
No passado mês de janeiro cumpriam-se dez anos da posta em marcha da atividade da Cidade da Cultura. Para além, esta efeméride soma-se aos mais de vinte anos que leva o projeto em progresso. O Gaiás era a porta de entrada da Galiza no novo século, o grande fito do governo fraguista. Qual foi a sua génese? Como é que se concebiam os grandes artefactos arquitetónicos na loucura neoliberal de finais do século XX? Vinte anos e umha quantidade vasta de centos de milhons depois, cumpre botarmos umha olhada aos começos de umha «cidade» que mudou Galiza.
Ano 1999. Os governos de Fraga na Junta e Aznar no governo espanhol vendiam-se como o garante capitalista do progresso económico. Ainda ficavam uns anos para a catástrofe do Prestige ou o pacto das Açores e a posterior entrada no Iraque. Fraga levava já dez anos no poder e ainda nom tinha ideia de abandonar. É neste ano que se convoca um concurso de repercussom internacional para a construçom de umha «cidade da cultura» em Compostela. O projeto em si próprio resultava pomposo, umha demonstraçom mais do otimismo económico e ideológico das elites nesse momento. Na verdade, a década de noventa vinha consolidar dinâmicas que se foram gestando já desde os oitenta, em que a entrada do Estado espanhol na CEE e na OTAN certificavam a adesom definitiva às lógicas da globalizaçom. Os Jogos Olímpicos de Barcelona ou a Expo de Sevilha, ambas em 1992, fôrom a oportunidade definitiva para mostrar um Estado moderno e democrático e a arquitetura foi um dos seus muitos testemunhos.
Com efeito, Fraga já aproveitara a Expo 92 para dar a conhecer ao mundo umha das suas grandes apostas: o Xacobeo, a nova marca turistificada para o ano santo a se celebrar em 1993. Foi também a conjuntura escolhida para devolver o convite para Fidel Castro, quem visitou a Galiza durante três dias do mês de agosto, coincidindo com a sua visita a Sevilha. Mas, como dizíamos, os extraordinários acontecimentos dos anos noventa trouxérom consigo umha política de arquiteturas de proporçons bíblicas, aliás outras que, mais modestas, haviam de levar a assinatura dum importante arquiteto. Compostela, umha cidade em grande mudança desde a sua conversom em capital autonómica, recebia prémios pola gestom patrimonial da sua zona histórica e era o marco de propostas de assinalados arquitetos internacionais como Siza, Kleihues, Grassi, Hedjuk ou Foster. Mas quer em Compostela, quer no resto da Galiza, o que se deu em chamar «efeito Guggenheim» tingiu a política construtiva destes anos sob desejo de emular a capacidade transformadora urbana do museu bilbaíno através dum arquiteto estrela.
Deste modo, em fevereiro de 1999 convocou-se o concurso de ideias. Se atendemos às bases do projeto, podem-se entender algumhas das questons que determinárom a escolha. Na retórica das bases fala-se de criar «um novo obradoiro», que desperte a atençom internacional e que seja umha «continuidade do nosso entorno românico e barroco». Das dez candidaturas apresentadas, resultou ganhadora a do estadunidense Peter Eisenman.
Na antessala da crise económica de 2008 vindicava-se a Cidade da Cultura como o projeto para a Galiza do século XXI tentando marginalizar a crítica
Em 2007, um dos membros do júri, Wilfried Wang, publicou um documento de 1999 em que avisava do risco de sobrecustos que levava consigo o projeto de Eisenman. Mas, até esse ponto, na antessala da crise económica de 2008, vindicava-se a Cidade da Cultura como o projeto para a Galiza do século XXI, tentando marginalizar a crítica como umha postura de setores que tradicionalmente já eram contrários à política de Fraga. Assim, a Cidade da Cultura era entendida nom só como a grande entrada da Galiza no novo milénio, senom também o cume da obra de Eisenman. O estadunidense, que vinha desenvolvendo umha arquitetura deconstrutivista influenciada por autores como o seu amigo Derrida, propom umha leitura da topografia do Gaiás, sobre a que superpom umha planta que reinterpreta as principais ruas da cidade velha, umha grelha e mais a forma da vieira desconstruída. Hedjuk, de quem já falamos, realizara o Centro Sociocultural da Trisca e projetara umhas torres para um jardim botânico que nunca se realizou em Belvís. No seu leito de morte, pediu-lhe ao seu amigo Eisenman, a inserçom das torres no projeto. As torres, que fôrom interpretadas como umha abstraçom das torres do Obradoiro, a lembrança da Compostela histórica e mais a vieira, profundamente fetichizada nas lógicas do Xacobeo, respondiam perfeitamente à ideia que se procurava construir no Gaiás.
Porém, com Eisenman fica evidenciado umha das grandes contradiçons —e talvez umha das razons do laissez-faire criativo— da arquitetura contemporânea: a teoria vai antes da prática. Isto determina umha das críticas mais recorrentes ao projeto, isto é, a nom definiçom dos conteúdos. Se a arquitetura do Movimento Moderno rachava com a máxima «a forma segue a funçom», Eisenman rejeita o facto dos conteúdos condicionarem a forma, que vai sempre primeiro. Eis umha das grandes problemáticas das reaçons pós-modernas, a reificaçom do objeto arquitetónico ao serviço do que Habermas deu em chamar «açom comunicativa».

Eisenman concedeu muitas entrevistas nestes anos de «romance» com o governo da Junta. Umha das mais duras à que se enfrentou, mui clarificadora deste otimismo hedonista que rodeava o arquiteto estadunidense, foi a realizada por Carlos Seoane, Belén Puñal e Fernando Seoane numha monografia sobre o Gaiás em Tempos novos (nº 48, 2002). Contemplava que a Cidade da Cultura atrairia capitais imobiliários a essa zona da cidade, fundamentalmente para gente que teria umha segunda residência para assistirem à temporada de ópera, como acontece —cita ele— no Lincoln Center de Los Ángeles; por sorte, o feito de estarem errados é neste caso positivo. É difícil encontrar umha resposta a esta desconexom com a realidade e as possibilidades da Cidade da Cultura. Efetivamente, deposita o certo sucesso dela nas estudantes da cidade, que entenderiam a Cidade da Cultura como um «Virgin Megastore» ou umha sorte novo Centro Pompidou: «Acho que o estudantado e a gente agradecerá um lugar que nom esteja abafado pola conceçom clerical do mundo […]. Na França há moços que nom querem ir a Notre-Dame ou ao Louvre… querem chunda-chunda e sabem que o Centro Pompidou tem esse feeling que queremos conseguir com a Cidade da Cultura».
Fica claro que Eisenman participa de forma determinante na ideologia pós-moderna que está na base do concurso da Cidade da Cultura. Assim é que um governo conservador como o de Fraga tentava vender umha nova imagem da «velha» Compostela e da Galiza. O arquiteto nom agacha a sua participaçom nesta lógica. Como resposta às críticas, refere-se a Fraga como «patrom dom Manuel», reconhecendo a sua «paixom» de fazer um grande projeto de cultura com que quer ser lembrado: «Com este edifício Fraga está a escrever parte da sua história, a história de Manuel Fraga Iribarne, o homem que mediou no senso político e cultural, que mediou entre a esquerda e a direita… e trouxo a esta terra umha nova ideia do que esta terra poderia chegar a ser. É a sua ideia, em solitário. E está muito contente de que o nosso projeto fosse o elegido, porque é umha obra que emerge da própria terra galega, do seu chão. Nom é um espírito patriótico ou nacionalista, senom um espírito de mudança e crescimento. E acho que os nossos edifícios representam essa ideia». Sendo ciente de estar a projetar umha arquitetura progressista, fai umha confissom muito cínica: «A direita sempre está mais disposta a afrontar riscos em arquitetura do que a esquerda».
Eisenman participa de forma determinante na ideologia pósmoderna que está na base do concurso da Cidade da Cultura
Quando a retroalimentaçom é tam grande entre promotor e arquiteto, o nível de assimilaçom cresce. Em 2011, com Feijóo na Junta e Rajoy a poucos meses chegar à Moncloa, Eisenman —muito mais agressivo com a imprensa— reservava as suas esperanças num novo governo do PP a nível estatal que ajudasse à conclusom do projeto. «Feijóo nom poderá rematar o Gaiás sem o apoio de Madrid», afirmava. Vinham-se de inaugurar os primeiros edifícios e o arquiteto estadunidense seguia a ter a mesma atitude condescendente com a Galiza: o projeto nom é sobredimensionado se a Galiza quer viver e crescer no século XXI. No universo paralelo de Eisenman cabia tudo: «Antes do Gaiás, a Galiza nom estava em nenhures, só era um lugar religioso».
Nesse momento, Eisenman nom sabia —ou nom queria assimilar— que a sua ideia seguia a estar errada: nem se acabaria em 2015 nem os conteúdos e os edifícios finais iam ser os projetados. Seja como for, dez anos depois, umha visita ao Gaiás supom a estranha e contraditória sensaçom de estar a fazer um consumo cultural ou mesmo espacial dum conjunto entre a espetacularidade vazia e a «necessidade» de amortizar o gasto. Há quem, após tantos anos, acabe por normalizar a sua presença ou amosse já a sua inteira resignaçom. Bom, se quadra, haverá que fazer caso do que dizia Eisenman em 2011: «Em cinquenta anos, o projeto será amado por todos os galegos. Nem hoje nem amanhá. Em cinquenta anos». Ficamos atentes pois. Até 2061.