Um ato o 23 deste fevereiro de 2019 lembra em Compostela o Duarte, parte de nós que assassinárom há agora 15 meses.
I
O ato do 23F na Sala Malatesta vai lembrar o Duarte e também, acho, vai lembrar-nos outra vez o muito que o achamos em falta. Há mortes que custa digerir. O assassinato de Duarte é das mortes que ainda agora, 15 meses depois, custa acreditar. Xavier Filgueira, companheiro de militância e de prisom do Duarte, dixo dele que era “um neno grande”, que era “tam grande como boa pessoa”. Amém. Nom acredito que ninguém que conheça (conhecesse, desculpai, custa crer que morresse) o Duarte esteja em desacordo. Isso nom é pouco num mundo, o independentismo, que em décadas passadas acovilhou episódios nom pequenos de cainismo e de ódio entre nós. Dizia o poeta irlandês Seamus Heaney que ninguém sabe odiar como os irlandeses porque neles o passado está sempre presente. Algo disso havia.
II
Heaney nom conheceu o Duarte, nom tivo a sorte. O que escreveria o de Derry daquele rapaz de Noia que sendo adolescente se mergulhou de cheio no instituto de Elvinha (A Corunha) numha paixom de compromisso com o país e com a sua classe que já nunca abandonaria? ERGA, mocidades da INTG, UMG, PCLm, Exército Guerrilheiro… Campanha contra a OTAm, mobilizaçons contra a reconversom industrial, Ensino em galego!, 12 anos no caldeiro…. Que dirias, Heaney? Abraiarias-te porque o verbo odiar nom che valeria para nada? Queimaria-che nas maos, de onde saltaria a carcereiros e picolos — filhos de puta‑, que sim sabem conjugar esse verbo em todas as suas formas? Nom dis nada, Heaney?
III
Há umha geracom que conheceu o Duarte após o balcom do Avante. Alto, afável, inquieto. “Bom patriota e melhor gente”, resume David, um dos que andavam naquela AMI que o Duarte acolhera com tanta esperança. “Também tinha erros”, aponta, “era do Dépor”. Esmendrelha-se o celtista. E esse riso leva-nos a outro riso, a princípios de século, no Avante. O de Duarte enquanto narrava anedotas carcerárias dum preso palestiniano com o que coincidira num cárcere espanhol. Lembrava-as, contava-no-las e ria. Nós, do outro lado do balcom, sorríamos: doze anos de prisom e nom fôrom quem de derrotá-lo.
IV
Ser de Noia nom é ser qualquer cousa. Bem mirado, está no único ponto do mundo onde as Rias Baixas deixam de sê-lo para ir dando passo à Costa da Morte. Ou vice-versa. Duarte nasceu em Noia mas já de novo tivo que mudar-se à Corunha. Lembrava ele como a sua nai lhe falava dos problemas que tiveram por ser galego-falantes, dos prejuízos por ser “da aldeia”. E lembrava, também, o ‘tesouro’ no faiado da casa do seu avó: agochados, livros em galego.
V
Nom ficava quieto. As maos sempre em movimento, os olhos a bailarem, o riso assomando a cada momento… A militância do Duarte era com a vida. Militava as 24 horas. Ele mesmo reconhecíasse herdeiro dumha geraçom, a sua, que concebia a militância “como umha forma de vida integral”. Militava na vida, que é como outra forma qualquer de dizer que militava no seu país.
VI
Começou a militar com 19 anos no Exército Guerrilheiro e tinha apenas 22 anos quando caiu preso. Recebeu o trato habitual: torturas, maus tratos, isolamento. Nom o quebrárom. Doze anos. Disse rápido. Antes de aplicar a política de dispersom, os presos independentistas galegos formavam um coletivo, umha espécie de comuna onde estudavam, debatiam, mantinham umha dignidade coletiva e consciente frente ao sistema penitenciário espanhol. Conviviam com outros presos políticos: como aquele do FPLP das anedotas que faziam abrolhar risos, o pessoal de Terra lliure, de ETA, das Brigadas Vermelhas. Como um pequeno universo de luitas emancipatórias, umha aranheira de celas rebeldes, irmanadas e irmandinhas, numha macroprisom da estepa espanhola. “Era a nossa universidade”, afirmava o Duarte.
VII
Umha vez em liberdade (“As prisons constroem-se para que os que nom estám dentro pensem que estám fora”, Sarri) realizou o Doutorado em Historia, especialidade em que escreveu trabalhos sobre as Irmandades da Fala ou Francisco Tettamancy, entre outros. Participou em jornadas e debates. Trabalhou de camareiro. Trabalhou vendendo peixe. Madrugar dia após dia, para iniciar umha jornada laboral que começava bem cedo, indo ao porto da Corunha para depois percorrer a comarca. Madrugar, buscar peixe e vendê-lo pola contorna. Como as ‘pescas’ de Noia figérom durante décadas.
VIII
O Duarte adolescente baixava canda outros companheiros ao porto da Corunha quando sabiam que atracavam barcos soviéticos. Pediam-lhe aos marinheiros livros de Marx, de Lenine. Era algo relativamente habitual nos portos galegos da década de 80. Estivadores de Vila Joám no Porto de Vila Garcia, como ‘O Patachula’ ou ‘Pimenta’, faziam-no quando arribavam os navios da URSS: “Nós dávamos-lhe tabaco e eles a nós comunismo”
IX
Há um poema de Uxío Novoneyra em memoria de Amador e Daniel polo 10 de março de 1972 que parece escrito, palavra por palavra, em memoria de Duarte Abad polo 10 de novembro de 2017: “Erguestes-vos cedo aquele dia / o costume do trabalho / manhá cedinho / para fazer-nos com a vossa morte”.
X
Passárom 15 meses. Seguimos achando em falta o Duarte Abad Lojo
“Entom, quando os velhos tempos da adolescência, quando nem sequer imaginávamos que um dia algo ia rachar, KRA! no nosso coraçom” (‘Henry Bengoa Inventarium’, Bernardo Atxaga)