No momento de escrever estas linhas recebemos a nova de mais um assassinato na Palestina. A vítima, Shireen Abu Akleh, computa no lado das de sempre. O vitimário é um soldado anónimo das forças de ocupaçom israelitas, que atirou nela mesmo a pesar de Shireen ir perfeitamente identificada com a palavra PRESS no colete enquanto cobria a operaçom militar sionista em Jenin para a televisom catarense Al Jazeera. Outro jornalista, Ali as-Samudi, da rede Al Quds, recebeu também um tiro nas costas e a sua situaçom parece estável dentro da gravidade.
Depois de tentar responsabilizar os manifestantes palestinos pola morte, Israel alega agora que o tiro que matou Abu Akleh foi fortuito, durante um enfrentamento contra “hostis” que se manifestavam contra a operaçom militar na cidade e no acampamento de refugiados anexo. Mas segundo Walid al-Omari, diretor regional de Al Jazeera, no momento de ser atingida, a jornalista estava ainda a caminho do lugar da manifestaçom, de modo que nom é possível que o impacto da bala fosse, como o exército israelita assegura, em resposta a “ataques de fogo” dos manifestantes. Shatha Hanaysha, outra jornalista que viajava com ela, relatou que o carro em que se aproximavam foi atingido por fogo de franco-atiradores sem que se lhes tivesse dado o alto e que o tiro que matou Abu Akleh se produziu justo depois de parar o veículo e sair dele para se refugiar num edifício próximo. Em declaraçons oficiais, a Al Jazeera qualificou a morte de Shireen Abu Akleh de “assassinato flagrante, em violaçom das leis e normas internacionais. A rede Al Jazeera condena este crime hediondo, que busca impedir a imprensa de cumprir o seu dever”.
A enorme popularidade de Shireen Abu Akleh, que levava 25 anos a aparecer nos ecráns de milhons de casas como correspondente de Al Jazeera na Palestina, contribui para internacionalizar a sua história e o crime que acabou com a sua vida
A enorme popularidade de Shireen Abu Akleh, que levava 25 anos a aparecer nos ecráns de milhons de casas como correspondente do canal catarense na Palestina, contribui para internacionalizar a sua história e o crime que acabou com a sua vida, e permite que seja conhecido além das fronteiras difusas do mundo árabe, chegando a um Ocidente sempre de costas. Mas nom é a primeira vez que Israel coloca jornalistas entre os seus objetivos militares nom declarados. Antes ao contrário, no início de abril de 2022, o Tribunal Penal Internacional de Haia recebia umha denúncia formal da Federaçom Internacional de Jornalistas, do Sindicato de Jornalistas da Palestina e do Centro Internacional de Justiça para os Palestinos em que o estado de Israel era acusado de “ataque sistemático” contra jornalistas nos Territórios Ocupados da Palestina. Umha prática que é tipificada como crime de guerra, mesmo sem necessidade de ser assim sistemática.
No início de abril de 2022, o Tribunal Penal Internacional de Haia recebia denúncias em que o estado de Israel era acusado de “ataque sistemático” contra jornalistas nos Territórios Ocupados da Palestina
Os exemplos de ataques som inúmeros. Em 2021, por exemplo, a aviaçom israelita arrasou a chamada torre al-Jalaa, um prédio de doze andares na cidade de Gaza onde se encontravam os escritórios da referida Al Jazeera e da agência de imprensa estadunidense The Associated Press, que condenárom o facto e lembrárom que o terraço do edifício se tinha convertido num dos pontos de onde as câmaras podiam obter melhores imagens dos periódicos bombardeamentos israelitas contra a Faixa. Precisamente aquele episódio do prédio — que deixou mais dous jornalistas mortos e vários feridos — tivo lugar durante umha operaçom israelita contra infraestruturas em Gaza que, alegadamente, eram usadas por Hamas e a resistência palestina. Também nom foi o único centro jornalístico a ser atingido. Naquele mesmo mês de maio de 2021, as torres al-Shuruk e al-Jawhara, onde tenhem os seus escritórios agências e redes de imprensa como Alam News, Al Hayat, Mayadeen Media e Al-Bawaba 24, receberam também ataques aéreos. É importante notar que a localizaçom exata destes e outros edifícios que sediam meios de comunicaçom e agências de imprensa é facilitada a Israel para, precisamente, evitar ataques deste tipo, que o governo israelita qualifica de “erros” e “danos colaterais”. E também que, mália essa informaçom ser pública, os ataques contra este tipo de prédios nom tenhem feito mais que aumentar ano após ano. Joel Simons, diretor executivo do Comité para a Proteçom de Jornalistas declarou, na altura, que Israel “está a atacar deliberadamente infraestruturas dos meios de comunicaçom para interromper a cobertura do sofrimento humano em Gaza”.
A isto há que engadir ainda inúmeros exemplos de discriminaçom, violaçom da liberdade de movimentos e restriçons ao credenciamento de jornalistas — que se tenhem convertido em práticas habituais — e que som complementadas com ataques diretos contra jornalistas enquanto realizam o seu trabalho. Desde 2000, Israel tem sido denunciado pola morte de 50 jornalistas palestinos. A denúncia no tribunal de Haia nota quatro vítimas em particular: Ahmed Abu Hussein, Yaser Murtaja, Muath Amarneh e Nedal Eshtayeh, mortos ou mutilados por franco-atiradores das IDF israelitas enquanto estavam a cobrir manifestaçons em Gaza, com um modus operandi que remete diretamente para o último caso em Jenin.
Contodo, o assassinato a sangue frio de Shireen Abu Akleh e os cada vez mais frequentes ataques contra jornalistas palestinos e estrangeiros nom deveriam ocultar o resto da notícia. O que Abu Akleh estava a cobrir quando recebeu o tiro que acabou com a sua vida era umha manifestaçom popular de repulsa à última operaçom israelita em Jenin. Esta cidade do norte da Palestina é considerada polo povo palestino como um dos principais pólos da resistência e polo sionismo como um dos centros da “atividade terrorista” anti-israelita. E, com efeito, existe entre a populaçom local um forte sentimento de orgulho pola sua histórica resistência. Nom por acaso, Jenin é, junto com Gaza, o único lugar da Palestina ocupada onde Israel acabou optando por cancelar a sua política ilegal de assentamentos e retirar os já estebelecidos, precisamente pola incapacidade de “pacificar” a zona e manter a segurança dos colonos. Nem sequer a Autoridade Palestina — o governo palestino em Ramala — tem apoio popular. Umha importante parte da populaçom, aliás umha parte crescente, considera o presidente Mahmoud Abbas completamente afastado da realidade e, pior ainda, como um colaborador da ocupaçom.
A operaçom que cobria Abu Akleh — e que no momento de escrever estas linhas continua em andamento — acontece quando se cumprem 20 anos doutro ataque israelita contra o acampamento de refugiados anexo à cidade, em retaliaçom pola Intifada de 2002. Aquele ataque durou dez dias e devastou o campo quase por completo, deixando 52 vítimas mortais civis, incluídas crianças. Desde aquele momento, as açons das IDF em Jenin tenhem sido mais esporádicas e o acampamento, estabelecido em 1948 na sequência da Nakba, continuou a crescer até atingir 14.000 refugiados e refugiadas, que se somam aos quase 40.000 habitantes da cidade.
Mas os últimos meses registam um aumento notável da presença militar sionista e dos confrontos de menor ou maior intensidade, tanto na cidade quanto no acampamento. Em meados de 2021, durante o Ramadám, a tensom atingiu novos níveis enquanto, em Jerusalém, as forças de ocupaçom israelitas conduziam vários ataques contra o complexo da mesquita de al-Aqsa, considerada um dos lugares mais sagrados do islám. As tentativas israelitas de despejar famílias palestinas inteiras do bairro ocupado de Sheikh Jarrah, também no leste de Jerusalém, deixárom-se notar imediatamente em Jenin, e diferentes grupos da resistência convocárom manifestaçons populares e paradas dos seus braços militares em solidariedade com as comunidades da capital palestina que Israel cobiça para si.
Israel está a impor sançons e restriçons económicas na cidade de Jenin que incluem umha forte política de isolamento, revogando autorizaçons de viagem e cortando a maioria das estradas que ligam Jenin à sua área e a outras cidades palestinas
Em resposta ao aumento da tensom e à progressiva aproximaçom das façons da resistência, em fevereiro deste 2022, as IDF conduzírom umha operaçom de busca em Jenin com a controversa colaboraçom da Autoridade Palestina, que acabou com a detençom de 25 homens acusados de fazerem parte da resistência. Umha semana antes do aniversário, à amanhecida de 2 de abril, soldados ocupantes matárom mais três homens num tiroteio, argumentando que se tratava de combatentes. Apenas umha semana mais tarde, quem morria a maos das IDF era Mohammed Zakarneh, de 17 anos, durante umha incursom militar israelita na área industrial de Jenin tentando capturar o irmao e a mai de Raad Hazem, um palestino que, dias antes, tinha realizado umha agressom em Tel Aviv. A extensom do castigo às famílias do que Israel considera “terroristas palestinos” é umha política bem assente há anos.
A isto há que adicionar ainda as sançons e restriçons económicas que Israel está a impor à cidade, e que incluem umha forte política de isolamento, revogando autorizaçons de viagem e cortando a maioria das estradas que ligam Jenin à sua área e a outras cidades palestinas, o que tem um forte impacto na atividade comercial e, em geral, nos suministros e na economia dumha cidade que é a terceira mais povoada da Cisjordânia.
Eis a história que Shireen Abu Akleh queria contar. A que contava em cada reportagem. A que Israel prefere ocultar. O que é evidente é que, com ou sem cobertura mediática, a resistência vai continuar.