A socióloga Julia Varela nasceu na Ulfe, um lugar do concelho de Chantada, em 1942 e toda a sua vida esteve dedicada ao ensino e a educaçom. Filha da mestra da Ulfe, com dezassete anos será também ela mestra rural, mas a sua formaçom académica levará‑a até Vincennes, a universidade experimental nascida em Paris após o maio de 1968 e que na década de 80 foi derruída. Atualmente é professora de Sociologia na Complutense de Madrid, mas no verám achega-se ao Morraço e numha manhá de feira na vila de Bueu conversa sobre as suas experiências no rural e os tempos em que coincidiu em Paris com inteletuais como Pierre Bourdieu, Robert Castel ou Michel Foucault.
Como é que a filha da mestra da Ulfe chega a estudar a Vincennes, onde estava presente a vanguarda inteletual da década de 70?
Saquei a oposiçom de magistério sendo mui nova, teria uns 20 anos quando estava exercendo de mestra num povinho perto de Palas de Rei. Queria continuar estudando e figem as Comuns em Compostela, que eram dous anos, e depois fum a Madrid a estudar Pedagogia. A minha mae queria que fosse inspetora de ensino, mas eu já figera umha oposiçom e nom ia fazer mais. Ali em Madrid existia o Incie (Instituto Nacional de Ciencias da Educaçom), ligado à Unesco, e vinha gente da França a fazer cursos sobre as novas pedagogias. Entre essas pessoas veu Michel Lobrot, um dos representantes da pedagogia institucional que tinha naquela época bastante predicamento. Ele dixo-me: porque nom ves a Paris a continuar estudos? Eu animei-me. Daquela havia umhas bolsas da Unesco e fum para Paris. Aos dous anos volvim a Madrid e comecei a dar aulas na Complutense. Mas pensei que gostaria de fazer Sociologia, pois quando esteve em Vincennes conetei com esse departamento. Ali estava, por exemplo, Jean-Claude Passeron, que escrevera junto com Pierre Bourdieu Os estudantes e a cultura. Estudei ali todo o tempo com bolsas. Quando voltei a Paris matriculei-me na Sorbona, mas era má em Educaçom e os professores nom me interessavam. Conhecim a Fernando Álvarez-Uría nessa época, que estava em Vincennes e me animou a estudar ali sociologia da educaçom. No departamento de Sociologia havia uns professores excecionais e comecei a tomar contato com o funcionamento de Vincennes.
Quais eram as peculariadades desta universidade?
Comecei em Vincennes no curso de 73–74. Foi umha universidade que se criou após o maio do 68 para responder às reivindicaçons estudantis. Era umha universidade com umhas caraterísticas mui especiais. Podia entrar gente que estava assalariada, sem bacharelato, só fazendo umha prova de cultura geral. Nom havia exames. A licenciatura eram 3 anos e acho que eram 30 créditos. Podias fazer 10 em qualquer outro departamento. Tinha mui bom professorado e umha biblioteca mui boa. Estava no bosque de Vincennes. Nos tivemos a gente como Nicos Poulantzas e Michael Löwy ou Robert Castel, ou outra gente nom tam famosa mas que para nos foi importantissima, como Bernard Conein ou Michel Meyer. Naquela época Michel Foucault já nom estava no departamento de Filosofia, durou pouco tempo em Vincennes. Era um centro de atividades enorme. Nós sempre dizemos que ali nos ensinárom a ler, ao tempo que nos introducírom num mundo de saberes apaixonante. Tinhamos que fazer trabalhos em grupo ou individuais e apresentá-los mas nom como esses resúmenes de capítulos que umha vez feitos esqueces. Davam-che muito tempo para que passasses na biblioteca, fosses ao cinema, a conferências…
Havia conexom entre as estudantes que vinham do mundo laboral e as que vinham do mundo académico?
Nos figemos trabalhos com pessoas que vinham do mundo laboral, mesmo procedentes do estado espanhol. Conhecimos alguns em Vincennes, pediam-nos formar parte no nosso grupo e formavam. Fiquei asombrada com um rapaz que a partir de umha caixa de fósforos explicou o funcionamento do capitalismo. Havia gente estudante mui interessante. No departamento de Sociologia figem a ‘maîtrisse’ e logo a tese com Jean-Paul de Gaudemar, que seria o primeiro livro que publiquei: Modos de educación en la España de la Contrarreforma.
Assistiamos também aos cursos de Foucault no Collège de France, e aos de Bourdieu na Escola Prática de Altos Estudios. Quando voltei a Madrid organizer o primeiro congresso internacional de sociologia da educaçom nesta cidade. Naquele tempo havia um interesse por cambiar as cousas mui forte, incluso no mundo da educaçom onde surgírom os movimentos de renovaçom pedagógica. Participamos nesse clima estimulante promovendo diversas atividades.
A partir de finais dos anos 70 pugemos em andamento a coleçom Genealogía del Poder, nas ediçons de La Piqueta; um grupo de amigos montamos umha cooperativa para publicar a Revista Archipiélago, e figemos numerosos encontros internacionais na Universidade Complutense, no Ateneo e no Círculo de Bellas Artes de Madrid, resultado dos quais com livros como Pensar y resistir, Neoliberalismo versus Democracia, Sociología e Información e outros.
Eram todos os professores homens em Vincennes? Conetaches de algumha forma com o feminismo em Vincennes?
A grande maioria do professorado eram homens. Françoise Duroux era umha das poucas mulheres no departamento de Sociologia. Fomos ao seu curso de sociologia do trabalho. Estava também em María Antonietta Macciocchi. Nom conetei com o feminismo ali. Nos cursos em que participamos nós nom havia ninguém que se preocupasse em como estava a mulher. Líamos os livros de Simone de Beauvoir, que formavam parte da cultura do ambiente. Nessa época eu nom estivem ligada ao movimento feminista. Conhecia a Libraria de Mulheres de Paris, que deveu de fundar-se nesses anos, mas nom ia habitualmente às suas atividades.
Foi posteriormente quando comencei a estudar a dominaçom masculina. Fruto desse interesse som os livros Nacimiento de la mujer burguesa, Mujeres con voz propia e Memorias para hacer camino.
Voltamos para a Galiza e para a tua obra A Ulfe. Socioloxía dunha comunidade rural galega. Como foi, com toda esta bagagem, fazer esta investigaçom?
Quando eu era nena vivim na Ulfe um mundo que era de fascinaçom permanente. Ali havia cinco casas, viviam trinta e pico pessoas, e havia umha quantidade enorme de saberes, muitos dos quais já se perdérom. Um dos protagonistas de A Ulfe dizia: “sabiamos fazer de todo e chamavam-nos atrasados”. Nos anos 70 e 80 voltei por Chantada, comecei a ver que estava a desaparecer e fixei-me nuns procesos que depois refletim em A Ulfe. Chamou-me a atençom o processo das concentraçons escolares e cómo os rapazes do rural forom para a vila, onde passavam a ocupar um segundo lugar nas aulas por como vestiam, por como falavam… Ali eram bastante minusvalorados e quase nengum deles continou estudando nessa época. Isto os desvinculava também do mundo rural porque passavam na vila muitos dias. É certo que as escolas do rural tampouco estavam pensadas para valorar a cultura do rural, mas polo menos os mestres viviam ali e conheciam esse mundo.
Outro processo foi a televisiom, com todas essas imagens que vendem um mundo marabilhoso, mas que depois quando chegas ves que nom há trabalho e tem muitas difilculdades. Um protagonista de A Ulfe di que a televisiom acabou com todo. Eles começarom a ver outro mundo que nom era aquel e disseram, “bom, pois há que ir-se por ai”. Há que dizer que umha das cousas que mais me interessaram da Ulfe foi que esse mundo rural nom era tam fechado como nos imaginamos. Só na Ulfe havia duas casas com homens que foram a Cuba, ia-se ademais às feiras, às festas, até Monterroso, Chantada ou Castro…
A mim parecia-me que esse mundo tinha umha civilizaçom mui rica. A burguesia começou por criar-se umha identidade de classe em confronto com a nobreza, acusando‑a de vaga e luxuriosa. Depois contra a classe operária, especialmente na época da revoluçom industrial, e posteriormente com o mundo rural. A burguesia continua alimentando-se do despreço e da minusvaloraçom do mundo rural, que é um mundo com umha cultura mui elaborada e onde a tradiçom oral tinha um forte peso.
Mas também tinha umha parte negativa essa cultura rural…
Na Ulfe as duas forças mais “negativas”, em boca dos labregos, som a Guardia Civil e o cura. É um mundo onde há umha domináncia masculina, ainda que se poderiam matizar alguns casos. Depois estavam as relaçons desiguais entre vizinhos ou o papel dos nenos. Tratei de sublinhar todas essas relaçons no livro. A sexualidade é um tema que nom saquei muito no livro, mas que também tem o seu problema sobre todo no que tem a ver com as nenas e os nenos, pois havia certos abusos por parte dalguns moços solteiros.
Na introduçom de A Ulfe fás citaçom de um pensamento do filósofo Michel Serres, com quem coincidiches em Vincennes, onde se pergunta polo impato que pode ter sobre o mundo atual a decadência da cultura rural na Europa.
Ele dezia que esta desapariçom era um dos fenómenos mais importantes do século XX e que ninguém sabe quais serám as suas consequências. Quando a gente le A Ulfe di-me que é mui ecologista, porque as suas protagonistam falam de como se deteriorou o mundo rural com a entrada da lógica capitalista. Do mundo rural que eu conhecim só quedam vestigios, mas havia umha preocupaçom pola natureza forte. Sabiam mui bem que se caçavas perdizes havia que deixar a semente. Ao entrar o capitalismo chegam os pesticidas, os herbicidas… dos quais falam muito os da Ulfe. Como vai afetar a desapariçom do mundo rural? Pois acho que vai afetar muito, sobre todo porque ficamos sem um mundo onde as relaçons entre a gente nom eram relaçons capitalistas no sentido estrito. A gente ajudava-se uns aos outros nos grandes trabalhos. O ‘nos’ dominava sobre o ‘eu’, e é verdade que isto para alguns era dificil de aturar nos anos 70, quando a casa era mais importante que os membros. Mas havia também ali um refugio. Como vai ser um mundo em que as relaçons entre as pessoas só seja capitalista? Vai ser umha sociedade desapiedada, em que a terra e os seres humanos verám-se reduzidos a simples mercadorias.
E que nos podes contar da tua experiência de mestra rural em Palas?
Tinha a minha mae de exemplo. Era umha escola mixta, iam nenos pequenos, medianos, grandes e maiores. Eu cheguei ali, convoquei-nos e os maiores iam detrás, os medianos no centro e os pequenos adiante numhas mesinhas quadradas. Lembro que eu tinha umha regra na mesa e quando ia colhê-la agachavam-se todos. Entom eu perguntava: que é o que passa quando colho o regra? E o Antonio, um rapaz que teria 12 ou 13 anos, que gostava de estudar, dixo: é que a anterior mestra mandava-no-la e dava-lhe a quem quadrasse. Dissem-lhes que quando eu colhera a regra nom a ia tirar e que deixassem de agachar-se. Eu nom era praticante religiosa e tivem que ir onda o cura para dizer-lhe que nom ia ir à primeira comunhom dos nenos, mas ele era um cura rural mais bem laxo. Tenho muitas histórias! O avó da casa onde eu quedava dixo-me um dia de dezembro que “se vai à escola”, porque havia umha casa-escola mas eu nom vivia ali, “e encontra alguém na entrada fazendo lume nom se preocupe, já lhe dixem eu que nom lhe vaia pedir cartos nem lhe dea sustos”. Era um fugido da guerra que ainda vivia pola zona.
Um dia fum a casa do Antonio e dixem que tinha que continuar estudando. Preparei o Antonio para o ingresso em primeiro. E deixei de saber dele. Há umha dúcia de anos, quando saquei o livro da Ulfe recebo umha mensagem que me di: “nom será vostede a Julia Varela que cambiou a minha vida?” Era o António, que agora era catedrático num instituto. Combinamos em pessoa, e ele nom me reconhecia. Eu dezia-lhe “Antonio, eu daquela tinha 18 anos. Aquela mestra que conheciches já nom existe”. Ele, porém, continuava bastante semelhante. Foi um encontro mui emocionante.