Com a vitória do indescritível Jair Bolsonaro na segunda volta das eleições presidenciais brasileiras o passado 28 de outubro, o país completava uma viragem à extrema-direita que, embora só possa ser explicada desde complexas razões históricas e políticas, viu-se notavelmente intensificada e acelerada nos últimos anos.
O dia 31 de agosto de 2016 consumava-se o processo de destituição de Dilma Rousseff (PT) através dum golpe disfarçado de impeachment e a nomeação de Michel Temer como residente. Ao longo desse ano, nas sucessivas votações parlamentares que afastaram a presidenta do poder abundaram os juramentos com os quais alguns deputados favoráveis ao impeachment exibiram a sua ideologia ultra-conservadora. Um dos sins mais execráveis foi proferido “pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo”.
Quem homenageava assim a Brilhante Ustra, um dos responsáveis da sangrenta repressão que caraterizou o período da ditadura (1964–1985) era o naquela altura deputado Bolsonaro. O presidente eleito reivindica com frequência a figura deste torturador e o seu próprio filho, o deputado Eduardo Bolsonaro, e alguns dos seus seguidores mesmo luziram camisetas com o lema “Ustra vive” ao longo da campanha eleitoral. A mensagem é clara e estarrecedora: uma reivindicação desavergonhada da ditadura militar e da sua brutal violência. Este é o terrível cenário que os movimentos sociais defrontam com a chegada de Bolsonaro à presidência.
Assassinato de Marielle Franco
Este clima de violência atingiu um dos seus máximos o passado 14 de março com o assassinato de Marielle Franco, um dos acontecimentos que marcaram o período de governo de Michel Temer. Franco recebeu vários disparos quando saia de um debate no centro de Rio de Janeiro. Faleceram ela e o condutor do carro no que viajava. Vereadora pelo PSOL, encarnava a luta pelos direitos das populações mais ameaçadas pela extrema direita no Brasil: mulheres, negros, LGBT, pobres. Franco foi executada numa cidade militarizada: o passado mês de fevereiro, o presidente Temer entregava ao exército o controlo de Rio de Janeiro até a fim do ano, uma medida inédita desde a chegada da democracia ao país.
Logo do assassinato, da política institucional sucederam-se as esperáveis reações de condenação, com uma exceção: Jair Bolsonaro manteve-se em silêncio, enquanto desde a sua equipa o desculpavam e explicavam aos médios que a opinião do naquela altura candidato poderia resultar “polémica demais”.
Mas se o assassinato de Marielle Franco reflete a extrema gravidade do clima de ódio e violência que vive o país, a massiva resposta de indignação e mobilização suscitada pela sua morte pode servir para esboçar a construção de uma resistência que hoje se apresenta como –literalmente– vital. A potente figura de Franco e a brutalidade da sua morte provocaram uma resposta plural frente à ameaça fascista que remete às mobilizações de junho de 2013, quando diferentes movimentos sociais convergiram em multitudinários protestos. Se a chegada de Bolsonaro ao governo antecipa um período de violência contra os coletivos mais vulneráveis da população brasileira, a aliança e a soma de forças fazem-se imprescindíveis para fazer frente a um inimigo poderosíssimo.
Repressão aos movimentos
Antes da segunda volta das eleições, Bolsonaro já avançou que a repressão dos movimentos sociais ia ser um elemento central no seu governo. “Bandidos do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], bandidos do MTST [Movimento dos Trabalhadores Sem Teto], as ações de vocês serão tipificadas como terrorismo. Vocês não levarão mais o terror ao campo ou às cidades. Ou vocês se enquadram e se submetem às leis ou vão fazer companhia ao cachaceiro [‘o bêbedo’, em referência a Lula da Silva] lá em Curitiba”, ameaçou num discurso em São Paulo. A tipificação dos movimentos sociais como terrorismo poderia chegar mesmo antes da toma de posse de Bolsonaro, através da modificação, já iniciada, da lei antiterrorista vigente.
Nesse discurso não só foram ameaçados com o cárcere os ativistas, também alguns dos seus rivais políticos: “E seu Lula da Silva, se você estava esperando o Haddad ser presidente para soltar o decreto de indulto, eu vou te dizer uma coisa: você vai apodrecer na cadeia. E brevemente você terá Lindbergh Farias [senador do PT] para jogar dominó no xadrez. Aguarde, o Haddad vai chegar aí também. Mas não será para visitá-lo, não, será para ficar alguns anos ao teu lado”, exclamou.
Poder judiciário e política
Esta visão da justiça ao serviço da direita não parece uma simples bravata. O poder judiciário tem atuado como uma força decisiva nos últimos tempos no Brasil. Se um duvidoso processo de impeachment foi o mecanismo empregado para apartar a Dilma Rousseff da presidência, o encarceramento de Lula da Silva foi terminante na vitória eleitoral de Bolsonaro. As sondagens prévias à sua inabilitação assinalavam ao ex-presidente como vencedor das eleições por diante de Bolsonaro.
Retirado Lula da luta pela presidência, Fernando Haddad não conseguiu mobilizar os seus votantes. O principal instrutor do caso Lava Jato, o juiz Sérgio Moro, é uma figura fundamental para entender os convulsos últimos anos da política institucional brasileira. Logo das eleições, Moro aceitou o convite de Bolsonaro para ser o seu ministro de Justiça.
Bolsonaro tomará posse do seu cargo o 1 de janeiro. Remata um período de governo de Michel Temer caracterizado por uns fortes cortes no gasto público e numerosos escândalos de corrupção que levaram à grande parte da população brasileira a um fundo desencantamento. É preciso analisar como a ultra-direita conseguiu tirar proveito desse contexto, mas sem perder de vista o urgente: resistir e derrotar todo aquilo que Bolsonaro representa.