Poucas máquinas no mundo estám mais bem preparadas do que os meios sistémicos de comunicaçom social. Poucos minutos após o início da operaçom armada da Resistência Palestiniana, a 7 de outubro, já conseguírom criar o consenso de que se tratava de um ataque terrorista. Imediatamente após o anúncio israelita da sua ‘guerra contra o Hamas’, todo o mundo ocidental sabia que se tratava do seguinte prato de um menu que se serve quente desde o 11S: a guerra contra o terrorismo, em que o mundo democrático tem de apoiar ‘qualquer cousa que for’ contra os terroristas.
A recusa em dizer que o ataque militar nom tinha sido exclusivamente do Hamas, mas do conjunto das organizaçons da Resistência; a recusa em explicar sequer que há umha Resistência e porque é que isso está a acontecer; a insistência em ignorar os 75 anos de agressons sofridas polo povo da Palestina como se toda esta situaçom tivesse começado há poucos dias; ou a tentaçom de extinguir a própria ideia de Palestina, reduzindo tudo à Faixa de Gaza e apresentando o par Israel / Hamas como se fossem equivalentes em termos de forças, nom é por acaso. No plano interno, a recusa dos grandes meios de comunicaçom galegos em dar conta das cerca de quarenta mobilizaçons populares convocadas por organizaçons de solidariedade (Associaçom Galego-Árabe Jenin, BDS Galiza, Galiza por Palestina e Mar de Lumes) apenas nas duas primeiras semanas deste novo episódio de agressom israelita responde ao mesmo objetivo.
Israel é um Estado com 9 milhons de pessoas, das quais 3,5 milhons nom tenhem direitos políticos reconhecidos e, na prática, também nom tenhem direitos civis
A renúncia ao jornalismo e o abandono das exigências da propaganda é umha marca dos tempos, tanto mais feroz quanto mais difícil for fazer passar a história por verdade. Neste sentido, a causa palestiniana continua a demonstrar umha certa força. No entanto, é verdade que a narrativa sionista obteve algumhas vitórias importantes, usadas para cimentar discursivamente os próximos capítulos do drama. E vale a pena tê-los em conta para os desmontar a cada passo.
Primeira: a ideia de que Israel é um Estado moderno e digno de confiança ou, para o dizer de forma mais clara, ‘a única democracia do Médio Oriente’. Tal afirmaçom, que traz imediatamente consigo a ideia de que deve, por isso, ser protegida e apoiada por qualquer democrata do mundo, na realidade só é sustentada por umha formulaçom muito seletiva do que é a democracia. Se partirmos do princípio de que Israel abrange o território desde o Vale do Jordám até ao Mar Mediterrâneo, como di o sionismo no seu discurso e na sua prática através das colónias, entom o que temos é um Estado com 9 milhons de pessoas, das quais 3,5 milhons nom tenhem direitos políticos reconhecidos e, na prática, também nom tenhem direitos civis. Mais de um terço da população sem contar com os milhons expulsos para a diáspora. Israel defende-se desta realidade argumentando que a ocupaçom é apenas umha situaçom temporária, que nom dá para obter esses direitos. Mas 75 anos de expulsons, de roubo de terras, de apartheid e de prisons a céu aberto nom parecem encaixar na ideia do que toda a gente entende por ‘situaçom temporária’.
Polo contrário, se considerarmos apenas os territórios que estám hoje sob controlo israelita de jure, o que encontramos é um Estado onde, segundo dados do Instituto para a Democracia de Israel, mais de metade da cidadania se di contra a ideia da igualdade de direitos entre judeus e árabes e 57 % considera que o Estado deveria ter umha política de incentivo à emigraçom da (pouca) populaçom árabe ainda formalmente residente no país. Umha sociedade em que os direitos de cidadania som concedidos aos colonos estrangeiros apenas por professarem umha determinada religiom, desde que esta seja herdada pola linhagem materna. Este tipo de acesso à plenitude dos direitos sociais e políticos, que tem mais a ver com teocracia do que com democracia, nom se encontra noutros Estados autoproclamados democráticos do mundo. Mas nom é tudo. Israel é, mesmo dentro dos grupos judaicos, muito seletivo, de tal forma que desenvolve também umha estratificaçom racial nom declarada, mas que existe e é evidente: os judeus mizrahi, do Levante e do Norte de África, e os etíopes parecem nom ser tem bem recebidos como os judeus do grupo ashkenazi, de origem germânica e da Europa Central, muitos dos quais chegados hoje a Israel através da América.
A segunda ideia que Israel conseguiu estabelecer é que, depois do Holocausto, o mundo tem umha mágoa com as comunidades judaicas que só pode ser satisfeita concedendo a umha minoria religiosa um direito de autodeterminaçom que o direito internacional e as diferentes ideologias políticas só aplicam (ou recusam aplicar) às naçons. É aceitar uma moldura que, de algum modo, negligencia outras vítimas do Holocausto que o foram pola sua ideologia, com destaque para comunistas e anarquistas, pola sua orientaçom sexual, pola sua étnica como ciganos roma e sínti, por exemplo, ou polas discapacidades físicas ou mentais. É assim que se dissemina a ideia de que existe algo como umha naçom judaica. Aceitar isso seria o mesmo que aceitar que existe umha naçom muçulmana –o que, aliás, é um dos princípios básicos do Islam político wahhabita e salafita que inspira a Al-Qaeda e, mais claramente ainda, o Estado Islámico– ou que existe umha naçom cristã à qual devem ser reconhecidos direitos coletivos, incluindo o direito a um Estado próprio.
Mais de metade da cidadania israelita se di contra a ideia da igualdade de direitos entre judeus e árabes e 57 % considera que o Estado deveria ter umha política de incentivo à emigraçom da pouca populaçom árabe ainda formalmente residente no país
É evidente que existe também umha interpretaçom culturalista do judaísmo, e há mesmo quem reivindique um judaísmo secular. Mas quem olhar para o tipo de judaísmo que inspira os partidos maioritários do Knesset e a sociedade israelita nom verá muito disso. Polo contrário, verá um judaísmo militante e extremista, capaz de chamar de inimigos os praticantes de linhas ortodoxas que, de facto, negam a necessidade, ou mesmo a possibilidade, de o judaísmo ter o seu próprio Estado. Seja como for, o que encontramos é este judaísmo político, que se apresenta como um povo, reivindicando um direito de retorno que, de facto, nega furiosamente à maioria árabe expulsa das suas casas à medida que a ocupaçom avança. Há milhares de imagens de palestinianos a mostrarem as velhas e pesadas conchas das suas casas perdidas desde a Nakba (1948) até hoje. O que os colonos israelitas tenhem para mostrar, no entanto, som alguns poucos versículos controversos da Torá.
Por último, mas ligada à anterior, está a questom das colónias, que adquiriu especial relevância desde o ataque armado de 7 de outubro, quando várias delas fôrom atacadas. A ideia-força aqui é apresentar os colonatos como redes civilizacionais deste Estado moderno e confiável, habitados por civis cujas vidas som brutalmente interrompidas polo ‘terror do Hamas’.
A realidade é bem diferente. Nom só porque as colónias som, elas próprias, ilegais à luz de numerosos tratados internacionais e resoluçons das Naçons Unidas (446 e outras). Um rápido olhar histórico revela a capacidade do Estado de Israel de ignorar este tipo de normas, incluindo aquelas que assinou em tempos, como a IV Convençom de Genebra, que especifica (artigo 49) que “a potência ocupante nom pode deportar ou transferir qualquer parte da sua própria populaçom civil para o território que ocupa”, mas, sobretudo, porque, para além do seu enorme peso político, os sucessivos governos de Israel tenhem dado a esta figura central da ocupaçom um papel fundamental na guerra psicológica, económica e geográfica contra a populaçom palestiniana local. Quem povoa essas avançadas da ocupaçom nom som pacíficas comunidades de civis desarmados. Muito menos num país que tem umha política de serviço militar obrigatório, o que faz com que grande parte da populaçom tenha formaçom militar e onde é comum encontrar civis armados graças à política de ‘armas para todos’, exceto os árabes, promovida pelos governos de Netanyahu. O que há som grupos voluntários cuja caraterística mais saliente é o seu radicalismo anti-árabe e a impunidade prática com que perseguem e até matam vizinhos árabes que nom fôrom afastados ou mortos durante a construçom do seu próprio colonato.
O facto de no cimo de cada colina se encontrar um colonatos, visível para toda a populaçom palestiniana das aldeias e dos vales, sempre acima das suas cabeças, tem um valor mais psicológico
As colónias som, portanto, armas de guerra. Aliás, som cada vez mais utilizadas: o seu número cresceu 16 % nos últimos 5 anos, ultrapassando os 200.000 colonos em Jerusalém Oriental e os 500.000 na Cisjordânia, 60 % dos quais se encontram já na chamada ‘Área C’, sob administraçom exclusiva israelita, embora fora das fronteiras definidas em 1967 e oficialmente do lado da Autoridade Nacional Palestiniana.
O facto de no cimo de cada colina se encontrar um destes colonatos, visível para toda a populaçom palestiniana das aldeias e dos vales, sempre acima das suas cabeças, tem um valor mais psicológico. Cria umha rede que descontinua propositadamente o território palestiniano sem que seja possível controlá-lo, espalhando postos de controlo administrados de forma deliberadamente arbitrária e erguendo muros que encerram a populaçom árabe e novas infra-estruturas só para israelitas que cortam as pré-existentes e fazem lembrar demasiado os colonatos só para brancos do Louisiana ou do Texas ou os bairros só para negros do Soweto.