Sabemos que a escrita não é intrínseca às línguas, mas as nossas mentes associam rapidamente idiomas e grafias. O ou o <ñ> servem como símbolos da nossa posição frente à língua e resulta difícil ouvir “árabe”, “hindi” ou “russo” sem pensarmos nos traços, quiçá desconhecidos para nós, dos seus alfabetos. Porém, calcula-se que a metade dos idiomas do mundo não se grafárom nunca (além de transcrições estrangeiras) e muitos dos que hoje têm tradição escrita passárom boa parte da história sem ela. Mesmo as letras que formam este texto representam apenas uma parte mínima do uso do galego, fundamentalmente oral.
O culto à palavra escrita das nossas sociedades cai como um castelo de cartas ao pensarmos que, de entre 50.000 e 100.000 anos que a humanidade leva expressando-se linguisticamente, até hai 5.000 não houvo nada que pudesse considerar-se escritura. Por milénios, as pessoas contentavam-se com o que chamamos protoescrita: sistemas limitados de representação sem relação direta com o idioma das utentes. Algo semelhante ao que podem ser hoje os emojis do telemóvel, os sinais de trânsito ou os ícones das computadoras. A história da escrita tem mais a ver com a arte que com a língua: nas covas paleolíticas, as nossas antepassadas pintavam pontos sobre os bisontes e outros animais que indicavam talvez as melhores temporadas de caça.
Até há 5.000 não houvo nada que pudesse considerar-se escritura. Por milénios, as pessoas contentavam-se com o que chamamos protoescrita
E, contudo, a escritura nasceu, e mais de uma vez. As historiadoras consideram que apareceu de maneira independente em polo menos quatro lugares distintos: Mesopotâmia, Egito, China e Mesoamérica. A grande revolução que se deu nessas civilizações veio de passos mui singelos. Se em sumério TI significava ‘flecha’ e se representava com esse debuxo, bem podia uma flecha significar também ‘vida’, pronunciado igual. E se muitos nomes próprios maias tinham a sílaba ka, por que não usar para representá-la o pictograma da palavra ka, ‘aleta’?
Aqueles quatro sistemas acabaram por ser a base de centos de ideogramas, silabários e alfabetos utilizados ao longo da história. Mas não caiamos no etnocentrismo de Rousseau, que assegurava que “o debuxo dos objetos corresponde aos povos selvagens, os signos das palavrase das proposições aos povos bárbaros e o alfabeto aos povos civilizados”. Os sistemas alfabéticos podem ser mais fáceis de memorizar, mas requerem o uso de mais signos para escrever e provocam problemas que desconhece quem grafa sílabas ou palavras inteiras. E, afinal, nós seguimos a escrever debuxando, por mais que nos custe reconhecer um boi no A, um rio no M ou uma cabeça no R.
Na China, existe ainda uma escrita na que sim podemos reconhecer desenhos. O dongba, usado para a língua naxi, com mais de 1.000 anos de antiguidade, é o único sistema de escrita pictográfica que sobrevive no mundo. Associado à religião local, estivo a piques de desaparecer logo da Revolução Cultural, mas com o reconhecimento do naxi como língua minoritária vive hoje certa revitalização. E as viageiras que desconhecem a língua podem ler, como quando ainda não havia escrita, “rio-montanha-pássaro-cunca de arroz”.