
É inevitável que a nossa visão sobre a diversidade linguística esteja atravessada polo relato da Torre de Babel. A ideia da multiplicidade de línguas como castigo divino leva séculos entre nós, a conformar um imaginário em que é preciso desprender-se dos dialetos que provocam confusão para achegarmo-nos ao entendimento, à língua comum e universal.
Ainda que se repita em numerosas culturas, essa não é, porém, a única explicação mitológica para a glotodiversidade. Na história que contam alguns povos aborígenes do norte da Austrália, Waramurunggundji criou os seres humanos, oferecendo-lhes a cada um deles um cacho de terra e uma língua para jogarem com ela.
É evidente por que esta história é aplaudida polos nacionalismos linguísticos. A identificação duma fala com um povo e com um território é uma simplificação que favorece com força a lealdade ao idioma. Irinyili, aborígene wangkanguru, explicava como não podia abandonar a sua língua porque lhe fora dada ao seu povo, “e não é algo que se cambie”.
Mas não devemos cair no mito do estatismo para substituir o do castigo divino. Sabemos bem que as línguas mudam, que há falantes de galego que nunca saíram da Argentina e que só três mulheres (se seguem vivas) sabem como colocar as nasais pré-oclusivas da língua wangkanguru. A preservação inamovível dum idioma é impossível, e isso é algo que não pode esquecer nenhuma política linguística útil.
Como qualquer produção cultural humana, os idiomas estão sujeitos aos avatares da sociedade. A língua em que se escreve este artigo foi formada por séculos de migrações, comércio, colonialismo, intercâmbio cultural e guerra. O purismo mais estrito na sua correção não poderia evitar a entrada de estrangeirismos, hiperenxebrismos ou decalques linguísticos. As línguas são produto da mestiçagem, igual que o são os seres humanos.
A ecolinguística permite-nos ver os idiomas no contexto das suas relações; isto é, das relações das pessoas que os utilizam. Se formos mais alá, permite estender essa perspetiva a qualquer ato de fala. Nem todas as falantes utilizam de igual jeito uma língua, mas tampouco o fai a mesma falante em momentos ou contextos distintos. Todos esses usos podem ser considerados “falas” diferentes, e todas elas são igual de valiosas e defendíveis.
A defesa da glotodiversidade não deve, pois, ficar em arcádias idiomáticas ou na luita contra a deturpação. Temos direito a uma reivindicação linguística valente, que desde a(s) língua(s) menorizada(s) reconheça a variedade como riqueza, em pé de igualdade. Que não trace hierarquias entre o korunho e o baralhete, entre o cantonês da imigração chinesa e o castelhano da Galiza, entre o galego da senhora Aurora de São Ciprião e o do seu neto Jonathan, que sai de marcha por Sánci.
Isto não quer dizer que podamos obviar as distintas situações das línguas. O diferente não deve ser tratado igual, e nunca devemos confundir uma minoria linguística com o idioma do poder. Mas cumpre saber que mesmo no idioma do poder há falantes assovalhadas, e que também existem as relações hierárquicas nas línguas menorizadas. De todas as que são menos, na língua que for, é do que vai querer falar esta secção que poderás ler periodicamente no Novas da Galiza.