A vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018 é a culminação de um processo iniciado em 2014 com a apertada vitória da Presidenta Dilma, questionada mesmo antes da sua posse por forças da direita. No período 2014–2016 o golpe contra o Partido dos Trabalhadores e a presidenta foram disfarçados de movimento anticorrupção, agitado pela operação Lava Jato, dirigida pelo juiz federal Sérgio Moro. O resultado foi um impeachment em que os deputados anunciavam o voto favorável à destituição com louvores à ditadura militar, à família tradicional e a Deus. O presidente eleito materializa esses discursos, razão principal para o apoio recebido por parte de 57 milhões que votaram nele e mais 40 milhões que se abstiveram ou anularam o voto.
As populações mais vulneráveis (negros, indígenas, pobres, mulheres, LGBT) vivem com medo o novo cenário, pois as posições fascistas de Bolsonaro sustentam um clima de violência que já se percebe nas ruas, e as suas propostas apontam para o militarismo, a repressão nas escolas, a desarticulação da rede pública de saúde e educação ou a legitimação da brutalidade policial.
Para entender como se chegou a esta situação num país que vende uma imagem de cordialidade, as chaves são várias e complexas. A principal questão de fundo é o racismo que estrutura a sociedade brasileira desde a sua origem colonial, encoberto por ideias de democracia racial e miscigenação, embora esta seja, em boa medida, o produto da violação sistemática das mulheres negras e indígenas.
O Brasil é fundado sobre o extermínio dos povos indígenas e sobre a exploração capitalista de população negra escravizada, maioritária apesar de intentos “higienistas” de branqueamento desde os inícios do século XIX: mão de obra branca, de origem europeia, importada massivamente, recebia lotes de terra gratuitos ao mesmo tempo que os negros, recém libertos depois da abolição da escravatura em 1888, eram impedidos de possuir terra. O racismo estrutural e estruturante traduz-se, por extensão, no ódio ao pobre, pois numa alta percentagem pobre e negro são categorias que se sobrepõem.
Os anos de governo do PT (8 de Lula e 6 de Dilma) caraterizaram-se por políticas sociais de transferência de renda: as chamadas bolsas, ou subsídios públicos, a mais importante das quais é a “bolsa família”, que garante uma renda mínima, vinculada à frequência continuada à escola e à manutenção das vacinas das crianças em dia, e que garantiu comida na mesa e escolaridade básica para um número muito importante de pessoas; as ações afirmativas em forma de cotas para estudantes procedentes da escola pública, de baixa renda, negros e indígenas, que permitiram que estas populações acedessem pela primeira vez à universidade pública; o investimento (ainda insuficiente) em um sistema público de saúde; a facilidade de crédito para aquisição de bens básicos; políticas de acesso a moradia (‘Minha casa, minha vida’), e o reconhecimento e proteção para as empregadas domésticas, tendo o Brasil uma das maiores forças de trabalho deste tipo no mundo, composta maioritariamente por mulheres negras em situação de exploração extrema.
As políticas sociais criaram ressentimento entre a classe média-média alta e a população branca, que cristalizou num “antipetismo” visceral que interessadamente coloca o foco na corrupção como mal maior para o desviar do problema da desigualdade social, apelando a uma meritocracia impossível para um 80% da população que ganha menos de 2 salários mínimos (uns 1600 reais/ 400 euros), que frequenta uma escola pública com professoras mal pagas (arredor de 1400 reais/ 350 euros) e com cargas horárias intermináveis. Lula, preso por um delito de corrupção que não foi provado, incarna o que esses setores brancos de classe média mais abominam: um homem de baixa escolaridade, de origem pobre e nordestina que chegou ao poder. Os estados do Sul e do Sudeste, mais ricos e industrializados, são os que mais votam na direita e nos que existe um maior preconceito em relação aos estados do Norte e do Nordeste, mais pobres e com maioria de população negra.
O sucesso das igrejas pentecostais ajudou a congregar sentimentos conservadores nas periferias urbanas, ocupando um espaço abandonado tanto pelas instituições públicas como pelos partidos da esquerda: atendimento a jovens adictos às drogas, difusão de um certo “empreendedorismo” e uma terapia psico-social para pessoas em situações de carência, promovendo ao mesmo tempo uma agenda marcada pela hostilidade à diversidade sexual e de gênero.
Desde a destituição de Dilma, a direita, sem um candidato claro entre os partidos tradicionais, aliou-se à mídia (especialmente à Rede Globo) e à judicatura para legitimar discursos extremistas pensando erroneamente que iriam poder controlá-los, mas Bolsonaro soube servir-se das redes sociais utilizando financiamento ilegal de campanha procedente de empresários para a distribuição em massa de notícias falsas através de grupos de whatsapp e robôs. Esta foi a principal estratégia de um candidato que não tinha praticamente tempo de TV e que se negou a participar de debates com o seu oponente, o professor Fernando Haddad.
Entretanto, o discurso anticorrupção que apontava o dedo a uma macela supostamente intrínseca ao PT desmorona-se: o juiz Moro vazou áudios da investigação em momentos eleitorais chave e retirou Lula, o candidato preferido em todas as pesquisas, da corrida eleitoral, o que lhe valeu como recompensa o ministério de Justiça e Segurança, e vários encausados por corrupção foram já apontados como ministros.
O interesse da grande elite em eleger Bolsonaro, apesar do alto preço que será pago em vidas humanas, encontra-se na privatização do petróleo brasileiro que será cedido para exploração por empresas estrangeiras, e no fim da precária proteção da Amazônia e dos povos da floresta em favor de um modelo de capitalismo selvagem que, como o escritor Luís Ruffato lembrou em 2013, no Brasil não é uma metáfora.