Beatriz Busto Miramontes é doutora em Antropologia Social e vem de publicar com a Através Editora ‘Um país ‘a la gallega’. Galiza no NO-DO franquista’, onde desenvolve as ideias da sua tese doutoral. Bustos apresenta o conceito de ‘Galaiquismo’, baseado na ideia do ‘orientalismo’ de Edward Said, e reflete arredor dos essencialismo nas tradições musicais.
Este livro é baseado na tua tese: quais foram as tuas principais hipóteses e o que descobriste?
A hipótese principal surgiu primeiro da surpresa e depois da desconfiança. A primeira vez que vi NO-DO, visualizei projetada a Galiza durante uns segundos e não fum capaz de a reconhecer. Essa incapacidade de reconhecê-la, sendo eu galega, fijo com que duvidasse, primeiro de NO-DO e depois de mim mesma. Dessa desconfiança, necessariamente, surgiu a pergunta e duma pergunta nasce sempre uma hipótese. Expressado da forma mais simples que me ocorre, a grande pergunta foi: Mas isto que estou a ver, é a Galiza? Somos assim e eu não o reconheço ou, pelo contrário, isto está inventado?
Nesse questionamento há uma hipótese de pesquisa: a tradição musical que se mostra da Galiza em NO-DO é uma invenção da maquinaria do poder, com o poder para a representar: o cinema. O primeiro que aprendim é que esse construto inventado não só estava na música mas na representação cultural dum modo geral; na representação mais básica do que somos. E o segundo que aprendim é que esse construto não só estava em NO-DO como também no meu olhar. No olhar para ‘mim’ mesma. Perguntei-me então: Sabemos quem somos? Somos livres de ser-nos por fora desta representação?
Quais são para ti as sociólogas e as antropólogas de referência para o teu trabalho?
Seria bastante extenso, mas para dar uma resposta breve diria que a minha investigação bebe, principalmente, da teoria decolonial e é por isso que a leitura simbólica e de poder com que olho o mapa territorial da Espanha tem muito de colonialismo. A própria constituição do regime no território através da Guerra Civil foi claramente colonial. Por exemplo, o conceito de Galaiquismo que eu uso é um conceito que se baseia no de Orientalismo, do antropólogo decolonial Edward Said. O que fago é utilizar o seu conceito aplicado ao nosso território dado que a arquitetura do domínio foi similar.
Em que sentido poderias desenvolver mais em que consiste este conceito de galaiquismo?
Um dos exercícios mais eficazes dum governo colonial para estabelecer o seu domínio sobre a colónia é conseguir a aceitação do colonizado. Para isso não basta a violência. A violência brutal é só o primeiro passo duma série de violências mais subtis e, precisamente por ser brutal, deve ser uma fase finita. Não há nenhum regime que possa se manter só através do uso explícito da violência. Quando esta violência se esgotar sobre si mesma, o governo colonial deve elaborar outras estratégias.
Por exemplo, deve produzir discurso sobre o colonizado. Deve construir uma imagem, uma representação, uma narrativa do colonizado no enquadramento do governo colonial; tem que ser representado na sua subalternidade para definir o que o colonizado ‘é’ nessa nova ordem. O colonizado, no cinema, vê-se a si mesmo através do espelho colonial que o deforma e nele aprende a se reconhecer a si mesmo como um sujeito subalterno.
“O ‘Galaiquismo’ é o discurso que se produz fora da Galiza mas cuja projeção tem objetivos claros para adentro. É a imagem colonial que recebemos desse espelho”
Isso é o Galaiquismo: o conjunto de representações do que somos ‘os galegos’ segundo NO-DO e o franquismo. É o discurso que se produz fora da Galiza mas cuja projeção tem objetivos claros para dentro. Em suma, é a imagem colonial, subalterna e deformada que recebemos desse espelho. Um espelho que não construímos nós e com o qual não dialogámos mas que nos devolve uma imagem de ‘nós’ em que nos vemos obrigados a nos olhar e nos reconhecer, distorcidos, convencidos de que o que vemos somos nós e que, efetivamente, somos assim. O mais perverso e violento de tudo é que o que aparece no espelho somos ‘nós’, efetivamente. Mas não somos assim exatamente. A dificuldade reside em que para re-conhecer-se, re-conectar-se, re-construir-se tem que existir um momento traumático em que me aperceba de que essa ‘imagem’ que me devolve o espelho de ‘mim’, não sou ‘eu’ mas uma imagem refletida: uma ilusão.
Ainda sofremos na cultura galega a ideia de que as essências do que é importante foram mantidas na Galiza, sem sabermos muito bem o que isso significa. A Galiza é um país congelado?
Em muitos contextos sim. Se conseguires convencer todo um povo de que o seu é essencial, serão convencidos de que, aconteça o que acontecer, fagam o que fizerem, não há escapatória. E se não existir escapatória, existe aceitação passiva.
Mas Galiza não é um país congelado, para além da representação que se faça dela e apesar de muitos quererem, porque nenhuma cultura o é. Por muito ‘isolada’ que julguemos que esteja uma cultura do resto do mundo, nenhuma cultura é uma ilha e, portanto, nenhuma cultura é essencial. Nem sequer na mais estrita antiguidade. Considerar essencialismos na cultura significa o regresso a uma perspetiva evolucionista, tendenciosa, etnocêntrica e profundamente falsa que, além do mais, é, precisamente, o primeiro passo para construir estereótipos sobre a outredade. Daí ao fascismo, ao racismo e à xenofobia não há mais do que um passo. O conceito de ‘essência’, longe de alimentar a identidade, congela‑a, limita‑a, proíbe‑a, encerra‑a numa jaula e não a deixa sair, não a deixa ‘ser’. O essencialismo levado à cultura encarcera-nos numa imagem ideal de ‘nós’ que nos impede de ser livres. A liberdade implica mudanças e as mudanças e o conceito de ‘essência’ são contraditórios e impossíveis entre si.
Fazer questão de a Galiza ser o final do mundo conhecido e que conserva a sua ‘essência’ graças a esse facto, é uma falácia e faz-nos dano. A Galiza estivo ligada com o mundo atlântico, com o mediterrânico e o seu idioma é uma língua de origem latina. Não somos o centro do mundo em absoluto, mas tampouco somos uma ‘aldeia gaulesa’. Ter identidade cultural não deveria implicar encarcerar-nos e menos por própria iniciativa. Mudar não é perder nada. De facto, é crescer.
Nesse sentido, que pontos unem a folclorização musical da Galiza e a obsessão de manter uma tradição musical essencialista na Galiza?
A identidade mal entendida que acha que o direito a ‘ser’ na sua diferença passa por defender uma série de estruturas congeladas e inamovíveis onde se supõe que reside a ‘essência’ musical do povo. Para mim o verdadeiramente interessante para a cultura continuar a ser do povo é estar em circulação, de todos e todas, que se produza em cada um dos cantos, que esteja viva, ativa: que a cada uma se sinta legitimada a cantar, dançar, tocar, inventar, criar, propor.
Tendemos a pensar que um ‘fóssil’ musical é mais autêntico, mais essencial na nossa tradição musical. Confunde-se facilmente o ‘conservar’ com o ‘manter’. Nessa perspetiva, neste país, tem-se desatendido a quantidade de repertório musical que era significativo de cultura. Houvo muitas vozes que consideraram que projetos musicais criativos eram uma espécie de ameaça para a ‘essência’, quando bebem claramente da tradição musical. Foram interpretados como ameaças por proporem algo novo, próprio, seu e para todas. Portanto, caiu-se na ideia de que ‘criar’ significa ‘corromper’ e que para ‘manter’ a cultura é preciso ‘conservá-la’ numa espécie de frasco onde nada a corrompa. E aí, simplesmente, morre-se.
Assim que o frasco cair e quebrar, acabou-se, porque já ninguém saberá como se produz aquilo que estava no seu interior pois, durante décadas, só cantaram, dançaram e tocaram aqueles que ‘sabem’ de ‘fósseis’ e não todas. Afinal, o ‘fóssil’, também no meio natural, é uma matéria finita. Logo que se acabou, já não há mais nada. Se a cultura musical já só reside no ‘fóssil’, é um mau sinal. Eu convido a pensar a cultura como o ‘água’: viaja a todas as partes, adapta-se a qualquer forma e lugar, todo o inunda e transforma e, além do mais, é imparável.