
Com a guerra da Ucrânia, multiplicárom-se as leituras sobre a realidade desse país, também sobre a linguística. Desde reivindicações como a do galego, produzia-se então um fenómeno significativo: segundo o bando escolhido previamente pela analista, o russo ou o ucraniano eram apresentados alternativamente como língua oprimida ou opressora.
É certo que o governo de Kiev está a promover o monolinguismo: em 2019 aprovou uma lei que impunha o uso único ou preferente do ucraniano em praticamente toda a esfera pública. As (poucas) exceções à norma não contemplam o russo, mas tampouco o bielorrusso ou o iídiche. Com esta lei fechava-se definitivamente a política vigente de 2012 a 2018, permissiva com o uso das línguas onde representassem mais de 10% da população.
Mas na outra trincheira também luta o glotocídio. Donetsk e Lugansk declararam o russo única língua estatal em 2020. Na Crimeia, o ucraniano e o tártaro são também idiomas oficiais na teoria, mas o seu uso público e no ensino descendeu desde a anexação. A Rússia leva anos de ações contra as línguas menorizadas, das quais a mais conhecida é a lei que, em 2018, fijo opcional o ensino dos idiomas reconhecidos além do russo, até então obrigatório.
Sem negar as discriminações, estamos perante o enfrentamento de duas línguas poderosas com políticas nacionalistas: o russo, idioma de prestígio na zona desde há séculos; e o ucraniano, com uma promoção cada vez mais agressiva desde a independência do país. Longe dos essencialismos do poder, o limite entre ucranianas de língua eslava dilui-se: a maior parte compreende os dois idiomas, e quase 20% usa o surjik, uma língua mista que junta características deles em distinta proporção.
Além da leitura simples dum país bilingue, a paisagem linguística da Ucrânia reproduz em miniatura quase toda a Europa do leste. Falam-se ali idiomas oficiais nos estados fronteiriços (romeno, húngaro, polonês…), chegados com migrações históricas (albanês de Zaporíjia, grego de Mariúpol, sueco de Gammalsvenskby…) ou línguas sem estado (russino, iídiche, romani…). Sem esquecer as utentes de línguas gestuais, tanto ucraniana como russa, que alguns estudos consideram variedades dum mesmo idioma.
Paga a pena deter-se nas línguas túrquicas, se quadra as mais esquecidas das do país. O tártaro da Crimeia, reconhecida tanto por Rússia como por Ucrânia, continua gravemente ameaçada e a perder falantes. Entre as mais de 200.000 que ainda se contam, ocultam-se utentes de urum, variedade ainda mais invisibilizada. Na mesma península, comunidades judias usam o krimchaque e o karaim, ao borde da extinção. E na região de Odessa resistem uns 20.000 falantes de gagauz, mas o número desce cada ano baixo o peso do russo e do ucraniano.
Contra as vontades glotocidas dos governos, o monolinguismo em Ucrânia continua a ser minoritário. Mas às pressões que sofrem as falantes de línguas menorizadas soma-se agora o efeito das bombas, os combates e os crimes de guerra. E com as vozes da população apagam-se também palavras e idiomas.