Porque nom hei de cantare
porque nom hei de cantare,
porque nei de andar’e alegre
mentras nom tenha pesare…
Candelária partiu umha perna. Enquanto espera deitada nunha cama de hospital a que o sintrom deixe de fazer efeito no seu corpo, ela canta. Meteu-lhe essa mania a sua nai. Seica cantavam as duas na lareira todas as noites. E ela, que já nom tem lareira nem nai, ainda canta. Porque Candelária é velha, mas também fai país através da sua garganta.
Os marinheiros da Serra
os marinheiros da Serra
botam a rede no mar
colhem a sardinha cheia
Candelária trabalhou no mar apanhando no mexilhom e na ameixa. Nunca cotizou por isso, ainda que os homens das sardinhas sim o figessem. Tem na cabeça o nome de cada peixe e moluscos que há na ria de Corme e pode-chos recitar de memória. Porque Candelária é velha, mas também é classe obreira.
Todo o mundo me marmula
porque som adivertida
malas lenguas para o inferno
qu’eu govern’a minha vida
Candelária foi a primeira alfareira da bisbarra. Ela non lhe dá importância. Às vezes nem se lembra se non lho recordam, mas o seu filho conta‑o assim tem a mínima oportunidade. Porque Candelária é velha mas também é feminista (ainda nom sabendo quê raios de palavra é essa).
Ata o mandil
ata o mandil Dolores,
ata o mandil
que che vam cair as flores.
Candelária tem três filhos que gozam de boa saúde e estám de bom ver; porém é cuidada por unha neta as 24h do dia. Sustentar a vida deve ser algo que se herda só no cromossoma XX. Quando a neta descansa vem unha mulher de estraperlo para poder chegar a fim de mês. Porque Candelária é velha mas também necessita ser cuidada, tanto como as novas.
[despedida]
Anque me vou non me vou‑e
anque me vou non te olvido
anque me vou c´o meu corpo
nom me vou c´o meu sentido.
Candelária tem alzheimer. Por vezes nom lembra bem do seu nome e enfada-se toda porque o tem na ponta da língua. Mas cada vez que o seu filho se despede, ela aconselha-lhe que tenha cuidadinho na estrada. Porque quiçais, umha das últimas cousas que se desaprendam na vida, seja o amor.
Dentro de poucos anos, quando Candelária perda por completo a capacidade de comunicar-se e de alimentar-se por si própria, quiçais consiga vaga num centro de dia. Se tem sorte numha residência concertada em que o ratio de pessoal sanitário está muito por baixo da necessária para a dignidade humana. O dinheiro que se aforre nas condiçons laborais das empregadas irá diretamente para os bolsos dalgum amigo de gravata do governo de turno. Ainda asim, Candelária terá a obriga de sentir-se afortunada por estar numha cadeira de rodas coloreando mandalas ao carom doutras cinquenta pessoas sobremedicadas. Nengumha instituiçom recompensará Noélia (neta sen nome) por empregar os últimos seis anos da sua vida no cuidado da sua avoa. E evidentemente tampouco nengumha empresa o fará sabendo a Noélia sem experiência laboral prévia.
A saúde pública muito tem que aprender ainda de Candelária, e de todas essas mulheres, que ainda esquecendo, seguem ensinando.