Marco Temporal, já der­ru­bada pelo STF e, se­gundo a qual, para ser de­mar­cado, um ter­ri­tó­rio in­dí­gena te­ria que es­tar efe­ti­va­mente ocu­pado em 1988, ob­vi­ando as in­va­sões e mas­sa­cres co­me­ti­dos du­rante a di­ta­dura mi­li­tar. O pro­jeto tam­bém per­mi­ti­ria a de­sa­pro­pri­a­ção de ter­ras de co­mu­ni­da­des que ti­ves­sem per­dido os tra­ços cul­tu­rais indígenas.

A tra­je­tó­ria de Krenak, re­tra­tada no li­vro de en­tre­vis­tas Encontros, de 2015, acom­pa­nha a evo­lu­ção do mo­vi­mento in­dí­gena e as es­tra­té­gias para ar­ti­cu­lar po­li­ti­ca­mente uma luta se­cu­lar de re­sis­tên­cia por meio de ali­an­ças, por ve­zes com ini­mi­gos tra­di­ci­o­nais (como po­vos in­dí­ge­nas en­fren­ta­dos en­tre si), e ou­tras com ini­mi­gos re­cen­tes como se­rin­guei­ros e ri­bei­ri­nhos, que che­ga­ram à Amazônia como ponta de lança da in­va­são ca­pi­ta­lista e trás a “eli­mi­na­ção do pa­trão”, se con­ver­te­ram em ali­a­dos na cons­tru­ção de uma frente de po­vos da flo­resta. A ali­ança com Chico Mendes, as­sas­si­nado em 1988, é em­ble­má­tica desse processo.

Pode ser dis­cu­tida a im­por­tân­cia con­tem­po­râ­nea de ins­ti­tui­ções como a ABL, ou pro­ble­ma­ti­zar uma aca­de­mia que foi até há bem pouco re­frac­tá­ria à in­clu­são das vo­zes di­ver­sas que com­põe o pen­sa­mento bra­si­leiro, mas a elei­ção de Krenak é trans­cen­dente pelo que tem de re­co­nhe­ci­mento do pen­sa­mento in­dí­gena como a maior con­tri­bui­ção cul­tu­ral e ci­vi­li­za­tó­ria da contemporaneidade.

O último de O bom viver

Ir Acima