
A finais do s.XX, o 12 de outubro deixou de ser unicamente a data em que Espanha comemora a sua vocação imperial, para passar a ser reivindicado pelas vítimas da hispanidade como “Dia da Resistência Indígena”. A efeméride foi resemantizada oficialmente a partir de 2002 por vários estados latinoamericanos, mas só como consequência do profundo movimento popular que vinha reclamando‑o desde a eclosão ‑dez anos antes e coincidindo com o V centenário da colonização- do processo social e político que deu em chamar-se a “emergência indígena”. Um movimento de auto-defesa identitária e territorial que poderia servir de inspiração na formulação de novos paradigmas desde os que lutar contra a extinção da Galiza.
O 12 de outubro deixou de ser unicamente a data em que Espanha comemora a sua vocação imperial para passar a ser reivindicado pelas vítimas da hispanidade como ‘Dia da Resistência Indígena’
Na década de 90′ emergiram, sucessivamente e em vários países da América, sujeitos e conflitos políticos que até então estiveram fora do foco. Em 1991, o levantamento indígena liderado pela CONAIE convulsionava o Equador, enquanto na Bolívia ganhava força o Katarismo e passa à luta armada (liderado por alguns dos que 15 anos depois chegarão à presidência do governo); em 1992, o V centenário serve de impulso continental na reafirmação da ideia de que os povos originários ainda não foram conquistados; e no 1994, o EZLN leva a reivindicação da autonomia indígena aos noticiários do mundo inteiro. Na Guatemala, no contexto do processo de paz, é assinado em 1996 o Acordo sobre identidade e Direitos dos Povos Indígenas, onde pela primeira vez se reconhece oficialmente o povo maia e os seus direitos políticos e territoriais. A autodeterminação dos povos originários passa a ocupar um lugar relevante na agenda internacional através do Convénio 169 da OIT e do projeto de Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas da ONU. Nos países da América Latina, os movimentos pressionam os governos para que assinem estas cartas, e realizem as reformas constitucionais que delas se derivam.
Do indigenismo ao indianismo
Todos estes movimentos políticos foram expressão duma mudança de paradigma que começara a criar-se na década de 70, com o questionamento das políticas indigenistas que até então encabeçavam a focagem progressista dos conflitos étnicos. O indigenismo ‑impulsionado especialmente a partir da revolução mexicana de 1917- é a política cara aos povos originários que os Estados e as agências de cooperação levam a cabo com a intenção de substituir o apartheid característico do s.XIX por uma integração plena nas sociedades nacionais das jovens repúblicas latinoamericanas. A estratégia é a modernizaçã, e a ferramenta chave são os “planos de desenvolvimento” que tencionam mudar a forma de vida dos índios por meio da educação, a sanidade e a indústria. No fundo lateja a ideia de que a maneira em que aymaras, quechuas, maias ou mapuches levam séculos vivendo é atrasada, e que, portanto, a cultura que faz que estes povos vivam assim é errada. O indigenismo, por bem intencionado que parecer, é paternalista, e acaba promovendo uma assimilação à forma de vida ocidental que logo devém em desaparição da diferença étnica. O grosso da esquerda revolucionária que protagoniza os movimentos guerrilheiros das décadas de 60, 70 e 80 assume este paradigma, reduzindo os povos indígenas à sua condição sócio-económica de “camponeses pobres”, e lutando contra a sua marginação e subdesenvolvimento. O objetivo era a plena integração das velhas nações originárias nos projetos que modernizam as novas repúblicas mestiças, cujo modelo de vida ‑capitalista ou socialista- era invariavelmente de inspiração europeia.

Para o boliviano Fausto Reinaga, este indigenismo era a forma política do “cholismo”. Em muitos países da América, “cholo” é aquele índio que renega da sua etnia para aparentar ser ladino, e assim melhorar socialmente. Reinaga publica em 1970 A Revolução India, obra seminal na que critica o viés aculturizador da esquerda metropolitana, e defende o direito de quechuas e aymaras a protegerem as suas formas de vida tradicionais e o poder sobre os territórios que as sustentam. Esta evolução teórica vê-se também alimentada por correntes internacionais: o fracasso do socialismo europeu, a crítica ecológica ao industrialismo, a revalorização ideológica da identidade e a diversidade, ou a coordenação e o diálogo com os povos indígenas do norte da América e a Eurásia, com uma realidade social muito menos marcada pela mestiçagem e a integração. O conceito de “índio”, marcado pelo estigma colonial, passa a ser resignificado e reivindicado frente os eufemismos integracionistas que pretendem negar a persistência dum conflito étnico: se índio foi o nome com o que fomos submetidos, índio será o nome com o que nos sublevaremos”, declara um líder aymara em 1983. Apenas uma década depois da publicação do ensaio de Reinaga, o I Congresso de Movimentos Indios da América do Sul proclama: “Reafirmamos o Indianismo como a categoria central da nossa ideologia, porque a sua filosofia vitalista propugna a autodeterminação, a autonomia e a autogestão sócio-económica-política dos nossos povos, e porque é a única alternativa de vida para o mundo atual em total estado de crise moral, económica, social e política”.
Com efeito, a emergência indígena é um levantamento popular não só contra o colonizador espanhol, mas ‑sobretudo- contra o colonialismo interno que persistiu nas novas repúblicas independentes. E não é unicamente uma defesa da autonomia e a identidade daquelas comunidades rurais que se quiseram submeter mediante o exército ou a escola, mas uma impugnação radical da civilização industrial, protagonizada principalmente por uma população de origem índia mas de vida já urbana, e que enfrenta o seu presente de desraizamento e exploração através duma utopia revolucionária construida em clave de passado.
O nacionalismo galego contemporâneo adotou o mesmo paradigma da assimilação dos Institutos Indigenistas
Inspiração para a Galiza
Será um preconceito colonial o que tem permitido o nacionalismo galego inspirar-se nas lutas de russos ou argelinos mas não fazê-lo nas do povo mapuche ou os kataristas bolivianos? Rechaçamos identificar-nos e aprender com as experiências indígenas, esquecendo que a maioria das galegas e galegos de há um século vivíamos em comunidades tão originais e autossuficientes que atraíram antropólogos do mundo inteiro, e que também o nosso povo foi expulsado dos seus territórios ancestrais, aculturizado e forçado ou seduzido a envergonhar-se da sua identidade e cambiar de vida. Não fomos capazes de interpretar o carácter indigenista dos Planos de Desenvolvimento franquistas, ou dos FEDER europeus.
O nacionalismo galego contemporâneo, bebedor das correntes progressistas que alimentavam a intelectualidade metropolitana dos anos 60, adotou acriticamente o mesmo paradigma étnico da assimilação que noutras latitudes impulsavam os Institutos Indigenistas. A forma de vida, as crenças e os costumes do nosso rural foram estigmatizadas como sintomas de um atraso que cumpria combater. Apesar das lutas fundacionais em defesa da Terra e da importância do sindicalismo labrego, o nosso nacionalismo derivou nos 80 e 90 num movimento de “cholos”, para o que defender a Galiza significou querer a sua industrialização económica e a sua modernização cultural. A única dimensão do etnocídio galego que se combateu firmemente foi a substituição do idioma.
Mas ante a crise da civilização industrial que definirá este século XXI, e ante a necessidade de assentar qualquer proposta de futuro no decrescimento e a soberania alimentar, o indianismo bem pode brilhar como um referente inspirador na defesa da nossa própria identidade. Ainda há poucos messes nos estávamos a queixar de que uma juíza espanhola se referiu ao nosso rural como a “Galiza profunda”. É a sua maneira de nos chamar índios. Oxalá ‑como os povos indígenas da Abya-Yala- fossemos quem de dar-lhe a volta a esse estigma, e reclamar-nos com orgulho e rebeldia originários dessa Galiza Profunda, e desejosos de retornar a ela. Porque a superfície espanhola e industrial ameaça com nos envenenar a alma, destruir a Terra e extinguir como povo diferenciado.