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Brasil: golpe de morte?

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Manifestantes se reú­nem pe­las ruas do cen­tro de Porto Alegre em re­pu­dio ao gol­pista Michel Temer

Após a queda de Dilma Rousseff, a esquerda brasileira deve rearmar-se para enfrentar um governo ilegítimo que está a impor umha feroz agenda neoliberal

Para re­ma­tar o dis­curso que pro­nun­ciou o pas­sado 31 de agosto, logo da con­su­ma­çom do golpe de Estado mas­ca­rado de im­pe­a­ch­ment que a apar­tava de­fi­ni­ti­va­mente da Presidência do Brasil, Dilma Rousseff re­ci­tou uns ver­sos de Vladimir Maiakovski: “Nom es­ta­mos ale­gres, é certo, mas tam­bém por que ra­zom ha­ve­ría­mos de fi­car tris­tes? O mar da his­tó­ria é agi­tado. As ame­a­ças e as guer­ras ha­ve­re­mos de atra­vessá-las, rompê-las ao meio, cor­tando-as como umha qui­lha corta as on­das.” A ima­gem do mar agi­tado nom pode ser mais acaída para os tem­pos que vive o país, baixo um go­verno ile­gí­timo afa­nado na apli­ca­çom de me­di­das eco­nó­mi­cas ne­o­li­be­rais e cor­tes nos di­rei­tos so­ci­ais. Para a es­querda, as es­pe­ran­ças de che­gar a bom porto pas­sam hoje por umha re­sis­tên­cia que está a con­vo­car desde a opo­si­çom ins­ti­tu­ci­o­nal ao Presidente Michel Temer (em que se vê obri­gado a re­a­co­mo­dar-se um PT de­sa­lo­jado do po­der após 13 anos) até os mo­vi­men­tos sociais.

É o se­gundo golpe de Estado que en­frento na vida”, vi­nha de di­zer Rousseff uns mi­nu­tos an­tes. As re­fe­rên­cias ao golpe mi­li­tar que der­ru­bou o go­verno de­mo­crá­tico de João Goulart em 1964 para dar passo a duas dé­ca­das de di­ta­dura e re­pres­som som in­con­tor­ná­veis. À es­querda e à di­reita: “Perdêrom em 1964, per­dê­rom em 2016”, pro­cla­mou o his­trió­nico de­pu­tado ul­tra­con­ser­va­dor Jair Bolsonaro na vo­ta­çom par­la­men­tar de aber­tura do pro­cesso. O seu sim foi emi­tido “pela me­mó­ria do co­ro­nel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que foi o pa­vor de Dilma Rousseff”. Ustra, tor­tu­ra­dor con­de­nado pela jus­tiça, foi um dos lí­de­res do apa­re­lho re­pres­sor da di­ta­dura. Bolsonaro as­pira a dis­pu­tar a Presidência do país em 2018.

A situaçom política provocada polo 'impeachment' e as primeiras medidas de Temer remete ao golpe militar de 1964 e a ditadura que o seguiu

Mas se há meio sé­culo a cons­pi­ra­çom de for­ças eco­nó­mi­cas ca­pi­ta­lis­tas, po­de­res me­diá­ti­cos e eli­tes re­li­gi­o­sas apoi­ada po­los Estados Unidos cul­mi­nou com as tro­pas na rua, desta vez o golpe exe­cu­tou-se em forma de im­pe­a­ch­ment, um pro­ce­di­mento con­tem­plado na Constituiçom bra­si­leira. Para po­der ex­pul­sar do po­der à Presidenta uti­li­zando este re­curso, for­çou-se a ne­ces­sá­ria con­si­de­ra­çom de crime de res­pon­sa­bi­li­dade para o facto de o go­verno ter uti­li­zado o ins­tru­mento fi­nan­ceiro co­nhe­cido como pe­da­lada (um atraso na data de pa­ga­mento aos ban­cos dos fun­dos des­ti­na­dos a vá­rias ver­bas or­ça­men­tá­rias) para qua­drar as con­tas. Que a as­si­na­tura da apro­va­çom das pe­da­la­das, uma fer­ra­menta con­tá­bil usada com frequên­cia no Brasil e nou­tros paí­ses, poda al­can­çar para acu­sar a Rousseff do dito crime de res­pon­sa­bi­li­dade foi algo que até o pró­prio Senado des­car­tou, mas a ma­no­bra fun­ci­o­nou. Tudo com a cum­pli­ci­dade dos gran­des meios de co­mu­ni­ca­çom, in­dis­pen­sá­veis para di­ri­gir o mal-es­tar para a fi­gura de Rousseff e dar um ver­niz de le­gi­ti­mi­dade ao go­verno golpista.

O clima so­cial é de elo­gio ao anti-po­lí­tico e de ódio ao pen­sa­mento crí­tico. Tudo isso foi pro­mo­vido po­los oli­go­pó­lios me­diá­ti­cos que par­ti­ci­pá­rom do golpe”, co­menta a fi­ló­sofa e es­cri­tora Marcia Tiburi. “A dou­trina do cho­que e o ca­pi­ta­lismo de de­sas­tre es­tám em as­censo en­tre nós. A ca­tás­trofe é plan­tada na eco­no­mia para dar es­paço às pri­va­ti­za­ções. No meio disso, a fi­nan­cei­ri­za­çom da eco­no­mia corre solta. As ins­ti­tui­çons cada vez mais ele­gem per­so­na­gens au­to­ri­tá­rios que ser­vem como he­róis re­den­to­res, se­jam eles pas­to­res, juí­zes ou apre­sen­ta­do­res de te­le­vi­som, tudo para es­con­der a ver­dade dos fac­tos. Tudo como é pre­visto den­tro do mé­todo ne­o­li­be­ral”, resume.

O Brasil está sendo des­mon­tado, des­truído”, la­menta Tiburi. Esta sen­sa­çom de emer­gên­cia é co­mum a to­dos os di­ag­nós­ti­cos da es­querda e o triunfo da es­tra­té­gia gol­pista obriga à re­or­ga­ni­za­çom das lu­tas e à soma de for­ças. Para o PT, a queda de Rousseff con­firma o fra­casso da sua ten­ta­tiva de su­pe­rar as di­fi­cul­da­des eco­nó­mi­cas com con­ces­sons à di­reita par­la­men­tar e aos po­de­res eco­nó­mi­cos. Os par­ti­dos de es­querda mi­no­ri­tá­rios, as for­ças sin­di­cais e os mo­vi­men­tos so­ci­ais, que vi­nham con­tes­tando os in­cum­pri­men­tos pro­gra­má­ti­cos do PT, en­ca­ram agora um ini­migo que sa­bo­reia o su­cesso do golpe e des­fruta do apoio dos Estados Unidos e ou­tros go­ver­nos afins.

mi­guel auria

Porém, num país de vi­ço­sos mo­vi­men­tos so­ci­ais, as ini­ci­a­ti­vas fo­ca­das à con­ver­gên­cia de for­ças re­sis­ten­tes ao as­salto ne­o­li­be­ral já es­ta­vam na forja. Em prin­cí­pios de se­tem­bro de 2015 foi cons­ti­tuída a Frente Brasil Popular, com o ob­je­tivo de lu­tar con­tra o en­tom in­ci­pi­ente golpe e a apli­ca­çom de po­lí­ti­cas de aus­te­ri­dade. Nela in­te­gram-se for­ças sin­di­cais (como a mai­o­ri­tá­ria Central Única dos Trabalhadores), mo­vi­men­tos po­pu­la­res e in­dí­ge­nas (en­tre eles, o po­tente MST) ou or­ga­ni­za­çons fe­mi­nis­tas e LGBT, para além de con­tar com a ade­som de mi­li­tan­tes e di­ri­gen­tes da es­querda par­ti­dá­ria. No seu ma­ni­festo fun­da­ci­o­nal, a FBP ad­vo­gava pola de­fesa dos di­rei­tos da classe tra­ba­lha­dora bra­si­leira e a luta con­tra as po­lí­ti­cas de ajuste fis­cal e pri­va­ti­za­çom, apos­tando na au­di­to­ria da dí­vida e nos im­pos­tos so­bre gran­des for­tu­nas, além de de­fen­der a so­be­ra­nia na­ci­o­nal e a in­te­gra­çom regional.

Um mês de­pois, a ini­ci­a­tiva do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), bo­tava a an­dar o Movimento Povo Sem Medo, mais afas­tado do PT. Composto tam­bém por umha amál­gama de mo­vi­men­tos so­ci­ais e or­ga­ni­za­çons sin­di­cais e es­tu­dan­tis, o Povo Sem Medo par­ti­lha boa parte dos prin­cí­pios fun­da­ci­o­nais da FBP, de­fine-se como um mo­vi­mento “con­tra o avanço das saí­das con­ser­va­do­ras apoi­ado pela grande mí­dia e con­tra a po­lí­tica de aus­te­ri­dade que im­pacta na vida do povo” e chama a “es­tar nas ruas em de­fesa da ra­di­ca­li­za­çom da nossa democracia”.

Precisamente as ruas som o es­paço onde se está a en­ce­nar a uniom da opo­si­çom ao golpe. As mo­bi­li­za­çons uni­tá­rias su­ce­dem-se por todo o país em res­posta ao im­pe­a­ch­ment e aos su­ces­si­vos anún­cios de cor­tes eco­nó­mi­cos e so­ci­ais por parte do go­verno de Temer, que vai exe­cu­tando a sua agenda com enorme ce­le­ri­dade en­quanto a Polícia Militar in­ten­si­fica a re­pres­som das ma­ni­fes­ta­çons. Os sin­di­ca­tos, pe­rante o ata­que aos di­rei­tos la­bo­rais, nom de­mo­rá­rom a tra­ba­lhar na con­vo­ca­tó­ria dumha greve ge­ral. Os es­tu­dan­tes, alvo de al­gumhas das me­di­das mais du­ras, ocu­pam cen­tos de es­co­las ao longo do país.

"O clima social é de elogio ao ánti-político e de ódio ao pensamento crítico. Todo isso foi promovido polos oligopólios mediáticos que participárom do golpe", comenta a filósofa Marcia Tiburi

Nos mo­vi­men­tos fe­mi­nis­tas, LGBT e an­tir­ra­cis­tas, o im­pe­a­ch­ment acen­deu to­dos os alar­mes. A men­sa­gem que lhes lan­çou Temer quando no­meou um go­verno for­mado in­tei­ra­mente por ho­mens bran­cos foi ní­tida: o exe­cu­tivo gol­pista fa­zia umha de­cla­ra­çom de guerra, desde a sua mesma cons­ti­tui­çom, con­tra qual­quer avanço no re­co­nhe­ci­mento dos seus di­rei­tos. “O golpe é mi­só­gino, ho­mo­fó­bico e ra­cista”, ad­ver­tiu Dilma Rousseff. “O go­verno ile­gí­timo planta umha es­té­tica em que o ho­mem branco, ra­cista e mi­só­gino, se co­loca como dono do país. Ele as­susta, apa­vora como um per­so­na­gem de filme de ter­ror e, como usa o ci­nismo como re­gra, deixa a po­pu­la­çom sem en­ten­der o que se passa”, re­fle­xi­ona ao res­peito Marcia Tiburi.

Entretanto, em pa­ra­lelo às ruas, nos tri­bu­nais dis­pu­tam-se ou­tras ba­ta­lhas. O ex-pre­si­dente da Câmara dos Deputados e ar­tí­fice do im­pe­a­ch­ment, Eduardo Cunha, era de­tido o pas­sado 19 de ou­tu­bro por de­li­tos de cor­rup­çom e a ope­ra­çom Lava Jato (con­tra o bran­que­a­mento de ca­pi­tais na Petrobras) avança en­vol­vendo a po­lí­ti­cos de to­dos os gran­des par­ti­dos, en­quanto ma­no­bras ju­di­ciá­rias vi­sam obs­ta­cu­li­zar umha hi­po­té­tica can­di­da­tura de Lula da Silva em 2018.

Ofensiva legislativa contra a classe trabalhadora

marcos corrêa
O pre­si­dente Temer reu­nido com lí­de­res do se­nado em Junho

De en­tre to­das as me­di­das to­ma­das polo exe­cu­tivo de Michel Temer, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241, em fase de tra­mi­ta­çom par­la­men­tar, é a que me­lhor sin­te­tiza o mo­delo que os po­de­res eco­nó­mi­cos pre­ten­dem im­plan­tar no país. Em re­sumo, a PEC 241 im­plica a con­ge­la­çom do gasto pú­blico du­rante os pró­xi­mos 20 anos, li­mi­tando qual­quer au­mento à taxa de in­fla­çom e desligando‑o das ne­ces­si­da­des da populaçom.

Publicitada com ape­los à aus­te­ri­dade e à con­fi­ança dos mer­ca­dos, esta me­dida re­pre­senta um ata­que fron­tal às clas­ses po­pu­la­res do país ao pre­ju­di­car gra­ve­mente os sis­te­mas pú­bli­cos de saúde e edu­ca­çom. Assim, a PEC en­carna umha sorte de con­trar­re­forma ne­o­li­be­ral às tí­mi­das po­lí­ti­cas re­dis­tri­bu­ti­vas dos go­ver­nos do PT. Para en­ten­der as pro­fun­das im­pli­ca­çons desta norma, basta com as­si­na­lar que varre um dos lo­gros da Constituiçom de 1988 em ma­té­ria so­cial, a obri­ga­to­ri­e­dade de des­ti­nar umha de­ter­mi­nada per­cen­ta­gem das re­cei­tas do Estado ao fi­nan­ci­a­mento dos sis­te­mas de saúde e educaçom.

No âm­bito da saúde, com a apro­va­çom deste li­mite de gasto o go­verno gol­pista vai re­du­zir ainda mais os re­cur­sos dum Sistema Único de Saúde (SUS) des­bor­dado e ne­ces­si­tado de in­ves­ti­mento. As gran­des be­ne­fi­ciá­rias desta si­tu­a­çom som as as­se­gu­ra­do­ras pri­va­das, moi­tas de­las nas maos de fun­dos trans­na­ci­o­nais, que olham com co­biça para as pos­si­bi­li­da­des de ne­gó­cio que vis­lum­bram numa po­pu­la­çom que con­ce­bem como um su­cu­lento mer­cado de du­zen­tos mi­lhons de pessoas.

Para a edu­ca­çom, a PEC apre­senta uma ame­aça se­me­lhante. O cons­tran­gi­mento or­ça­men­tal co­loca em risco o Plano Nacional de Educaçom apro­vado em 2014. Com o ob­je­tivo de con­se­guir in­se­rir no sis­tema edu­ca­tivo a to­ta­li­dade da po­pu­la­çom em idade es­co­lar e de me­lho­rar a qua­li­dade do en­sino e as con­di­çons la­bo­rais do pro­fes­so­rado, o PNE con­tem­plava atin­gir um in­ves­ti­mento de sete por cento do PIB no seu quinto ano de vi­gên­cia e de dez por cento no dé­cimo. Agora es­tas me­tas som uma utopia.

Por se fosse pouco, ou­tros cor­tes ame­a­çam à classe tra­ba­lha­dora. O go­verno, ati­çado por umha pa­tro­nal que se re­creia na po­si­çom pri­vi­le­gi­ada na que a si­tua o golpe, prevê um ata­que à Previdência Social (o sis­tema na­ci­o­nal de se­gu­rança so­cial) que uni­fi­que e eleve a idade de ju­bi­la­ção até os 65 anos e en­du­reça o cál­culo das quan­ti­da­des a co­brar, para além de umha re­forma la­bo­ral que con­tem­pla um au­mento das ho­ras de tra­ba­lho e a pre­ca­ri­za­çom das suas condiçons.

Como co­lo­fom, as­soma no ho­ri­zonte o sa­queio pri­va­ti­za­dor da joia da eco­no­mia bra­si­leira, a Petrobras. Um pro­cesso que re­cen­te­mente ex­pe­ri­men­tou um grande avanço com a re­ti­rada da obri­ga­ção de par­ti­ci­pa­çom da pe­tro­leira es­ta­tal na ex­plo­ra­çom das co­bi­ça­dís­si­mas re­ser­vas do su­deste do país, na zona co­nhe­cida como pré-sal. O gi­gante ener­gé­tico é o grande ob­je­tivo do ca­pi­tal trans­na­ci­o­nal e o seu con­trolo é um ponto es­tra­té­gico na luta de po­der en­tre o im­pe­ri­a­lismo euro-ame­ri­cano e ali­an­ças al­ter­na­ti­vas como o grupo dos BRICS ou a Unasul.

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