Muito se tem falado desde a irrupção da Primavera Árabe, o 15M, o movimento Occupy, os protestos no Brasil ou, recentemente, a Nuit Debout, ao redor das hipóteses de uma transformação radical da sociedade. Porém, uma e outra vez toda expressão de desobediência popular rapidamente volta à normalidade democrática. Dificilmente poderemos suster que hoje qualquer destes lugares do mundo tenha avançado substancialmente face qualquer possibilidade emancipatória. Igualmente, na Galiza, já for no âmbito social, desde o Nunca Máis ao Galiza non se vende; já for relembrando o boom do nacionalismo galego ou as sucedidas marés eleitorais; nem uma nem a outra foram capazes, nem sequer, de forçar os limites do capitalismo parlamentar. Ou talvez tenha sido esse precisamente o cerne do fracasso das hipóteses de mudança social: assumir os limites da democracia e, em suma, conceber a democracia apenas na ótica aristotélica, como a forma de constituição do corpo político.
A democracia neoliberal não se reduze a um sistema político, económico ou ideológico determinado, senão um ‘modo de viver’.
No entanto, em contraposição à visão aristotélica, estudiosos contemporâneos como Giorgio Agamben sustêm uma outra face deste termo, entendido como técnica de governo. Este autor entende a democracia como um conjunto de procedimentos, discursos e tecnologias orientadas a conduzir a vida dos e das governadas. A democracia contemporânea sob a direção neoliberal não procura como antanho o disciplinamento social ou a correção de todos os indivíduos na lógica do permitido vs. proibido. O Estado omnipotente do passado reprega e estabelece novas margens de tolerância, liberta o conflito e flexibiliza o controlo. A situação de colapso económico, a rotura da institucionalidade tradicional e a erosão das identidades coletivas resultam irreconduzíveis e mesmo já indesejáveis. O código neoliberal, ao contrário, normaliza a desordem atual e administra o caos.
Assim sendo, não importa a presença da criminalidade, a marginalidade ou a indignação popular, por contra, estes acontecimentos no presente configuram-se como imprescindíveis para a manutenção do status quo. Quer dizer, apresentados como fenómenos excecionais, são elementos constituintes da normalidade democrática, através ‑seguindo de novo a tese agambeniana- de uma relação de exclusão–inclusão que, em última analise, serve para incluir na normalidade aquilo que deveria ser expulso por ser excecional. Desta perspetiva, a democracia neoliberal não se pode reduzir a um sistema político, a um modelo económico ou a uma ideologia determinada, senão um a “modo de viver”. Os desejos, os sonhos ou as ambições são as que regulam de forma autónoma a vida dos sujeitos, sem necessidade da intervenção estatal, e resolvem por inteiro, como advertira Gilles Deleuze, as suas necessidades em qualquer dos estratos do mercado, da economia formal, informal ou mesmo ilegal. Eis, pois, o campo de batalha onde nos encontraríamos: um espaço onde a mobilização não se acha na política ou na ideologia mas nas emoções, que já não são reprimidas senão incluídas na normalidade e postas a produzir nos limites democráticos.
O repto é pôr em prática uma outra forma de vida não submetida aos limites da liberdade económica.
Em palavras de Nikolas Rose, o neoliberalismo é, fundamentalmente, uma experiência existencial que não se assenta sobre nenhum consenso social mas sobre a gestão quotidiana das vidas. Os protestos sociais, os distúrbios ou qualquer outro episódio de violência por si próprio, por excecional que se manifestar, não implica um rotura da normalidade por enquanto esta não procura a sua legitimidade num pacto social. Dito de outra forma, resultam irrelevantes as motivações que com toda justiça implorem as revoltas, como as assinaladas ao começo deste artigo, pois estas razões políticas pelo simples facto de serem justas, não têm capacidade para mudar as coisas, entanto o controlo das emoções é gerido e digerido para a sua própria reprodução. Portanto, qualquer hipótese de mudança social não a devemos pensar tanto em como enfrear um conjunto de instituições (Estado, CC.AA., UE., BCE., etc.) que atacam a maioria social, como em fazer existir outro quadro interpretativo das emoções, os desejos e as ambições.
O repto, em conclusão, não é deixar-se deslumbrar pelas hipóteses de melhoramento sobre a vida dos cidadãos das políticas públicas, mas pôr em prática uma outra forma de vida não submetida aos limites da liberdade económica e a democracia neoliberal.