Florencia Brizuela González é doutora em Direito e Ciências Políticas pola Universidade de Barcelona e no mês de fevereiro participou da Semana de Luita contra as Fronteiras que organiza o Foro Galego de Imigraçom. Junto com Uriel López Martínez, vem de publicar o livro ‘Descentrar la mirada para ampliar la visión’, onde analisa como o racismo na nossa sociedade também penetra nos movimentos sociais. Para isto exponhem-se exemplos concretos, da relaçom com os vendedores ambulantes até as campanhas contra a turistificaçom.
Que significou para ti participar da autoria de um livro como ‘Descentrar la mirada’? Como é a receçom das vossas reflexons?
Foi um processo de reflexionar de maneira justificada as sensaçons que tínhamos do que passava nos espaços alternativos em que estamos. A linha do livro nom era fazer umha denúncia moral senom de formular um debate político sobre estas questons e foi algo mui importante para nós.
A receçom em geral foi boa. A gente racializada que habita nos espaços da esquerda branca comentou-nos que se sentiram mui contentes com o livro. Dos movimentos de esquerda brancos por um lado foi boa, pois nos convidam a falar do livro e tem boa receçom, e por outra parte há um silêncio, que às vezes custa entender se é um silêncio de reflexom ou de indiferença.
O que nos acontece muito quando apresentamos é que se dam essas dinámicas racistas que denunciamos. De certa maneira, as apresentaçons do livro encenam essa lógica que se vem criticando, com atitudes racistas ou comentários mui subtis mas que de certa maneira nos colocam num lugar de nom saber.
Apontades que nos movimentos sociais existe umha brecha entre a teoria e a prática antirracistas. Em que consiste?
A esquerda insiste que a classe é umha questom fundamental. Para nós, a ideia é expor como o trabalho está racializado. A questom da raça é tam fundamantal como para o feminismo é o patriarcado e para os movimentos de esquerda é a classe. Som questons que vam juntas. Acho que as perspetivas e bases teóricas que tenhem alguns movimentos de esquerda subestimaram o impacto da colonizaçom e da colonialidade. Há gente que nom pode ser classe no estado espanhol, que nem sequer tem estatus de cidadám.
A nível teórico há certa reticência a incorporar esse olhar. Agora no 8M víamos como se insiste muito no patriarcado ou no capitalismo, mas nom se fala da colonialidade ou do imperialismo. Essa aproximaçom estrutura o fazer político dos movimentos. Até no pensamento há umha brecha e nom se incorpora um olhar profundo antirracista. Entende-se que o racismo é umha questom de preconceitos individuais mas nom se trabalha como estrutural, e aí há um problema.
À gente branca, ao ser educadas na supremacia racial, custa-lhe ver como se reproduzem as lógicas racistas, ou as lógicas centradas na branquidom do nosso fazer político. Isso gera constantemente brechas e dificuldades para entender outras situaçons.
Indicades que o discurso de classe tem sido utilizado para invisibilizar dinámicas racistas, como conciliar entom a luita contra a opressom de classe com as luitas contra as opressons de género e raça?
Luitamos contra um sistema que gera distintos tipos de opressons, expulsons e violências. O sistema nom é só capitalista, também é patriarcal e racista. Na medida em que podamos entender que todo isso se articula constantemente poderemos luitar de umha maneira que tenha em conta como essas distintas formas de opressom som constitutivas e se entrelaçam. Por exemplo, se a teoria feminista entende que o patriarcado afeta os corpos das mulheres mas existe umha visom racializada do trabalho podemos dizer: às mulheres toca-lhes um determinado tipo de trabalhos polo seu género mas a determinadas mulheres lhes toca determinados tipos de trabalho pola sua raça. Nom é casual que sejam as mulheres migrantes as que realizam determinados trabalhos, como os de cuidados, que som os menos valorados a nível social e mesmo legal. Que aconteceria se todas as mulheres do estado espanhol tivéssemos um regime jurídico específico que nom nos dá nem direito ao paro, nem à segurança social…? Seria um escándalo! Mas como afeta determinado tipo de mulheres isto encontra-se invisibilizado.
Um olhar que consiga ver como se articula o patriarcado, a classe e o racismo permitiria-nos ver isto, e como fazermos para que isso seja umha prioridade na agenda política, pois à medida que imos atacando este sistema, toda a gente beneficia disso nível social, nom só essas mulheres. O feminismo tem formulado que quando umha mulher avança avançamos todas. Se temos no olhar só a classe, perdemos muitas cousas. A mirada nom seria só de raça, senom de como estes sistemas se articulam constantemente.
Que comportamentos racistas percebes que se reproduzem nos movimentos da esquerda branca?
Podemos falar do racismo social ou do racismo como comportamentos que subestimam experiências e luitas. Numha parte do livro fala-se de que o sujeito que luita é o que segue as lógicas eurocentradas. É dizer, luitar significa ir a umha manifestaçom, fazer greve, ir a assembleias… Ficam numha experiência eurocentrada. Mas nas cidades convivem um montom de formas de luita e resistência contra o sistema que também som importantes e nom som reconhecidas como tal. Entom, o sujeito que luita é o sujeito branco, ou a mulher branca que está salvando as outras mulheres. Porque nom pensamos em como as demais podem participar e assim poderiamos participar todas? A ideia de que é o sujeito branco quem vai emancipar está mui no centro. No caso da venda ambulante de latas, isso nom se vê como umha luita, e capaz que sim o seja pois estas pessoas estám a organizar-se, a resistir, a viver numha cidade que as quere expulsar. Ou as mulheres que nom se organizam em assembleias mas estám a tecer umha rede de apoio e cuidados que é importante e vital. Além do racismo que podam ter umhas pessoas para com outras, trata-se de pensar o que consideramos que é revolucionário e o que nom o é.
Quais som os privilégios que detetades nas pessoas dos movimentos brancos?
A branquitude dá muitos privilégios, pois há um montom de questons que as pessoas racializadas e migrantes, sobre todo se nom tenhem umha situaçom administrativa regular, tenhem que estar constantemete batalhando só para garantir a sua permanência numha cidade. A gente branca nom tem que viver esse contínuo desgaste de energia de justificar a simples permanência num lugar, o que provoca que a energia nom vaia para outros lugares. Por exemplo, no acesso ao trabalho. Claro que há umha precarizaçom e dificuldades para aceder ao trabalho para muita gente, mas há pessoas que nem mesmo tenhem a possibilidade de aceder a ele. Toda essa questom de ter a subsistência resolvida dá umha segurança mui importante.
Muitas autoras falam da capacidade de falar e de ser escuitadas, e acho que a esquerda branca em certa medida tem a possibilidade de colocar temas na agenda política. Isso é um enorme poder, e seria interessante ver como esse poder pode ser partilhado. Se o feminismo agora está a ter relevância no ámbito social e político, como aproveitarmos essa possibilidade para pôr determinados temas na agenda política sem suplantar nem apropriar-se das ideias nem das luitas de outras companheiras? De certa maneira, aproveitar essa possibilidade para que seja mais heterogêneo e nom só que as necessidades de um grupo específico sejam as que monopolizem a agenda política. Som poderes e privilégios que se tenhem desde a esquerda branca que se poderiam utilizar para introduzir o tema do racismo no centro, e mais agora que é tam manifesto que os partidos se pelejam por ver quem som mais de direitas.
Dos coletivos de pessoas racializadas, como se vive o processo soberanista catalán?
Nos coletivos de pessoas racializadas nom há um posicionamento único. Há gente que vê o processo como importante, no sentido de que o povo catalám tem a possibilidade de eleger sobre a sua autodeterminaçom. A minha visom é que ao processo soberanista tem umha visom que exclui as pessoas migrantes. A ilegalidade a que se recorre é seletiva. Se se trata de um referendo que nom é permitido, porque nom participar a todas as pessoas que vivem na Catalunha e nom só às pessoas que legalmente podem votar? Para algumas cousas, pode-se ir pola via da ilegalidade, mas para outras nom.
Por outra banda, no caso dos direitos para adquirir a nacionalidade a nova lei que se formulava era mais restritiva que a Ley de Extranjería do estado espanhol. Se se vai criar um novo estado que vai ser igualmente racista, eu nom luitaria na criaçom desse novo estado. De qualquer forma, é um debate que permite pôr sobre a mesa outras cousas e de certa maneira também enriquece.
Como pode ser o diálogo entre as pessoas racializadas e as pertencem a culturas minorizadas dentro do Estado ‑como a basca, a galega ou a catalá-?
É interessante esse diálogo. Há experiências que em certa maneira som comuns no processo de homogeinizaçom que exige a criaçom de um estado-naçom e afeta diversos povos, como os que vivem no território que agora se considera espanhol. Porém, a violência que se exerce com as colónias é umha violência desumanizadora, em que se questionou a humanidade de determinadas pessoas. E acho que essa é umha diferença mui grande.
Por outro lado, este estado-naçom, que é o Reino de Espanha, cria umha homogeneidade e exerce diferentes tipos de violência contra distintas formas da sua populaçom. Nom é casual que o processo de articulaçom do estado espanhol convivesse com a colonizaçom de América, com a expulsom dos árabes ou a perseguiçom de povos como o cigano. No estado espanhol a impunidade é brutal, nom se fijo reparaçom de nada, nem da colonizaçom, nem do franquismo… Há umha impunidade tam grande que isso sim que é algo que temos em comum, tanto as pessoas racializadas, migrantes, que venhem das colónias, gente de Galiza, País Basco ou Catalunha. E essa impunidade é permitida agora porque há um legado histórico que o permite constantemente. Figem a minha tese na Argentina e ali acontece o mesmo: o genocídio cara os povos indígenas em certa maneira permitiu essa construçom estatal, e nom é casual que existissem ditaduras durante tantos anos e fosse desaparecida tanta gente. É essa lógica estatal de nom permitir de modo algum o dissenso. Isto está bastante presente no estado espanhol.
Participaches da Semana de Luita contra as Fronteiras que organiza o Foro Galego de Inmigración, falando da ‘Ley de Extranjería’. Poderias dar-nos umhas linhas de como funciona esta lei e como sustenta o racismo institucional e estrutural?
A Ley de Extranjería para as pessoas migrantes e racializadas nom é a única forma de racismo institucional, mas a muitas de nós é a que nos atravessa cada dia. A partir da aplicaçom desta lei começaram a haver mortes quotidianamente no mar Mediterráneo. A sua aplicaçom legal gera morte e a exclusom constante das pessoas. Para muitas pessoas, que estám atravessadas por esta lei, a sua quotidianidade e energia está destinada a cumprir os requisitos para continuar permanecendo aqui. Afeta na tua quotidianidade de muitas formas, estás totalmente fora do circuito.
A Ley de Extranjería marca, e é umha mostra bastante clara de como funciona este racismo institucional em que determinadas pessoas podem vir aqui e som bem-vindas e outras nom, e ademais se investem cifras astronómicas de dinheiro para que nom cheguem. Por exemplo, Frontex, a agência que controla as fronteiras europeias, tem um orçamento de 322.000 milhons de euros. Nom é só umha questom de que casualmente morra gente no Mediterráneo, senom que há políticas públicas para que essa gente morra no Mediterráneo. A Ley de Extranjería marca, e depois está a aplicaçom da lei e os entraves administrativos, que isso já é umha loucura. Som políticas de expulsom que estám tentando constantemente que te vaias, que deas com umha situaçom de irregularidade sobrevenida. Por exemplo, a nível jurídico há um monte de resoluçons que deveriam estar fundamentadas mas nom o estám. Sai-che que nom cumpres os requisitos e nom sabes o porquê. Estas submetida a umha total arbitrariedade da que depende a tua vida, e a da tua família muitas vezes. Seria interessante fazer umha análise de quantas pessoas locais conhecem essa situaçom, se algumha vez foram a Extranjería e conhecem qual é o funcionamento. Muitas vezes as convido a que se tenhem algunha companheira que tenha que fazer papéis que vaiam e vejam o que acontece aí, pois é bastante impactante.
Que linhas de trabalho podem ajudar a avançar na luita antirracista?
Acho que estas perspetivas permitem ampliar a visom para poder gerar novas dinámicas e novos processos que som transformadores, profundos e, em certa maneira, permitem mudar a situaçom de muitas pessoas. A partir de pôr no centro o racismo gerárom-se situaçons que permitem criar novas alianças e estrategias. Penso por exemplo, aqui em Barcelona, o sindicato de trabalhadores ambulantes logra colocar no debate o que lhes acontece e criar alternativas e respostas das suas próprias necessidades. Daí geram-se alianças mui interessantes. Acho que esta perspetiva nom exclui mas que procura ampliar e criar estrategias conjuntas pois afinal todas estamos perjudicadas, em diferente medida, por esta estrutura racista, patriarcal e capitalista. Podem fazer-se muitas cousas interessantes e potentes se ampliamos esta mirada. Quando umha sai do seu espaço de conforto algumhas vezes dá medo mas também gera muito aprendizagem e muita rebeldia. Ainda que seja difícil, estas cousas vam multiplicando e gerando outras miradas interessantes. Frente a forte violência que existe agora acho que a nossa capacidade de organizaçom e rebeldia tem que multiplicar-se, sobre todo a criatividade.