Periódico galego de informaçom crítica

Brasil, mostra tua cara

por
Manifestante grita num pro­testo con­tra o as­sas­si­nato de Marielle Franco | fá­bio vieira

A vi­tó­ria de Jair Bolsonaro nas elei­ções de 2018 é a cul­mi­na­ção de um pro­cesso ini­ci­ado em 2014 com a aper­tada vi­tó­ria da Presidenta Dilma, ques­ti­o­nada mesmo an­tes da sua posse por for­ças da di­reita. No pe­ríodo 2014–2016 o golpe con­tra o Partido dos Trabalhadores e a pre­si­denta fo­ram dis­far­ça­dos de mo­vi­mento an­ti­cor­rup­ção, agi­tado pela ope­ra­ção Lava Jato, di­ri­gida pelo juiz fe­de­ral Sérgio Moro. O re­sul­tado foi um im­pe­a­ch­ment em que os de­pu­ta­dos anun­ci­a­vam o voto fa­vo­rá­vel à des­ti­tui­ção com lou­vo­res à di­ta­dura mi­li­tar, à fa­mí­lia tra­di­ci­o­nal e a Deus. O pre­si­dente eleito ma­te­ri­a­liza es­ses dis­cur­sos, ra­zão prin­ci­pal para o apoio re­ce­bido por parte de 57 mi­lhões que vo­ta­ram nele e mais 40 mi­lhões que se abs­ti­ve­ram ou anu­la­ram o voto.

As po­pu­la­ções mais vul­ne­rá­veis (ne­gros, in­dí­ge­nas, po­bres, mu­lhe­res, LGBT) vi­vem com medo o novo ce­ná­rio, pois as po­si­ções fas­cis­tas de Bolsonaro sus­ten­tam um clima de vi­o­lên­cia que já se per­cebe nas ruas, e as suas pro­pos­tas apon­tam para o mi­li­ta­rismo, a re­pres­são nas es­co­las, a de­sar­ti­cu­la­ção da rede pú­blica de saúde e edu­ca­ção ou a le­gi­ti­ma­ção da bru­ta­li­dade policial.

As po­pu­la­ções mais vul­ne­rá­veis vi­vem com medo o novo ce­ná­rio, pois as po­si­ções fas­cis­tas de Bolsonaro sus­ten­tam um clima de violência 

Para en­ten­der como se che­gou a esta si­tu­a­ção num país que vende uma ima­gem de cor­di­a­li­dade, as cha­ves são vá­rias e com­ple­xas. A prin­ci­pal ques­tão de fundo é o ra­cismo que es­tru­tura a so­ci­e­dade bra­si­leira desde a sua ori­gem co­lo­nial, en­co­berto por ideias de de­mo­cra­cia ra­cial e mis­ci­ge­na­ção, em­bora esta seja, em boa me­dida, o pro­duto da vi­o­la­ção sis­te­má­tica das mu­lhe­res ne­gras e indígenas.

O Brasil é fun­dado so­bre o ex­ter­mí­nio dos po­vos in­dí­ge­nas e so­bre a ex­plo­ra­ção ca­pi­ta­lista de po­pu­la­ção ne­gra es­cra­vi­zada, mai­o­ri­tá­ria ape­sar de in­ten­tos “hi­gi­e­nis­tas” de bran­que­a­mento desde os iní­cios do sé­culo XIX: mão de obra branca, de ori­gem eu­ro­peia, im­por­tada mas­si­va­mente, re­ce­bia lo­tes de terra gra­tui­tos ao mesmo tempo que os ne­gros, re­cém li­ber­tos de­pois da abo­li­ção da es­cra­va­tura em 1888, eram im­pe­di­dos de pos­suir terra. O ra­cismo es­tru­tu­ral e es­tru­tu­rante tra­duz-se, por ex­ten­são, no ódio ao po­bre, pois numa alta per­cen­ta­gem po­bre e ne­gro são ca­te­go­rias que se sobrepõem.

Os anos de go­verno do PT (8 de Lula e 6 de Dilma) ca­ra­te­ri­za­ram-se por po­lí­ti­cas so­ci­ais de trans­fe­rên­cia de renda: as cha­ma­das bol­sas, ou sub­sí­dios pú­bli­cos, a mais im­por­tante das quais é a “bolsa fa­mí­lia”, que ga­rante uma renda mí­nima, vin­cu­lada à frequên­cia con­ti­nu­ada à es­cola e à ma­nu­ten­ção das va­ci­nas das cri­an­ças em dia, e que ga­ran­tiu co­mida na mesa e es­co­la­ri­dade bá­sica para um nú­mero muito im­por­tante de pes­soas; as ações afir­ma­ti­vas em forma de co­tas para es­tu­dan­tes pro­ce­den­tes da es­cola pú­blica, de baixa renda, ne­gros e in­dí­ge­nas, que per­mi­ti­ram que es­tas po­pu­la­ções ace­des­sem pela pri­meira vez à uni­ver­si­dade pú­blica; o in­ves­ti­mento (ainda in­su­fi­ci­ente) em um sis­tema pú­blico de saúde; a fa­ci­li­dade de cré­dito para aqui­si­ção de bens bá­si­cos; po­lí­ti­cas de acesso a mo­ra­dia (‘Minha casa, mi­nha vida’), e o re­co­nhe­ci­mento e pro­te­ção para as em­pre­ga­das do­més­ti­cas, tendo o Brasil uma das mai­o­res for­ças de tra­ba­lho deste tipo no mundo, com­posta mai­o­ri­ta­ri­a­mente por mu­lhe­res ne­gras em si­tu­a­ção de ex­plo­ra­ção extrema.

As po­lí­ti­cas so­ci­ais cri­a­ram res­sen­ti­mento en­tre a classe mé­dia-mé­dia alta e a po­pu­la­ção branca, que cris­ta­li­zou num “an­ti­pe­tismo” vis­ce­ral que in­te­res­sa­da­mente co­loca o foco na cor­rup­ção como mal maior para o des­viar do pro­blema da de­si­gual­dade so­cial, ape­lando a uma me­ri­to­cra­cia im­pos­sí­vel para um 80% da po­pu­la­ção que ga­nha me­nos de 2 sa­lá­rios mí­ni­mos (uns 1600 reais/ 400 eu­ros), que fre­quenta uma es­cola pú­blica com pro­fes­so­ras mal pa­gas (ar­re­dor de 1400 reais/ 350 eu­ros) e com car­gas ho­rá­rias in­ter­mi­ná­veis. Lula, preso por um de­lito de cor­rup­ção que não foi pro­vado, in­carna o que es­ses se­to­res bran­cos de classe mé­dia mais abo­mi­nam: um ho­mem de baixa es­co­la­ri­dade, de ori­gem po­bre e nor­des­tina que che­gou ao po­der. Os es­ta­dos do Sul e do Sudeste, mais ri­cos e in­dus­tri­a­li­za­dos, são os que mais vo­tam na di­reita e nos que existe um maior pre­con­ceito em re­la­ção aos es­ta­dos do Norte e do Nordeste, mais po­bres e com mai­o­ria de po­pu­la­ção negra.

O su­cesso das igre­jas pen­te­cos­tais aju­dou a con­gre­gar sen­ti­men­tos con­ser­va­do­res nas pe­ri­fe­rias ur­ba­nas, ocu­pando um es­paço aban­do­nado tanto pe­las ins­ti­tui­ções pú­bli­cas como pe­los par­ti­dos da esquerda

O su­cesso das igre­jas pen­te­cos­tais aju­dou a con­gre­gar sen­ti­men­tos con­ser­va­do­res nas pe­ri­fe­rias ur­ba­nas, ocu­pando um es­paço aban­do­nado tanto pe­las ins­ti­tui­ções pú­bli­cas como pe­los par­ti­dos da es­querda: aten­di­mento a jo­vens adic­tos às dro­gas, di­fu­são de um certo “em­pre­en­de­do­rismo” e uma te­ra­pia psico-so­cial para pes­soas em si­tu­a­ções de ca­rên­cia, pro­mo­vendo ao mesmo tempo uma agenda mar­cada pela hos­ti­li­dade à di­ver­si­dade se­xual e de gênero.

Desde a des­ti­tui­ção de Dilma, a di­reita, sem um can­di­dato claro en­tre os par­ti­dos tra­di­ci­o­nais, aliou-se à mí­dia (es­pe­ci­al­mente à Rede Globo) e à ju­di­ca­tura para le­gi­ti­mar dis­cur­sos ex­tre­mis­tas pen­sando er­ro­ne­a­mente que iriam po­der con­trolá-los, mas Bolsonaro soube ser­vir-se das re­des so­ci­ais uti­li­zando fi­nan­ci­a­mento ile­gal de cam­pa­nha pro­ce­dente de em­pre­sá­rios para a dis­tri­bui­ção em massa de no­tí­cias fal­sas atra­vés de gru­pos de what­sapp e robôs. Esta foi a prin­ci­pal es­tra­té­gia de um can­di­dato que não ti­nha pra­ti­ca­mente tempo de TV e que se ne­gou a par­ti­ci­par de de­ba­tes com o seu opo­nente, o pro­fes­sor Fernando Haddad.

Entretanto, o dis­curso an­ti­cor­rup­ção que apon­tava o dedo a uma ma­cela su­pos­ta­mente in­trín­seca ao PT des­mo­rona-se: o juiz Moro va­zou áu­dios da in­ves­ti­ga­ção em mo­men­tos elei­to­rais chave e re­ti­rou Lula, o can­di­dato pre­fe­rido em to­das as pes­qui­sas, da cor­rida elei­to­ral, o que lhe va­leu como re­com­pensa o mi­nis­té­rio de Justiça e Segurança, e vá­rios en­cau­sa­dos por cor­rup­ção fo­ram já apon­ta­dos como ministros.

O in­te­resse da grande elite em ele­ger Bolsonaro, ape­sar do alto preço que será pago em vi­das hu­ma­nas, en­con­tra-se na pri­va­ti­za­ção do pe­tró­leo bra­si­leiro que será ce­dido para ex­plo­ra­ção por em­pre­sas es­tran­gei­ras, e no fim da pre­cá­ria pro­te­ção da Amazônia e dos po­vos da flo­resta em fa­vor de um mo­delo de ca­pi­ta­lismo sel­va­gem que, como o es­cri­tor Luís Ruffato lem­brou em 2013, no Brasil não é uma metáfora.

O último de A terra treme

As verdades de Israel

Desde 1948, a ocupação israelita conseguiu normalizar grande parte do seu ideário
Ir Acima