“Por que motivo descer sempre ao nível das percepçons mais estúpidas e louvá-las como senso comum? O senso mais comum é o dos homens adormecidos, que o exprimem roncando”.
H. D. Thoreau, Walden ou a vida nos bosques
B. é um militante esquerdista que, num impulso superior às suas forças, introduz cada dia na internet um cumprido reconto de costumes, atos e predileçons políticas, permitindo o monitoramento da sua vida inteira por parte da polícia e dos serviços secretos; D. é umha adolescente lastrada polos complexos que foi suspendendo devagar as relaçons cara a cara, geradoras de desavenças e sofrimentos, para se devotar de sol a sol a cultivar amizades virtuais, a um tempo que se trata dos problemas cervicais que causa a sua adiçom às próteses tecnológicas; H. é um tertuliano de direitas, preocupado com a segunda transiçom, que nos debates televisivos perde o fio da polémica, pois tem a necessidade de consultar em tempo real a resposta dos seus seareiros pola rede; T. é um homem de mediana idade que engrossa cada ano o seu arsenal de aparelhos para praticar sexo solitário, dirigido por figuras fantasmais que dançam num ecrã: “muito melhor que com mulheres de verdade”, confessa num documentário.
Alviscamos apenas um assomo do que está por vir; umha espécie de indefetível destino tecnológico dita que o meio artificial medre mais e mais até abafar a nossa completa existência.
Há apenas duas décadas, cenas como estas iam ser consideradas retalhos dum relato de ficçom escorado ao grotesco. Em 2016, som alguns dos milheiros de fragmentos que componhem a nossa sociedade, enchendo a grelha televisiva. Suscitam a indiferença ou, no máximo, umha triste resignaçom.
A um extremo ou outro do espectro político, impom-se umha coincidência: alviscamos apenas um assomo do que está por vir; umha espécie de indefetível destino tecnológico dita que o meio artificial medre mais e mais até abafar a nossa completa existência. Conceber um limite a este processo é o pior dos tabus. A mais inimaginável das utopias.
É doado deduzir que este gigantismo obedece a um plano, que parte de umha aliança interesseira das classes dominantes, as elites políticas, e umha legiom de pesquisadores amorais só estimulados polo progresso técnico. Quem desbotar as teses conspirativas, pode pensar que a escravidom moderna se amplia num processo impessoal e autónomo, carente de diligência e apesar de todo omnipotente. Esta hipótese, nom de todo fantasiosa, resulta bem mais perturbadora.
De umha maneira ou doutra, umha corrente subterrânea, subtraída ao debate, rói os fundamentos do que considerávamos (mais ou menos criticamente) umha sociedade. Nos anos 50, o cientista José M. R. Delgado anunciou-no com claridade: “Pode-se evitar o conhecimento? Nom se pode! Pode-se evitar a tecnologia? Nom se pode! As cousas seguirám para a frente apesar da ética, apesar das crenças pessoais, apesar de tudo”. Assim justificava os avanços em lobotomia e implantaçom de elétrodos cerebrais, impulsionados com especial interesse pola inteligência estado-unidense. Na altura, servírom para a eliminaçom psicológica de ‘anormais’ e dissidentes. Longe da crueldade, e num dos exemplos sobranceiros de dominaçom doce, muitos neurobiólogos vivem consagrados à chamada propaganda inteligente, que conduz os hábitos de consumo com estímulos subtis sobre as nossas emoçons e lembranças. Nem a ditadura mais violenta de antano sonhou com tal capacidade de controlo sobre os comportamentos da multidom; claro que tampouco nenhum tirano imaginou que os próprios súbditos figessem passear pola passarela voluntariamente intimidades e fílias, anedotas rotineiras ou opinions sobre a mais minúscula minúcia política.
Nos anos 50, o cientista José M. R. Delgado anunciou-no com claridade: “Pode-se evitar o conhecimento? Nom se pode! Pode-se evitar a tecnologia? Nom se pode! As cousas seguirám para a frente apesar da ética, apesar das crenças pessoais, apesar de tudo”. Assim justificava os avanços em lobotomia e implantaçom de elétrodos cerebrais, impulsionados com especial interesse pola inteligência estado-unidense. Na altura, servírom para a eliminaçom psicológica de 'anormais' e dissidentes.
Nos mesmos anos em que Delgado e outros cientistas desenhavam a tomada do cérebro, um discreto pastor protestante, Jacques Ellul, dava a lume A idade da técnica. Ellul ousou nomear o inominável, e por isso, apesar de um tom esquisitamente comedido e de umha procura confessa da neutralidade, ainda é um grande desconhecido nas nossas universidades. A geraçom da pós-guerra medrou baixo o temor da guerra nuclear e receou dos efeitos desumanizadores e da grande produçom e do urbanismo contemporâneo; este autor francês assinalou premonitoriamente que tais manifestaçons eram apenas os começos. Da guerra, a tecnologia passaria à vida quotidiana, e desta daria o salto para a intimidade: ‘quando a técnica penetra em todos os âmbitos, mesmo no próprio homem, que vira para ele um objeto, a técnica deixa de ser objeto para o homem e vira na sua própria substância; entom nom se situa já frente ao homem, senom que se integra nele, e passeninho absorve‑o”
Da guerra, a tecnologia passaria à vida quotidiana, e desta daria o salto para a intimidade
Quanto mais peso atingem numha sociedade os puros indivíduos, desprovidos de dimensom comunitária e entregues a apetites e caprichos, mais aginha avança esta absorçom. Por isso o consumismo ‑e a sua versom moderna de apego ao ‘gadget’- penetra a modo em sociedades ditas atrasadas, e ainda enfrenta certa desconfiança dos nossos velhos. Ao domínio dos aparelhos cumpre-lhe este panorama, tam bem descrito polo militante anti carcerário César Manzano: “é umha moreia de sujeitos doentes, encaixotados, passivos, cansados, estressados, num estado anímico permanente de ansiedade difusa cuja única saída é o recurso à droga pontual e desbocada, aos psicofármacos, e a nom pensar na nossa condena aceite”.
Neste ponto do relato costumam aparecer os que nos alertam contra o mito da Arcádia e temem os perigos da idealizaçom dos antergos. Daremos a razom em parte: com efeito, os nossos avôs e bisavôs aturárom penúrias mais agudas do que as presentes, e uns níveis de sofrimento que iam estarrecer o mais afoutado. Tinham, porém, as defesas psíquicas e as pautas culturais precisas para enfrentar os desafios de umha vida terrível. Davam-lhe um senso ao próprio drama, e daí que jamais se lhes ocorresse adotar, ante as dificuldades, a atitude da regressom infantil.
O ‘pensamento da suspeita’ é parte central do património da esquerda, umha das melhores heranças que temos recebido. Ele dá-nos a capacidade de caminharmos dous passos atrás, para ganharmos perspetiva, e desvendar entom que, nem todo é o que parece ser, nem os interesses apregoados som os que regem a marcha do mundo. É curioso observar como a intelectualidade crítica, que tem posto em causa furiosamente as grandes categorias culturais de Ocidente (com mais gosto polo impacto que polo rigor), passa de pontas em pés por esta transformaçom sem precedentes.
Como costuma acontecer, a literatura deita melhor luz sobre o problema do que o mais rigoroso dos ensaios. Há oitenta anos, A. Huxley retratava em Admirável mundo novo personagens encerrados numha perpétua minoria de idade, convenientemente armados de tecnologia e medicaçom psiquiátrica. Deixaram atrás a maldiçom humana, a liberdade, e em troca foram premiados com a total segurança e a administraçom científica de prazeres. Vida “ligeira, singela, infantil ‑diz um dos defensores do novo mundo no romance- sete horas e meia de mínimo esforço e, após a dose de soma [pílulas], os jogos, a copulaçom sem tasa e o sensorama. Que mais se pode pedir? […] Um homem civilizado nom tem necessidade nengumha de aturar nada que for desagradável”.
Admirável mundo novo descreve-nos tam bem por que capta o cerne de um ser humano indolente, abandonado, tam inapetente da liberdade como apavorado polos riscos que a sua paixom acarreja.
Pouco conta a proliferaçom de ideias ‑até certo ponto permitida na nossa sociedade- se nom existe a vontade que as sustém. Admirável mundo novo descreve-nos tam bem por que capta o cerne de um ser humano indolente, abandonado, tam inapetente da liberdade como apavorado polos riscos que a sua paixom acarreja.
Com tal talante, qualquer fedelhar inocente com trebelhos aditivos resulta em acidentes desastrosos. Existem utilidades inegáveis das novas tecnologias no domínio médico, docente, investigador e militante, ninguém o duvida. Mas requerem firmeza de ânimo e um deslinde radical da monocultura informática; o fim da confusom entre meios e fins.
Degradamo-nos ao nos abandonarmos a umha existência virtual, atravessada polo lercheio e o fingimento. Informaçom nom é amoreamento indigerível de notícias, livre expressom nom é direito à injúria e o rejoube, como tampouco domínio técnico é macaqueio lúdico de dispositivos básicos.
A esquerda, que mormente fala a linguagem do mercado, teme que esta análise ultrapasse os tratados eruditos e vaia ao encontro dos movimentos populares. Através de slogans tam baleiros como ‘ligar com a sociedade’, ‘resultarmos atrativos’, ‘aparecermos frescos e dinâmicos’ agocha-se o propósito de nos homologarmos com a concorrência generalizada, o felicismo sem compromisso e o divertimento deprimente.
Nada mais longe da nossa tradiçom do que este desleixo. Antes de confrontos diretos contra o estado, os nossos antepassados significárom-se por enfrentar a peito descoberto prejuízos muito massivos. O movimento obreiro atreveu-se a pôr em causa a superstiçom, o abuso da taverna ou o alcoolismo, o que lhe supujo mover-se de partida em coordenadas tremendamente impopulares; nom cumpre relatar o esforço que lhe custou (e lhe custa) ao feminismo vindicar a dignidade e capacidades da mulher; e ainda vivem milhares de militantes nacionalistas que podem recordar-nos as burlas e impropérios padecidos ao falarem galego em assembleias estudantis ou obreiras.
Devêssemos aproximar-nos ao problema da adiçom tecnológica agora que está nos seus primórdios. No romance de Huxley, um indígena conta a um interventor como os índios da sua tribo, para serem merecedores da mulher amada, precisam botar umha manhá inteira a sacharem numha horta, atacados por nuvens de mosquitos mágicos
Afirmar portanto que esta reivindicaçom do autocontrolo ‘bate com a maior das hostilidades sociais’ é o mesmo que nom dizer nada. Nom sendo que se pense que a luita consiste em encher-se a boca a reivindicar direitos, a um tempo que abdicamos de exigirmo-nos a nós mesmos as mais básicas obrigaçons. No seu tempo, o independentismo interviu com decisom contra a drogadicçom, o consumismo, ou os machismos grandes e pequenos; fenômenos que se julgavam perniciosos para a sociedade e para o nosso movimento. Devêssemos aproximar-nos ao problema da adiçom tecnológica agora que está nos seus primórdios.
No romance de Huxley, um indígena conta a um interventor como os índios da sua tribo, para serem merecedores da mulher amada, precisam botar umha manhá inteira a sacharem numha horta, atacados por nuvens de mosquitos mágicos; os bichos som tam ferozes, os proídos tam dolorosos, que os mais deles desistem antes de passarem a prova com sucesso. O civilizado abraia-se de existirem ainda os mosquitos, insetos que a tecnologia eliminara já, há muito tempo; e mais se abraia de os índios devotarem-se a tais esforços por amor, um sentimento incómodo e gerador de inúmeros problemas ‘como todo o que supom compromissos duradouros’. Em Huxley, como no nosso mundo de capitalismo serôdio, desaparecêrom dúzias de espécies animais; o amor, arcaico naquela distopia, carrega no presente com a acusaçom de ser umha cousa muito pesada, molesta para o cidadao flexível do mercado. Aqui e ali pervivem os indígenas. A resistência começa ‑como bem soubo historicamente o povo galego- por desconfiar dos generosos presentes do civilizador. Nós nom temos sítio num mundo tam feliz.