O Direito penal está a sofrer continuas transformações. Não é alvo deste artigo nem as abordar nem as expor, o que já têm feito especialistas com mais conhecimento que quem escreve. Mas sim quer-se ressaltar uma que, por atual e injusta, merece ser comentada. Estou a falar de uma figura relativamente recente, conhecida como “liberdade vigiada”, introduzida no código penal os últimos meses do governo de Zapatero. Trata-se duma medida de seguridade ‑que não uma pena- que se pode impor a uma pessoa que for condenada penalmente, quando o tribunal considera que a tal pessoa presenta uma certa perigosidade.
Consiste em obrigar à pessoa afetada a realizar certas ações ou se abster de fazer umas outras. Normalmente são impostas para depois do cumprimento duma pena de prisão. E este é um fato relevante. Assim, na exposição de motivos da lei orgânica que introduze a figura da liberdade vigiada, fala-se de que é pensada para aqueles casos especialmente graves em que a prisão não é por si própria suficiente para conseguir a reabilitação da pessoa infratora.
A ‘liberdade vigiada’ foi introduzida no Código Penal nos últimos meses do governo de Zapatero. Na lei fala-se de que é pensada para casos em que a prisão não cnosegue reabilitação
As perguntas a seguir são evidentes: se o próprio Estado reconhece que a prisão é inútil como dispositivo ressocializador, então, devemos gastar tanto dinheiro público num sistema, o carcerário, que não serve para solucionar problemas sociais senão só para punir ‑quer dizer, causar sofrimento-? E, por outro lado, não é a liberdade vigilada uma elongação da condena, uma sorte de condena após a prisão? E se é tal, deve a perigosidade ser uma razão para impor alguém uma sanção? Até há pouco, as sanções penais baseavam-se na culpabilidade, que se materializava na comissão dum ilícito penal, mas não em algo tão relativo e etéreo como a perigosidade. É justa tal mudança?
São estas perguntas que me faço após conhecer as medidas de liberdade vigilada que a Audiência Nacional espanhola impôs mui recentemente a uma das últimas pessoas condenadas por pertencer a essa organização denominada nos expedientes policiais como “Resistência Galega”. A pessoa em questão fora condenada a três anos de prisão, por pertencer a uma organização terrorista, sempre nos termos do acordão do tribunal, que são os do código penal. Em efeito é uma pena de curta duração, o que no código penal se chama de pena “menos grave”. Se chega durar um ano menos, a pessoa afetada poderia ter mesmo optado a uma suspensão da pena de prisão.
As comparações são rechamantes: por exemplo, Rato foi condenado a quatro anos e meio, Urdangarín, a quase seis anos, Díaz Ferran, a dez anos. Todos eles três saíram antes de cumprir toda a pena e nenhum teve que aguentar medidas de liberdade vigiada, porque o código penal não prevê tales medidas nos delitos cometidos por eles. Poder-se-ia argumentar que em tales casos, não há vítimas diretas e, se as há, a sua integridade física não tem perigo. Mais daquela quem é que é vítima do delito de integração numa organização criminosa? A integridade física de quem corre perigo por uma pessoa que nem agrediu ninguém?
Até há pouco, as sanções penais baseavam-se na culpabilidade, que se materializava na comissão dum ilícito penal, mas não em algo tão relativo e etereo como a perigosidade. É justa tal mudança?
Com tudo, a Audiência Nacional considera que a tal pessoa tem uma perigosidade extraordinária. E por isso condena‑a a inúmeras medidas: estar localizável com um dispositivo eletrónico incorporado ao seu corpo, obriga de comparecer no quartel da Guarda Civil cada quinze dias e comunicar qualquer mudança de domicílio e trabalho, proibição de sair da sua província livremente e de se comunicar com as outras pessoas condenadas no mesmo processo que ela, proibição de trabalhar em aeroportos, portos e centrais nucleares, proibição de assistir a atos de recebimento, entre outras. Tudo elo durante um ano inteiro.
É muito clara a falta de proporcionalidade das medidas para uma pessoa que não tem, como se disse, condenas por agredir outras pessoas, nem causar danos a coisa nenhuma, nem por se apropriar de bens ou dinheiro públicos. Então, qual é a razão duma medida tão drástica? A resposta não é simples, mas alguma coisa antolha-se segura: se a pessoa condenada não fosse independentista, mui possivelmente não estaríamos a falar duma extraordinária perigosidade.