De mala na mao, Vanesa Castro chegou à cidade portuguesa de Montemor-o-Novo, no Alentejo, com um objetivo claro. Queria analisar as chaves e estratégias de intervençom artística e cultural no rural do que Montemor se convertera em exemplo. Através dos estudos que realizou entre outubro de 2017 e abril de 2018, Castro foi enchendo de experiências e conhecimentos essa mala que abre perante nós.
A tua investigaçom centra-se no ecossistema cultural de Montemor-o-Novo. Mas, um ecossistema cultural, é o quê?
Um ecossistema cultural é aquele que formam todas as pessoas ou organismos vivos, como entidades associativas ou administraçons, e que desenvolvem a cultura dum território.
Entendo a cultura na linha de ColaBoraBora, como fazedora de coesom social e criadora de comunidades, como fator de desenvolvimento económico e de renovaçom dos sistemas tecno-científicos e produtivos, e como via para a geraçom de novas subjetividades e espaços simbólicos a partir dos quais imaginar coletivamente o futuro.
Há um ecossistema cultural a funcionar em cada lugar, por vezes, parece com que esteja a dormir, por vezes só sente quando há festa, às vezes quando ocorre algo que nom estávamos à espera, mas sempre está aí. O primeiro que temos que fazer é observá-lo, ver quais som as suas características, observar os ciclos, que agentes estám em ativo e o que estám a fazer.
“Há um ecossistema cultural a funcionar em cada lugar, por vezes, parece com que esteja a dormir, por vezes só sente quando há festa, mas lá está sempre"
Qual era o objetivo da investigaçom em Montemor-o-Novo?
Analisar, investigar e avaliar o ecossistema cultural e criativo de Montemor-o-Novo para poder aplicar as mesmas chaves e estratégias à Galiza. A investigaçom dava-me a possibilidade de ter umha visom panorâmica das distintas estratégias de intervençom artística e cultural no rural, das suas necessidades e possibilidades.
Nos ecossistemas culturais, muitas vezes, há pessoas ou pequenos organismos que som fundamentais para o desenvolvimento, inovaçom, coesom e regeneraçom do conjunto e da comunidade e, no entanto, elas passam despercebidas. Analisei o papel que jogam as várias agentes desta vila na comunidade.
Por que é que escolhes esta vila? Já a conhecias de antes?
Escolhim-na porque a conheço, e sei que Montemor-o-Novo é uma referência de boas práticas culturais. O ponto de partida da investigaçom som as Oficinas do Convento, umha associaçom cultural e centro Unesco. No 2006 tivem umha Bolsa Leonardo nas Oficinas do Convento. Assim que ademais de viver e trabalhar durante 6 meses ali, sempre continuei a colaborar com a comunidade em diversos projetos.
Ao longo de todos estes anos, conhecim um ecossistema rico, formado por umha rede de pessoas e pequenas iniciativas interrelacionadas, conectadas ao tecido social, que passam por ali e interagem com o ecossistema, ou que ficam a viver e fundam umha família. Vim parte do processo deste ecossistema, conhecim as origens dele, e fum conhecendo os agentes e os organismos do passado, do presente e provavelmente do futuro.
Que sentiste a primeira vez em Montemor?
No primeiro dia, mal cheguei, incerteza, até porque nom sabia o que iria encontrar. Depois sentim muita proximidade. Foi quando cheguei ao claustro das Oficinas do Convento pola primeira vez, que um rapaz me ofereceu umha laranja ali chamada de Doce de Espanha.
Atopei umha rede de pessoas a viverem e trabalharem numha vila alentejana e que estavam mui envolvidas em projetos comuns.
Essas sensaçons segues a tê-las quando vais a Montemor a dia de hoje ou a experiência e o conhecimento da vila mudárom-nas?
Sim, continuo a tê-las. Agora a rede medrou e há cada vez mais vida e o ecossistema é mais rico. Há mais profissionalizaçom no ambiente associativo, mais projetos, mais coesom, e mais pessoas a ficarem que tinham vindo a trabalhar a Montemor.
Dás-lhe especial importância às emoçons na tua investigaçom escrevendo um diário no que recolhes a parte mais pessoal da investigaçom. Por que é importante a experiência emocional para descobrir um ecossistema cultural?
Queria transladar os resultados do projeto de investigaçom. Mas nom queria apresentar estes resultados como sendo mais um estudo com estatísticas, percentagens ou um glossário ou mapeamento de entidades associativas ou eventos culturais.
Resolvim publicar o meu diário de investigaçom porque queria era transmitir as pequenas conexons, as anedotas e os matizes que acabam por ser chaves no desenvolvimento do ecossistema. Queria poder falar do que se passa despercibido aos estudos analíticos, como a vida dumhas mesas de madeira do Concelho que surgem em diferentes atividades e espaços da vila e que servem para melhor compreender essa interrelaçom.
Queria achegar-me um pouco do pessoal, das vidas das pessoas ativas que funcionam enquanto agentes interrelacionais. Falar no intangível, de emoçons, de odores, de momentos.
Trazes contigo algumha vivência especial que gostavas mesmo de partilhar?
Trago imensas. Conto umha que tem a ver com a primeira vez que fum viver a Montemor.
No contexto da bolsa Leonardo, um dos primeiros trabalhos que fiz foi colaborar e trabalhar no Festival Ananil, que decorria num espaço junto ao rio e ao moinho de Ananil, em estado meio ruinoso. E que tratava de reativar esse espaço.
Entre outras tarefas, como a documentaçom do festival, fiz guarda no moinho, dormi ali, pois havia muito material que controlar. Portanto, durante os dias prévios instalei-me no moinho, juntamente com mais duas pessoas. Pessoas mui distintas, de disciplinas diversas a trabalharmos voluntariamente em tornar possível esse festival. Alugámos umha tenda de circo para se instalar num prado e nom conseguíamos instalá-la, fomos, entre todos, descendo para deixarmos para trás o desnível e instalá-la outro prado. Tenho imensas lembranças especiais associadas a esses dias. Sempre gostei imenso de trabalhar na produçom e montagem de ventos, adorei esses dias prévios.
Já a recolher o festival, fizemos tipo umha torre humana improvisada como se fôssemos castellers. E tiramos fotos. Essa imagem, resume o espírito do que ali estávamos a fazer.
Logo existe umha parte mais técnica relacionada com chaves para dinamizar os ecossistemas culturais. O que deveria fazer um concelho a esse respeito?
O mais básico seria observar e conhecer o estado do ecossistema cultural, detetando os organismos e agentes em ativo para trabalhar com eles e fomentar umha cultura participativa, onde as pessoas sejam proativas.
Um colega sempre di que na época dos avós as festas eram proativas, se querias música, era só cantar ou tocar, e todas cantavam e quase todas, ao jeito delas e como podiam. E depois, a partir deste jeito de fazê-lo vinham os estilos e os manierismos que hoje vemos como sendo tradiçom e património.
E o movimento associativo?
Fundar ou refundar a associaçom, refazer e repensar os estatutos. Fazer grupos de trabalho.
Ativar processos. Provocar entradas e saídas. Pedir apoios, financeiros e operacionais, e colaborar com outras entidades.
É assim no caso de Montemor?
Sim, é assim. Também ficam cousas por fazer. Por exemplo, a expansom às aldeais.
Atualmente há programaçom sociocultural nas freguesias, e a Câmara dá prioridade a este tipo de projetos. Mas faz falta mais contágio para as aldeias e espaços mais despovoados acabarem por participar.
“Ainda que repliques as estratégias doutro ecossistema nom tés assegurado o sucesso. Há um fator chave: as pessoas e as suas vidas”
Pode valer a experiência dum lugar para outro?
Nom se pode replicar ou copiar um ecossistema cultural, pois há fatores diferenciais que som determinantes em cada território. Mesmo que tenhas os mesmos equipamentos estruturais e repliques as estratégias doutro ecossistema nom tés assegurado o sucesso. Há um fator-chave: as pessoas e as suas vidas.
Contudo, tratei de identificar e atopar dispositivos, estratégias, impulsos, que possam ser usados e replicados, numha lógica de adaptaçom ao território.
Tés na cabeça alguns exemplos de coisas que se deveriam mudar na Galiza para melhorarmos a nossa gestom cultural?
A nível institucional poderiam-se mudar algumhas cousas que favoreceriam um rápido desenvolvimento dos ecossistemas culturais rurais.
Por exemplo, muitas vezes, nos concelhos rurais, os postos de técnica ou animadora sócio-cultural recaem sobre pessoas alheias ao território que acedem ao posto graças ao seu curriculum e vida laboral. Entretanto, no território, temos pessoas, vizinhas ativas, conhecedoras do património material e imaterial, que nom tenhem os méritos necessários para optarem a candidatarem-se a esses empregos.
Está bem que os concelhos tenham umha técnica em cultura qualificada, mas muitas vezes nom estám definidas as políticas culturais, o que provoca que as pessoas passem por estes postos e vam embora depois de assumirem umha inércia de política cultural ausente.
O que pode acontecer depois é que essas vizinhas ativas acabem por abandonar o lugar ou por trabalharem de qualquer outra cousa que nada tem a ver com esse conhecimento.
Perante esta situaçom, umha saída seria formar equipas mistas de pessoas peritas e vizinhas ou fazer atividades que impliquem diretamente as vizinhas ativas. Estamos num momento no que ademais de termos em conta as peritas, devemos pensar no valor da desexpertizaçom das equipas. É fundamental para escapar à lógica capitalista.
"Devemos pensar no valor da desexpertizaçom das equipas. É fundamental para escapar à lógica capitalista."
Por outro lado, o labor das técnicas e vereadoras da cultura nom deve limitar-se a programar, poderiam ser catalisadoras e coesionadoras, estarem mais atentas ao que sucede no Concelho. A clave seria programar pouco e tentar que sucedam muitas cousas.
Que há no horizonte do projeto?
Potenciar a vida nas aldeias e os ecossistemas, esse é o horizonte. É necessário avançarmos com projetos que recuperem a memória local e serem capaces de revalorizar o potencial criativo das comunidades que o habitam.
Temos que acreditar e criar a possibilidade de viver na aldeia e trabalhar nela além da pecuária ou da silvicultura. Cumpre revitalizar o nosso rural e as pessoas que trabalham com a cultura tenhem muito a fazer aí.
A tua investigaçom pode-se consultar no blog ‘culturanorural.wordpress.com’. Divulgas de algumha outra forma este trabalho?
Estou a divulgar os resultados através da web e da participaçom em eventos, conversas ou mesas redondas. Vou ir a Montemor a apresentar os resultados das minhas pesquisas, penso que vai ser ótimo poder levar a visom externa do seu ecossistema.
Em setembro, convidáron-me a participar numha mesa redonda sobre cultura no rural organizada polo setor juvenil do SLG, em Chantada.
Tratei de ter algumha reuniom com pessoas da política galega para conversar sobre isto e poder partilhar algumhas das chaves das quais falo, mas nom tivem muito êxito.
No horizonte próximo e mais afastado do projeto está, continuar a desenvolver projetos sócio-culturais no rural, algo que fazemos desde RuralC e desde outros projetos nos que estou envolvida, como Fur Alle Falle ou montenoso.net.
Quero continuar a trabalhar a cultura desde a base, com as pessoas, colaborando com comunidades e envolvendo pessoas diversas em projetos.
Estou envolvida em vários projetos de memória viva que resultam bastante proativos e intergeracionais, como ‘Historias de Minho’ https://historiasdemino.wordpress.com/ ou ‘Historias de Vilachá’ que queremos fazer desde a associaçom RuralC este outono.