Antes de 1917, o atletismo na Rússia apenas se praticava em algum círculo elitista influenciado polo sport anglo-saxom. Com o trunfo da Revoluçom, também este campo experimentará enormes mudanças, encetando a URSS umha via própria, o que o sociólogo Norbert Elias terá chamado de “processo de desportivizaçom”, via que um teórico do desporto sintetizou como “nem libertaçom nem diversom: umha disciplina vital”. Com certeza, a prática desportiva na URSS deve ser enquadrada na vertiginosa política de modernizaçom que pretendia alcançar os standards dos países capitalistas, e que polo tanto, também partilhava com eles a genealogia disciplinar do desporto, mas as peculiaridades soviéticas nom deixam de ser significativas. Repassamos aqui as que vam de 1917 a 1945.
Da educaçom física ao desporto de massas
A institucionalizaçom da prática desportiva decorre mui aginha no novo país socialista que, porém, é excluído das grandes organizaçons internacionais de desporto olímpico, como o COI, e de federaçons internacionais como a IAFF. Apesar destes atrancos, em 1918 Lenine assina um decreto para a criaçom em Moscovo do Instituto da Cultura Física, ao tempo que a educaçom física se torna pola primeira vez umha disciplina obrigatória na escola; um ano mais tarde, o governo despregará um ambicioso programa de desenvolvimento físico da populaçom. Cada creché passaria a contar com um médico e um professor de educaçom física, e nas escolas instauraria-se a ginásia matinal como umha rotina mais no desenvolvimento pessoal do alunado. No mundo universitário nom será até 1962 que a educaçom física se torne obrigatória. Como disciplina académica, a educaçom física contava com um elemento diferenciador relativamente à forma como era concebida no mundo capitalista: procurava-se a utilizaçom dos avanços científicos no mundo do trabalho, bem-estar dos operários e prevençom de doenças laborais associadas a cada tarefa. Para 1923 criará-se o Conselho Supremo da Cultura Física, o máximo órgao de gestom do desporto na URSS.
A finalidade da promovida educaçom física era a de formar umha pessoa “capacitada para o trabalho e para a defesa da pátria” (de facto esse é o nome do primeiro título desportivo oferecido pola URSS, o BGTO). No período de 1925–1930 promulgam-se um conjunto de leis e de medidas nom só para o desenvolvimento da educaçom física, mas também para promover o chamado “desporto de massas”. É o período em que se fundam as grandes sociedades desportivas que conhecemos hoje: o Dynamo, Spartak, Lokomotiv, etc. Por estas políticas também se explica a fácil acessibilidade aos espetáculos desportivos: nos anos sessenta o futebol era tam barato que o estádio central de Moscovo reunia de oitenta a cem mil pessoas um par de vezes por semana.
Um associativismo estatalizado
A Uniom de Sociedades e Organizaçons Desportivas da URSS tratava de todos os assuntos relacionados com o associativismo desportivo. Além das convencionais sociedades desportivas de base territorial ‑a Trud na Rússia ou Vanguarda na Ucránia‑, a URSS promoveu especialmente outras sociedades de tipo interrepublicano assentadas no mundo do trabalho. Algumhas delas ainda nos som hoje familiares polas equipas de futebol de renome europeu, ainda que todas elas se tratam de sociedades pluridesportivas. Assim, o Lokomotiv é a sociedade desportiva dos trabalhadores do setor de transportes, o Burevestnik do estudantado e professorado, o Spartak dos empregados e trabalhadores de diversos ramos, o Vodnik da Marinha, já o Dynamo dos empregados do Ministério do Interior.
Para a década de 1960 introduziu-se a promoçom das duas pausas diárias de dez minutos no posto de trabalho para realizar ginásia preventiva de doenças laborais, dirigidas polos próprios trabalhadores
Estas sociedades eram sempre pluridesportivas, e por baixo delas existiam inúmeros círculos e agrupaçons de cultura física vinculados ao mundo do trabalho. Por umha pequena quota (por volta de 0,15% do salário), cada associada tinha direito à insígnia e uniforme do coletivo, ao uso gratuito das instalaçons e serviços, e a participar da vida política da mesma, tendo direito a escolher os dirigentes das sociedades desportivas e a apresentar-se para esses mesmos postos.
Este modelo organizativo tivo um grande sucesso, ao ponto de chegarem a existir por volta de uns setenta mil círculos de cultura física nas fábricas, sovkhoz e kolkhoz. Para a década de 1960 introduziu-se a promoçom das duas pausas diárias de dez minutos no posto de trabalho para realizar ginásia preventiva de doenças laborais, dirigidas polos próprios trabalhadores, e dos que participava todo o mundo, independentemente de estarem associados ou nom às agrupaçons desportivas.
Esta mesta rede associativa do desporto é a que explica a repercussom que tinham as Spartakiadas com que a URSS respondia à exclusom das Olimpíadas. As Spartakiadas enraizavam nos centros de trabalho, atingindo nas de 1963 umha impressionante cifra de 66 milhons de participantes. A razom é que o modelo de participaçom era radicalmente diferente ao do desporto profissional: nas Spartakiadas todo o mundo participava nas provas classificatórias de que era amador. Nas do ano 1965, por exemplo, participaram competindo quinze milhons de operários, empregados e kolkhozniki, pertencentes a setenta mil clubes e, nom obstante esta base popular, nove recordes do mundo foram batidos polos desportistas amadores.
Tal e como explica a Enciclopédia Comparada USA-URSS, a grande diferença entre o desporto de elite soviético e o do mundo capitalista é que “o desportista soviético nom se desliga nunca do seu local de trabalho; quando termina a sua carreira desportiva volta onde trabalhava, a menos que tenha vocaçom pedagógica e vire treinador ou professor. Nestes casos, é a própria empresa a atribuir um salário de treinador ou professor”. A ligaçom ao mundo do trabalho continuava mesmo quando o desportista atingia sucesso internacional, embora se lhe concedessem facilidades para o treino ou os deslocamentos, ou férias para preparar umha competiçom importante. Entre os desportistas de elite recrutavam-se os quadros para os planos estatais de educaçom física ou para a investigaçom científica desportiva na Academia das Ciências da URSS.
Da competiçom à batalha
Com a conflagraçom da II Guerra Mundial, chamada na URSS de Grande Guerra Pátria, a totalidade dos desportistas de elite soviéticos tiveram que pegar nas armas. Pouco depois do ataque nazi de 22 de junho de 1941, já se organizam os comandos de desportistas voluntários agrupados na Brigada Motorizada Especial de Operaçons (OMSBON), especializada na sabotagem, onde destacaram todo o tipo de atletas, esquiadores, alpinistas, jogadores de hóquei no gelo, boxeadores, etcétera. A desportivizaçom da URSS era tal que mesmo durante o assédio de Leningrado, em 31 de maio de 1942, se chegou a disputar um corta-mato, de fuzil na mao.
Também combateram na OMSBON os que talvez fossem os dous atletas soviéticos mais célebres até entom, os irmaos Serafim e Gueorgui Znamenski, suicidando-se o primeiro em maio de 1942 ao inteirar-se da morte da mae e falecendo o segundo em 1946 por um cancro do estômago. Ambos os dous estudantes de medicina, serviram no destacamento médico.
As Spartakiadas enraizavam nos centros de trabalho, atingindo nas de 1963 umha impressionante cifra de 66 milhons de participantes.
A história destes dous vizinhos da aldeia Zelenaia Svoboda é o paradigma de heróis da classe operária que promulgava a URSS. Os dous acudiam diariamente ao seu trabalho em Balashikha, nos arredores de Moscovo, correndo 16 quilómetros como parte do seu treinamento. Sempre com Serafim na primeira posiçom e Gueorgui na segunda, os irmaos Znamenski ganharam em 1934 os campeonatos nacionais de 1.500, 5.000 e 10.000 metros, consagrando-se como os grandes dominadores do fundo soviético. Nos anos 1935, 1937 e 1938 ganhárom o corta-mato internacional que o jornal L’Humanité organizava em Paris, criando tal expetaçom entre a classe operária parisina que no último ano que a disputárom congregárom 60.000 espetadores entusiastas. O palmarés de Serafim antes do começo da guerra era espetacular: cinco vezes campeom da URSS nos 5.000m, quatro nos 10.000, e também venceu nas Olimpíadas Operárias sobre esta última distáncia.
Depois da brutal paréntese bélica, a URSS é readmitida por méritos próprios no COI, dando começo um novo capítulo do desporto soviético, agora marcado pola transformaçom do campo desportivo em mais um cenário da Guerra Fria com os EUA. O temor ao choque direto fazia da corrida espacial ou das Olimpíadas um outro campo de batalha, menos perigoso para a humanidade, onde as duas grandes potências mediriam o seu prestígio e influência internacional. É neste contexto de transformaçom do desporto na “continuaçom da política por outros meios” que a URSS ocupou o primeiro lugar no medalheiro dos Jogos de Melbourne, repetindo nos seguintes de Roma.
Bibliografia
- Marc Saporta & Georges Soria (dirs.), Los dos colosos. Enciclopedia comparada USA-URSS, Barcelona, Argos, 1969, pp. 488–515
- Sergio Hdez-Ranera, “Atletas en Guerra (II parte)”, Runner’s World (ediçom espanhola) nº 152, outubro 2014, pp. 68–75