Anatomia dumha sereia’ é um berro estremecedor em forma de peça teatral contra mais um tipo de violência contra as mulheres, a violência obstétrica. Umha violência muito silenciada polo sistema. Iria adverte que ir ao teatro vê-la, remexe. O mesmo que o juízo que tivo contra José Luis Viñas por assédio. Iria Pinheiro foi a primeira atriz galega em denunciar um realizador por este tema. Duas caras da mesma moeda: o sistema patriarcal. Mas Iria sabe que só fazendo-as visíveis e denunciando-as se pode lutar contra elas.
Erguer a voz contra a violência obstétrica é umha aposta valente. Fazê-lo desde o teatro ainda mais. Pensas que ainda há muito desconhecimento por parte da sociedade em geral?
Está tam normalizada que eu nom sabia que tinha um nome. De facto, descobrim-no há um par de anos. Investigando foi como me dei conta de que a violência obstétrica está estudada e legislada. Tem nome e apelidos e reparei em que há muitas mulheres afetadas no mundo. É neste ponto quando decido que quero intervir no assunto e pôr-me do lado das que fam algumha cousa.
Muitas mulheres dim que ter informaçom à hora de enfrentar-se ao parto é chave para ter mais controlo desse momento. Pensas que as mulheres estamos pouco informadas?
Eu aqui difiro um pouco. Eu ia mui segura, nom tinha medo e estava preparada para umha parte… Mas ali estás nas suas mans, desapossada de todo controlo e poder sobre ti mesma. Na realidade, faria falta levar umha advogada para parir!
Achas que a violência obstétrica deve ser enquadrada como mais umha peça da violência machista?
Deve, absolutamente. É mais umha ramificaçom do patriarcado, para além de ter todos os ingredientes: culpa, sofrimento, redençom (e aqui entra a Igreja e o catolicismo que tanto dano fam ainda no dia de hoje).
A mulher quando entra num hospital para parir encontra-se numha posiçom de submetimento, que vem de longe. Além disso, à medida que o parto vai avançando há umha série de prémios e castigos mui subtis através de frases demolidoras, aproveitam-se da nossa vulnerabilidade e passam-nos a nós a pelota: se o parto se prolonga é porque nom colaboramos…
A maioria dos partos acabam numha episiotomia. Mas isto que significa?
O meu parto foi instrumentado e o meu filho nasceu com espátulas, e isto deixou em mim consequências físicas e psicológicas. Sentim-me desamparada e angustiada. Aliás, o sistema normaliza esta cicatriz com frases como “é umha zona mui agradecida”, mas depois de parir saes pola porta do hospital e vás com umha cicatriz enorme que já nom é o seu problema.
Passei muito tempo que nem me atrevia a toca-la, nom queria saber como a tinha por dentro!
Deixei passar tempo e foi piorando, quando fum ao médico, sentim-me ignorada. Encontrei-me com más caras e portas fechadas. Creio que a palavra hospital, que vem de hospitalidade, perdeu a sua etimologia…
E assim nasce ‘Anatomia dumha sereia’, nom é?
Sim, foi todo um processo. Nom sabia a acolhida que teria, se interessaria… muita gente dizia-me: “já verás, vai ser genial, vás ter umha catarse”. Mas eu nom o vivia assim, com esta peça tivem umha obsessom, que foi entender e investigar a minha posiçom, a minha raiva e a minha dor, mas também a contrária.
Remeto-me à queima de bruxas, quigem buscar esse porquê, e procurar as origens mesmas do machismo. E com Anatomia perdoei-me a mim mesma e o sistema hospitalar, e entendim. Mas, olho, isto nom quer dizer que o consinta.
‘Anatomia dumha sereia’ entom tem algo de fazer pedagogia…
Eu quando fum consciente do que vivim queria denuncia-lo e pugem-me a investigar, mas pensei que denuncia-lo eu de maneira privada só seria mais umha denúncia dumha mulher… Dei-me conta de que o que queria é que nengumha mulher passasse polo que eu passei e a melhor forma foi esta. De facto, a primeira ideia era fazer um relato, dar-lho a um grupo parlamentar para defender no Parlamento.
E sabes se o pessoal que te atendeu no parto conhece a existência da obra?
Nom, mas tenho muita curiosidade por saber que pensam. Encantaria-me, a verdade, tenho de buscar algumha matrona infiltrada (risos).
Por enquanto, a resposta do público está a ser mui boa. De facto, também há muitos pontos de humor…
Estou encantada, quando a escrevim com a Maria Lado preocupava-me que se entendesse. Quando atuo e vejo a gente a rir e a chorar, ou as duas cousas à vez, e a aplaudir… penso “aqui sim que chegou a catarse, umha catarse coletiva”. A resposta do público é súper generosa, ver homens a chorar e a abrir-se é umha maravilha, e sobretodo gente que di que nom tinha nem ideia do que acontece num parto. Isto para mim é importantíssimo, nom convencer às convencidas…
Oito meses antes desta obra saes em muitos meios por umha denúncia contra o realizador de ‘Com amor e companhia’, José Luis Viñas. Umha denúncia contra outro tipo de violência cara às mulheres. Repetírom-se os padrons que comentávamos quando estás a parir no hospital ou quando dis que tens muitos problemas após a episiotomia?
Repetírom, sim, tal qual. Parte da estratégia da defensa foi desprestigiar-me, de facto dim que eu busco notoriedade e por isso saio nos meios. Todo ridículo! Eu som atriz… Aliás, provavelmente recebas umha citaçom judicial após a entrevista porque estám a guardar todas as minhas apariçons mediáticas para reafirmar isto…
Antes destes episódios eu considerava-me feminista, mas umha feminista liberal, dizia‑o dumha maneira espontânea… Após isto, pugem os óculos lilás e penso que todas as mulheres tínhamos que leva-los de série. Eu tivem-nos embaçados muito tempo!
Sentim-me vendida à justiça. Por este motivo há que denunciar e dar-lhe voz.
Com as denúncias curam-se as feridas?
Durante o juízo pensei “para que me metim eu nisto!”. Mas estou contenta de o ter feito. Era o que tinha de fazer! E porque sei que nom estou soa. E com Anatomia, que também é umha denúncia, penso que as feridas serenam, mas ainda doem! E sobre todo dói-me que mais mulheres voltem passar por isto.