Periódico galego de informaçom crítica

Dia da Resistência Indígena: inspiração para o arredismo galego? 

por
Tasca do li­nho em Outeiro (Ordes) en­tre 1965 e 1968. | gus­tav hen­ning­sen. ar­quivo grá­fico do mu­seo do pobo galego. 

A fi­nais do s.XX, o 12 de ou­tu­bro dei­xou de ser uni­ca­mente a data em que Espanha co­me­mora a sua vo­ca­ção im­pe­rial, para pas­sar a ser rei­vin­di­cado pe­las ví­ti­mas da his­pa­ni­dade como “Dia da Resistência Indígena”. A efe­mé­ride foi re­se­man­ti­zada ofi­ci­al­mente a par­tir de 2002 por vá­rios es­ta­dos la­ti­no­a­me­ri­ca­nos, mas só como con­sequên­cia do pro­fundo mo­vi­mento po­pu­lar que vi­nha reclamando‑o desde a eclo­são ‑dez anos an­tes e coin­ci­dindo com o V cen­te­ná­rio da co­lo­ni­za­ção- do pro­cesso so­cial e po­lí­tico que deu em cha­mar-se a “emer­gên­cia in­dí­gena”. Um mo­vi­mento de auto-de­fesa iden­ti­tá­ria e ter­ri­to­rial que po­de­ria ser­vir de ins­pi­ra­ção na for­mu­la­ção de no­vos pa­ra­dig­mas desde os que lu­tar con­tra a ex­tin­ção da Galiza. 

O 12 de ou­tu­bro dei­xou de ser uni­ca­mente a data em que Espanha co­me­mora a sua vo­ca­ção im­pe­rial para pas­sar a ser rei­vin­di­cado pe­las ví­ti­mas da his­pa­ni­dade como ‘Dia da Resistência Indígena’

Na dé­cada de 90′ emer­gi­ram, su­ces­si­va­mente e em vá­rios paí­ses da América, su­jei­tos e con­fli­tos po­lí­ti­cos que até en­tão es­ti­ve­ram fora do foco. Em 1991, o le­van­ta­mento in­dí­gena li­de­rado pela CONAIE con­vul­si­o­nava o Equador, en­quanto na Bolívia ga­nhava força o Katarismo e passa à luta ar­mada (li­de­rado por al­guns dos que 15 anos de­pois che­ga­rão à pre­si­dên­cia do go­verno); em 1992, o V cen­te­ná­rio serve de im­pulso con­ti­nen­tal na re­a­fir­ma­ção da ideia de que os po­vos ori­gi­ná­rios ainda não fo­ram con­quis­ta­dos; e no 1994, o EZLN leva a rei­vin­di­ca­ção da au­to­no­mia in­dí­gena aos no­ti­ciá­rios do mundo in­teiro. Na Guatemala, no con­texto do pro­cesso de paz, é as­si­nado em 1996 o Acordo so­bre iden­ti­dade e Direitos dos Povos Indígenas, onde pela pri­meira vez se re­co­nhece ofi­ci­al­mente o povo maia e os seus di­rei­tos po­lí­ti­cos e ter­ri­to­ri­ais. A au­to­de­ter­mi­na­ção dos po­vos ori­gi­ná­rios passa a ocu­par um lu­gar re­le­vante na agenda in­ter­na­ci­o­nal atra­vés do Convénio 169 da OIT e do pro­jeto de Declaração so­bre os Direitos dos Povos Indígenas da ONU. Nos paí­ses da América Latina, os mo­vi­men­tos pres­si­o­nam os go­ver­nos para que as­si­nem es­tas car­tas, e re­a­li­zem as re­for­mas cons­ti­tu­ci­o­nais que de­las se derivam. 

Do in­di­ge­nismo ao in­di­a­nismo 
Todos es­tes mo­vi­men­tos po­lí­ti­cos fo­ram ex­pres­são duma mu­dança de pa­ra­digma que co­me­çara a criar-se na dé­cada de 70, com o ques­ti­o­na­mento das po­lí­ti­cas in­di­ge­nis­tas que até en­tão en­ca­be­ça­vam a fo­ca­gem pro­gres­sista dos con­fli­tos ét­ni­cos. O in­di­ge­nismo ‑im­pul­si­o­nado es­pe­ci­al­mente a par­tir da re­vo­lu­ção me­xi­cana de 1917- é a po­lí­tica cara aos po­vos ori­gi­ná­rios que os Estados e as agên­cias de co­o­pe­ra­ção le­vam a cabo com a in­ten­ção de subs­ti­tuir o apartheid ca­rac­te­rís­tico do s.XIX por uma in­te­gra­ção plena nas so­ci­e­da­des na­ci­o­nais das jo­vens re­pú­bli­cas la­ti­no­a­me­ri­ca­nas. A es­tra­té­gia é a mo­der­ni­zaçã, e a fer­ra­menta chave são os “pla­nos de de­sen­vol­vi­mento” que ten­ci­o­nam mu­dar a forma de vida dos ín­dios por meio da edu­ca­ção, a sa­ni­dade e a in­dús­tria. No fundo la­teja a ideia de que a ma­neira em que ay­ma­ras, que­chuas, maias ou ma­pu­ches le­vam sé­cu­los vi­vendo é atra­sada, e que, por­tanto, a cul­tura que faz que es­tes po­vos vi­vam as­sim é er­rada. O in­di­ge­nismo, por bem in­ten­ci­o­nado que pa­re­cer, é pa­ter­na­lista, e acaba pro­mo­vendo uma as­si­mi­la­ção à forma de vida oci­den­tal que logo de­vém em de­sa­pa­ri­ção da di­fe­rença ét­nica. O grosso da es­querda re­vo­lu­ci­o­ná­ria que pro­ta­go­niza os mo­vi­men­tos guer­ri­lhei­ros das dé­ca­das de 60, 70 e 80 as­sume este pa­ra­digma, re­du­zindo os po­vos in­dí­ge­nas à sua con­di­ção só­cio-eco­nó­mica de “cam­po­ne­ses po­bres”, e lu­tando con­tra a sua mar­gi­na­ção e sub­de­sen­vol­vi­mento. O ob­je­tivo era a plena in­te­gra­ção das ve­lhas na­ções ori­gi­ná­rias nos pro­je­tos que mo­der­ni­zam as no­vas re­pú­bli­cas mes­ti­ças, cujo mo­delo de vida ‑ca­pi­ta­lista ou so­ci­a­lista- era in­va­ri­a­vel­mente de ins­pi­ra­ção europeia. 

Fausto Reinaga com o seu fillo Kolla, a sua so­bri­nha Hilda e mi­li­tan­tes do Partido Índio de Bolívia em 1970. | ar­quivo de hilda tei­naga. fonte pa­ca­rina del sur

Para o bo­li­vi­ano Fausto Reinaga, este in­di­ge­nismo era a forma po­lí­tica do “cho­lismo”. Em mui­tos paí­ses da América, “cholo” é aquele ín­dio que re­nega da sua et­nia para apa­ren­tar ser la­dino, e as­sim me­lho­rar so­ci­al­mente. Reinaga pu­blica em 1970 A Revolução India, obra se­mi­nal na que cri­tica o viés acul­tu­ri­za­dor da es­querda me­tro­po­li­tana, e de­fende o di­reito de que­chuas e ay­ma­ras a pro­te­ge­rem as suas for­mas de vida tra­di­ci­o­nais e o po­der so­bre os ter­ri­tó­rios que as sus­ten­tam. Esta evo­lu­ção teó­rica vê-se tam­bém ali­men­tada por cor­ren­tes in­ter­na­ci­o­nais: o fra­casso do so­ci­a­lismo eu­ro­peu, a crí­tica eco­ló­gica ao in­dus­tri­a­lismo, a re­va­lo­ri­za­ção ide­o­ló­gica da iden­ti­dade e a di­ver­si­dade, ou a co­or­de­na­ção e o diá­logo com os po­vos in­dí­ge­nas do norte da América e a Eurásia, com uma re­a­li­dade so­cial muito me­nos mar­cada pela mes­ti­ça­gem e a in­te­gra­ção. O con­ceito de “ín­dio”, mar­cado pelo es­tigma co­lo­nial, passa a ser re­sig­ni­fi­cado e rei­vin­di­cado frente os eu­fe­mis­mos in­te­gra­ci­o­nis­tas que pre­ten­dem ne­gar a per­sis­tên­cia dum con­flito ét­nico: se ín­dio foi o nome com o que fo­mos sub­me­ti­dos, ín­dio será o nome com o que nos su­ble­va­re­mos”, de­clara um lí­der ay­mara em 1983. Apenas uma dé­cada de­pois da pu­bli­ca­ção do en­saio de Reinaga, o I Congresso de Movimentos Indios da América do Sul pro­clama: “Reafirmamos o Indianismo como a ca­te­go­ria cen­tral da nossa ide­o­lo­gia, por­que a sua fi­lo­so­fia vi­ta­lista pro­pugna a au­to­de­ter­mi­na­ção, a au­to­no­mia e a au­to­ges­tão só­cio-eco­nó­mica-po­lí­tica dos nos­sos po­vos, e por­que é a única al­ter­na­tiva de vida para o mundo atual em to­tal es­tado de crise mo­ral, eco­nó­mica, so­cial e po­lí­tica”. 

Com efeito, a emer­gên­cia in­dí­gena é um le­van­ta­mento po­pu­lar não só con­tra o co­lo­ni­za­dor es­pa­nhol, mas ‑so­bre­tudo- con­tra o co­lo­ni­a­lismo in­terno que per­sis­tiu nas no­vas re­pú­bli­cas in­de­pen­den­tes. E não é uni­ca­mente uma de­fesa da au­to­no­mia e a iden­ti­dade da­que­las co­mu­ni­da­des ru­rais que se qui­se­ram sub­me­ter me­di­ante o exér­cito ou a es­cola, mas uma im­pug­na­ção ra­di­cal da ci­vi­li­za­ção in­dus­trial, pro­ta­go­ni­zada prin­ci­pal­mente por uma po­pu­la­ção de ori­gem ín­dia mas de vida já ur­bana, e que en­frenta o seu pre­sente de des­rai­za­mento e ex­plo­ra­ção atra­vés duma uto­pia re­vo­lu­ci­o­ná­ria cons­truida em clave de passado. 

O na­ci­o­na­lismo ga­lego con­tem­po­râ­neo ado­tou o mesmo pa­ra­digma da as­si­mi­la­ção dos Institutos Indigenistas

Inspiração para a Galiza
Será um pre­con­ceito co­lo­nial o que tem per­mi­tido o na­ci­o­na­lismo ga­lego ins­pi­rar-se nas lu­tas de rus­sos ou ar­ge­li­nos mas não fazê-lo nas do povo ma­pu­che ou os ka­ta­ris­tas bo­li­vi­a­nos? Rechaçamos iden­ti­fi­car-nos e apren­der com as ex­pe­ri­ên­cias in­dí­ge­nas, es­que­cendo que a mai­o­ria das ga­le­gas e ga­le­gos de há um sé­culo vi­vía­mos em co­mu­ni­da­des tão ori­gi­nais e au­tos­su­fi­ci­en­tes que atraí­ram an­tro­pó­lo­gos do mundo in­teiro, e que tam­bém o nosso povo foi ex­pul­sado dos seus ter­ri­tó­rios an­ces­trais, acul­tu­ri­zado e for­çado ou se­du­zido a en­ver­go­nhar-se da sua iden­ti­dade e cam­biar de vida. Não fo­mos ca­pa­zes de in­ter­pre­tar o ca­rác­ter in­di­ge­nista dos Planos de Desenvolvimento fran­quis­tas, ou dos FEDER europeus. 

O na­ci­o­na­lismo ga­lego con­tem­po­râ­neo, be­be­dor das cor­ren­tes pro­gres­sis­tas que ali­men­ta­vam a in­te­lec­tu­a­li­dade me­tro­po­li­tana dos anos 60, ado­tou acri­ti­ca­mente o mesmo pa­ra­digma ét­nico da as­si­mi­la­ção que nou­tras la­ti­tu­des im­pul­sa­vam os Institutos Indigenistas. A forma de vida, as cren­ças e os cos­tu­mes do nosso ru­ral fo­ram es­tig­ma­ti­za­das como sin­to­mas de um atraso que cum­pria com­ba­ter. Apesar das lu­tas fun­da­ci­o­nais em de­fesa da Terra e da im­por­tân­cia do sin­di­ca­lismo la­brego, o nosso na­ci­o­na­lismo de­ri­vou nos 80 e 90 num mo­vi­mento de “cho­los”, para o que de­fen­der a Galiza sig­ni­fi­cou que­rer a sua in­dus­tri­a­li­za­ção eco­nó­mica e a sua mo­der­ni­za­ção cul­tu­ral. A única di­men­são do et­no­cí­dio ga­lego que se com­ba­teu fir­me­mente foi a subs­ti­tui­ção do idioma. 

Mas ante a crise da ci­vi­li­za­ção in­dus­trial que de­fi­nirá este sé­culo XXI, e ante a ne­ces­si­dade de as­sen­tar qual­quer pro­posta de fu­turo no de­cres­ci­mento e a so­be­ra­nia ali­men­tar, o in­di­a­nismo bem pode bri­lhar como um re­fe­rente ins­pi­ra­dor na de­fesa da nossa pró­pria iden­ti­dade. Ainda há pou­cos mes­ses nos es­tá­va­mos a quei­xar de que uma juíza es­pa­nhola se re­fe­riu ao nosso ru­ral como a “Galiza pro­funda”. É a sua ma­neira de nos cha­mar ín­dios. Oxalá ‑como os po­vos in­dí­ge­nas da Abya-Yala- fos­se­mos quem de dar-lhe a volta a esse es­tigma, e re­cla­mar-nos com or­gu­lho e re­bel­dia ori­gi­ná­rios dessa Galiza Profunda, e de­se­jo­sos de re­tor­nar a ela. Porque a su­per­fí­cie es­pa­nhola e in­dus­trial ame­aça com nos en­ve­ne­nar a alma, des­truir a Terra e ex­tin­guir como povo diferenciado. 

O último de O bom viver

Ir Acima