Periódico galego de informaçom crítica

Amor, índios e mosquitos

por
sa­bela iglesias

Por que mo­tivo des­cer sem­pre ao ní­vel das per­cep­çons mais es­tú­pi­das e louvá-las como senso co­mum? O senso mais co­mum é o dos ho­mens ador­me­ci­dos, que o ex­pri­mem roncando”.
H. D. Thoreau, Walden ou a vida nos bosques

B. é um mi­li­tante es­quer­dista que, num im­pulso su­pe­rior às suas for­ças, in­tro­duz cada dia na in­ter­net um cum­prido re­conto de cos­tu­mes, atos e pre­di­le­çons po­lí­ti­cas, per­mi­tindo o mo­ni­to­ra­mento da sua vida in­teira por parte da po­lí­cia e dos ser­vi­ços se­cre­tos; D. é umha ado­les­cente las­trada po­los com­ple­xos que foi sus­pen­dendo de­va­gar as re­la­çons cara a cara, ge­ra­do­ras de de­sa­ven­ças e so­fri­men­tos, para se de­vo­tar de sol a sol a cul­ti­var ami­za­des vir­tu­ais, a um tempo que se trata dos pro­ble­mas cer­vi­cais que causa a sua adi­çom às pró­te­ses tec­no­ló­gi­cas; H. é um ter­tu­li­ano de di­rei­tas, pre­o­cu­pado com a se­gunda tran­si­çom, que nos de­ba­tes te­le­vi­si­vos perde o fio da po­lé­mica, pois tem a ne­ces­si­dade de con­sul­tar em tempo real a res­posta dos seus se­a­rei­ros pola rede; T. é um ho­mem de me­di­ana idade que en­grossa cada ano o seu ar­se­nal de apa­re­lhos para pra­ti­car sexo so­li­tá­rio, di­ri­gido por fi­gu­ras fan­tas­mais que dan­çam num ecrã: “muito me­lhor que com mu­lhe­res de ver­dade”, con­fessa num documentário.

Alviscamos apenas um assomo do que está por vir; umha espécie de indefetível destino tecnológico dita que o meio artificial medre mais e mais até abafar a nossa completa existência.

Há ape­nas duas dé­ca­das, ce­nas como es­tas iam ser con­si­de­ra­das re­ta­lhos dum re­lato de fic­çom es­co­rado ao gro­tesco. Em 2016, som al­guns dos mi­lhei­ros de frag­men­tos que com­po­nhem a nossa so­ci­e­dade, en­chendo a gre­lha te­le­vi­siva. Suscitam a in­di­fe­rença ou, no má­ximo, umha triste resignaçom.
A um ex­tremo ou ou­tro do es­pec­tro po­lí­tico, im­pom-se umha coin­ci­dên­cia: al­vis­ca­mos ape­nas um as­somo do que está por vir; umha es­pé­cie de in­de­fe­tí­vel des­tino tec­no­ló­gico dita que o meio ar­ti­fi­cial me­dre mais e mais até aba­far a nossa com­pleta exis­tên­cia. Conceber um li­mite a este pro­cesso é o pior dos ta­bus. A mais ini­ma­gi­ná­vel das utopias.
É do­ado de­du­zir que este gi­gan­tismo obe­dece a um plano, que parte de umha ali­ança in­te­res­seira das clas­ses do­mi­nan­tes, as eli­tes po­lí­ti­cas, e umha le­giom de pes­qui­sa­do­res amo­rais só es­ti­mu­la­dos polo pro­gresso téc­nico. Quem des­bo­tar as te­ses cons­pi­ra­ti­vas, pode pen­sar que a es­cra­vi­dom mo­derna se am­plia num pro­cesso im­pes­soal e au­tó­nomo, ca­rente de di­li­gên­cia e ape­sar de todo om­ni­po­tente. Esta hi­pó­tese, nom de todo fan­ta­si­osa, re­sulta bem mais perturbadora.
De umha ma­neira ou dou­tra, umha cor­rente sub­ter­râ­nea, sub­traída ao de­bate, rói os fun­da­men­tos do que con­si­de­rá­va­mos (mais ou me­nos cri­ti­ca­mente) umha so­ci­e­dade. Nos anos 50, o ci­en­tista José M. R. Delgado anun­ciou-no com cla­ri­dade: “Pode-se evi­tar o co­nhe­ci­mento? Nom se pode! Pode-se evi­tar a tec­no­lo­gia? Nom se pode! As cou­sas se­gui­rám para a frente ape­sar da ética, ape­sar das cren­ças pes­so­ais, ape­sar de tudo”. Assim jus­ti­fi­cava os avan­ços em lo­bo­to­mia e im­plan­ta­çom de elé­tro­dos ce­re­brais, im­pul­si­o­na­dos com es­pe­cial in­te­resse pola in­te­li­gên­cia es­tado-uni­dense. Na al­tura, ser­ví­rom para a eli­mi­na­çom psi­co­ló­gica de ‘anor­mais’ e dis­si­den­tes. Longe da cru­el­dade, e num dos exem­plos so­bran­cei­ros de do­mi­na­çom doce, mui­tos neu­ro­bió­lo­gos vi­vem con­sa­gra­dos à cha­mada pro­pa­ganda in­te­li­gente, que con­duz os há­bi­tos de con­sumo com es­tí­mu­los sub­tis so­bre as nos­sas emo­çons e lem­bran­ças. Nem a di­ta­dura mais vi­o­lenta de an­tano so­nhou com tal ca­pa­ci­dade de con­trolo so­bre os com­por­ta­men­tos da mul­ti­dom; claro que tam­pouco ne­nhum ti­rano ima­gi­nou que os pró­prios súb­di­tos fi­ges­sem pas­sear pola pas­sa­rela vo­lun­ta­ri­a­mente in­ti­mi­da­des e fí­lias, ane­do­tas ro­ti­nei­ras ou opi­ni­ons so­bre a mais mi­nús­cula mi­nú­cia política.

Nos anos 50, o cientista José M. R. Delgado anunciou-no com claridade: “Pode-se evitar o conhecimento? Nom se pode! Pode-se evitar a tecnologia? Nom se pode! As cousas seguirám para a frente apesar da ética, apesar das crenças pessoais, apesar de tudo”. Assim justificava os avanços em lobotomia e implantaçom de elétrodos cerebrais, impulsionados com especial interesse pola inteligência estado-unidense. Na altura, servírom para a eliminaçom psicológica de 'anormais' e dissidentes.

Nos mes­mos anos em que Delgado e ou­tros ci­en­tis­tas de­se­nha­vam a to­mada do cé­re­bro, um dis­creto pas­tor pro­tes­tante, Jacques Ellul, dava a lume A idade da téc­nica. Ellul ou­sou no­mear o ino­mi­ná­vel, e por isso, ape­sar de um tom es­qui­si­ta­mente co­me­dido e de umha pro­cura con­fessa da neu­tra­li­dade, ainda é um grande des­co­nhe­cido nas nos­sas uni­ver­si­da­des. A ge­ra­çom da pós-guerra me­drou baixo o te­mor da guerra nu­clear e re­ceou dos efei­tos de­su­ma­ni­za­do­res e da grande pro­du­çom e do ur­ba­nismo con­tem­po­râ­neo; este au­tor fran­cês as­si­na­lou pre­mo­ni­to­ri­a­mente que tais ma­ni­fes­ta­çons eram ape­nas os co­me­ços. Da guerra, a tec­no­lo­gia pas­sa­ria à vida quo­ti­di­ana, e desta da­ria o salto para a in­ti­mi­dade: ‘quando a téc­nica pe­ne­tra em to­dos os âm­bi­tos, mesmo no pró­prio ho­mem, que vira para ele um ob­jeto, a téc­nica deixa de ser ob­jeto para o ho­mem e vira na sua pró­pria subs­tân­cia; en­tom nom se si­tua já frente ao ho­mem, se­nom que se in­te­gra nele, e pas­se­ni­nho absorve‑o”

Da guerra, a tecnologia passaria à vida quotidiana, e desta daria o salto para a intimidade

sa­bela iglesias

Quanto mais peso atin­gem numha so­ci­e­dade os pu­ros in­di­ví­duos, des­pro­vi­dos de di­men­som co­mu­ni­tá­ria e en­tre­gues a ape­ti­tes e ca­pri­chos, mais agi­nha avança esta ab­sor­çom. Por isso o con­su­mismo ‑e a sua ver­som mo­derna de apego ao ‘gad­get’- pe­ne­tra a modo em so­ci­e­da­des di­tas atra­sa­das, e ainda en­frenta certa des­con­fi­ança dos nos­sos ve­lhos. Ao do­mí­nio dos apa­re­lhos cum­pre-lhe este pa­no­rama, tam bem des­crito polo mi­li­tante anti car­ce­rá­rio César Manzano: “é umha mo­reia de su­jei­tos do­en­tes, en­cai­xo­ta­dos, pas­si­vos, can­sa­dos, es­tres­sa­dos, num es­tado aní­mico per­ma­nente de an­si­e­dade di­fusa cuja única saída é o re­curso à droga pon­tual e des­bo­cada, aos psi­co­fár­ma­cos, e a nom pen­sar na nossa con­dena aceite”.
Neste ponto do re­lato cos­tu­mam apa­re­cer os que nos aler­tam con­tra o mito da Arcádia e te­mem os pe­ri­gos da ide­a­li­za­çom dos an­ter­gos. Daremos a ra­zom em parte: com efeito, os nos­sos avôs e bi­savôs atu­rá­rom pe­nú­rias mais agu­das do que as pre­sen­tes, e uns ní­veis de so­fri­mento que iam es­tar­re­cer o mais afou­tado. Tinham, po­rém, as de­fe­sas psí­qui­cas e as pau­tas cul­tu­rais pre­ci­sas para en­fren­tar os de­sa­fios de umha vida ter­rí­vel. Davam-lhe um senso ao pró­prio drama, e daí que ja­mais se lhes ocor­resse ado­tar, ante as di­fi­cul­da­des, a ati­tude da re­gres­som infantil.
O ‘pen­sa­mento da sus­peita’ é parte cen­tral do pa­tri­mó­nio da es­querda, umha das me­lho­res he­ran­ças que te­mos re­ce­bido. Ele dá-nos a ca­pa­ci­dade de ca­mi­nhar­mos dous pas­sos atrás, para ga­nhar­mos pers­pe­tiva, e des­ven­dar en­tom que, nem todo é o que pa­rece ser, nem os in­te­res­ses apre­go­a­dos som os que re­gem a mar­cha do mundo. É cu­ri­oso ob­ser­var como a in­te­lec­tu­a­li­dade crí­tica, que tem posto em causa fu­ri­o­sa­mente as gran­des ca­te­go­rias cul­tu­rais de Ocidente (com mais gosto polo im­pacto que polo ri­gor), passa de pon­tas em pés por esta trans­for­ma­çom sem precedentes.
Como cos­tuma acon­te­cer, a li­te­ra­tura deita me­lhor luz so­bre o pro­blema do que o mais ri­go­roso dos en­saios. Há oi­tenta anos, A. Huxley re­tra­tava em Admirável mundo novo per­so­na­gens en­cer­ra­dos numha per­pé­tua mi­no­ria de idade, con­ve­ni­en­te­mente ar­ma­dos de tec­no­lo­gia e me­di­ca­çom psi­quiá­trica. Deixaram atrás a mal­di­çom hu­mana, a li­ber­dade, e em troca fo­ram pre­mi­a­dos com a to­tal se­gu­rança e a ad­mi­nis­tra­çom ci­en­tí­fica de pra­ze­res. Vida “li­geira, sin­gela, in­fan­til ‑diz um dos de­fen­so­res do novo mundo no ro­mance- sete ho­ras e meia de mí­nimo es­forço e, após a dose de soma [pí­lu­las], os jo­gos, a co­pu­la­çom sem tasa e o sen­so­rama. Que mais se pode pe­dir? […] Um ho­mem ci­vi­li­zado nom tem ne­ces­si­dade nen­gumha de atu­rar nada que for desagradável”.

Admirável mundo novo descreve-nos tam bem por que capta o cerne de um ser humano indolente, abandonado, tam inapetente da liberdade como apavorado polos riscos que a sua paixom acarreja.

Pouco conta a pro­li­fe­ra­çom de ideias ‑até certo ponto per­mi­tida na nossa so­ci­e­dade- se nom existe a von­tade que as sus­tém. Admirável mundo novo des­creve-nos tam bem por que capta o cerne de um ser hu­mano in­do­lente, aban­do­nado, tam ina­pe­tente da li­ber­dade como apa­vo­rado po­los ris­cos que a sua pai­xom acarreja.
Com tal ta­lante, qual­quer fe­de­lhar ino­cente com tre­be­lhos adi­ti­vos re­sulta em aci­den­tes de­sas­tro­sos. Existem uti­li­da­des ine­gá­veis das no­vas tec­no­lo­gias no do­mí­nio mé­dico, do­cente, in­ves­ti­ga­dor e mi­li­tante, nin­guém o du­vida. Mas re­que­rem fir­meza de ânimo e um des­linde ra­di­cal da mo­no­cul­tura in­for­má­tica; o fim da con­fu­som en­tre meios e fins.
Degradamo-nos ao nos aban­do­nar­mos a umha exis­tên­cia vir­tual, atra­ves­sada polo ler­cheio e o fin­gi­mento. Informaçom nom é amo­re­a­mento in­di­ge­rí­vel de no­tí­cias, li­vre ex­pres­som nom é di­reito à in­jú­ria e o re­joube, como tam­pouco do­mí­nio téc­nico é ma­ca­queio lú­dico de dis­po­si­ti­vos básicos.
A es­querda, que mor­mente fala a lin­gua­gem do mer­cado, teme que esta aná­lise ul­tra­passe os tra­ta­dos eru­di­tos e vaia ao en­con­tro dos mo­vi­men­tos po­pu­la­res. Através de slo­gans tam ba­lei­ros como ‘li­gar com a so­ci­e­dade’, ‘re­sul­tar­mos atra­ti­vos’, ‘apa­re­cer­mos fres­cos e di­nâ­mi­cos’ ago­cha-se o pro­pó­sito de nos ho­mo­lo­gar­mos com a con­cor­rên­cia ge­ne­ra­li­zada, o fe­li­cismo sem com­pro­misso e o di­ver­ti­mento deprimente.
Nada mais longe da nossa tra­di­çom do que este des­leixo. Antes de con­fron­tos di­re­tos con­tra o es­tado, os nos­sos an­te­pas­sa­dos sig­ni­fi­cá­rom-se por en­fren­tar a peito des­co­berto pre­juí­zos muito mas­si­vos. O mo­vi­mento obreiro atre­veu-se a pôr em causa a su­pers­ti­çom, o abuso da ta­verna ou o al­co­o­lismo, o que lhe su­pujo mo­ver-se de par­tida em co­or­de­na­das tre­men­da­mente im­po­pu­la­res; nom cum­pre re­la­tar o es­forço que lhe cus­tou (e lhe custa) ao fe­mi­nismo vin­di­car a dig­ni­dade e ca­pa­ci­da­des da mu­lher; e ainda vi­vem mi­lha­res de mi­li­tan­tes na­ci­o­na­lis­tas que po­dem re­cor­dar-nos as bur­las e im­pro­pé­rios pa­de­ci­dos ao fa­la­rem ga­lego em as­sem­bleias es­tu­dan­tis ou obreiras.

Devêssemos aproximar-nos ao problema da adiçom tecnológica agora que está nos seus primórdios. No romance de Huxley, um indígena conta a um interventor como os índios da sua tribo, para serem merecedores da mulher amada, precisam botar umha manhá inteira a sacharem numha horta, atacados por nuvens de mosquitos mágicos

Afirmar por­tanto que esta rei­vin­di­ca­çom do au­to­con­trolo ‘bate com a maior das hos­ti­li­da­des so­ci­ais’ é o mesmo que nom di­zer nada. Nom sendo que se pense que a luita con­siste em en­cher-se a boca a rei­vin­di­car di­rei­tos, a um tempo que ab­di­ca­mos de exi­girmo-nos a nós mes­mos as mais bá­si­cas obri­ga­çons. No seu tempo, o in­de­pen­den­tismo in­ter­viu com de­ci­som con­tra a dro­ga­dic­çom, o con­su­mismo, ou os ma­chis­mos gran­des e pe­que­nos; fenô­me­nos que se jul­ga­vam per­ni­ci­o­sos para a so­ci­e­dade e para o nosso mo­vi­mento. Devêssemos apro­xi­mar-nos ao pro­blema da adi­çom tec­no­ló­gica agora que está nos seus primórdios.
No ro­mance de Huxley, um in­dí­gena conta a um in­ter­ven­tor como os ín­dios da sua tribo, para se­rem me­re­ce­do­res da mu­lher amada, pre­ci­sam bo­tar umha ma­nhá in­teira a sa­cha­rem numha horta, ata­ca­dos por nu­vens de mos­qui­tos má­gi­cos; os bi­chos som tam fe­ro­zes, os proí­dos tam do­lo­ro­sos, que os mais de­les de­sis­tem an­tes de pas­sa­rem a prova com su­cesso. O ci­vi­li­zado abraia-se de exis­ti­rem ainda os mos­qui­tos, in­se­tos que a tec­no­lo­gia eli­mi­nara já, há muito tempo; e mais se abraia de os ín­dios de­vo­ta­rem-se a tais es­for­ços por amor, um sen­ti­mento in­có­modo e ge­ra­dor de inú­me­ros pro­ble­mas ‘como todo o que su­pom com­pro­mis­sos du­ra­dou­ros’. Em Huxley, como no nosso mundo de ca­pi­ta­lismo serô­dio, de­sa­pa­re­cê­rom dú­zias de es­pé­cies ani­mais; o amor, ar­caico na­quela dis­to­pia, car­rega no pre­sente com a acu­sa­çom de ser umha cousa muito pe­sada, mo­lesta para o ci­da­dao fle­xí­vel do mer­cado. Aqui e ali per­vi­vem os in­dí­ge­nas. A re­sis­tên­cia co­meça ‑como bem soubo his­to­ri­ca­mente o povo ga­lego- por des­con­fiar dos ge­ne­ro­sos pre­sen­tes do ci­vi­li­za­dor. Nós nom te­mos sí­tio num mundo tam feliz.

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