Acaba de morrer Mariquinha, como era conhecida na Corunha. Se calhar, alguma gente nom sabia que o seu nome nom era o clássico Maria Luz, mas que fora registada oficialmente como Mar y Luz, cumprindo a velha tradiçom anarquista de dar às crianças nomes tomados da natureza, da literatura, ou referentes às próprias ideias. De facto, a sua mai, Palmira Otero tinha aquele nome por uma obra mui apreciada no mundo libertário, como era “As ruínas de Palmira” do Conde de Volney.
A infância de Mar y Luz fora na rua Marconi, na casa do sindicalista da fábrica de sapatos de Senra, o seu avó Joaquin Otero; ali sempre havia um prato para quem tivesse fame, e eram correntes as disputas familiares sobre o acontecer das lutas sociais ou a sociedade do porvir. Quando o anarquista José Villaverde chegara à Corunha nos anos 30 para se incorporar na CNT corunhesa, o velho Otero acolheu também muitas vezes naquela casa a Frater (Fratermidad, a filha mais velha de Villaverde, viúvo naquela altura, e que ainda tinha outra filha chamada Nieves), magoado de vê-la nos locais sindicais ou nos mitins, aguardando polo pai. E foi assim como Villaverde tomou maior contacto com a família Otero e namorou com a sua filha Palmira, com quem se uniu pouco tempo depois. Logo nasceram Mar y Luz e Olga Villaverde Otero, que quase nom conheceram o pai, pois em julho de 1936 foi encarcerado e executado sem formaçom de causa, um 25 de setembro de 1936, em Osseiro-Arteixo.
Nada numha familia anarquista, a militancia do seu pai foi-lhe oculta poucos anos antes da morte do dictador
A família Otero também padeceu a perseguiçom dos militares sublevados, mas conseguiram salvar a vida e também um pequeno tesouro: uma mala com a documentaçom de José Villaverde, os jornais “Solidaridad Obrera” e “Solidaridad” da Corunha, que dirigira ou em que colaborara nos anos da II República. A família Villaverde Otero salvou aquela documentaçom, que foi enterrada inicialmente na estaçom ferroviária de Sam Cristovo; quando se recuperou foi levada para a casa de Marconi, depois estivo numa casa de Joaquin Otero Ois (o filho do velho Joaquin, irmao de Palmira) pola parte de Eiris e quando as cousas estavam algo mais tranquilas, retornou para a casa da rua Marconi.
Anos antes da morte de Franco, Mariquinha começou a saber da história do pai e da sua militância sindical, que lhe fora ocultada pola família. O motivo do silêncio era que por muito tempo Palmira ainda tinha padecido a vigilância dos repressores. A mai da Mariquinha era uma mulher de carácter forte e mesmo se tinha confrontado fisicamente aos falangistas polo menos duas vezes: uma vez que a visitaram no seu posto na praça de abastos e noutra ocasiom que foram ter à casa da rua Marconi. Mas também decidira proteger as meninas ocultando-lhes os motivos da morte do pai.
Naquela altura a Mariquinha foi contactada por gente da CNT no exílio no México, o que a levou a recuperar o conteúdo da mala. Aos poucos, Mariquinha foi organizando toda a documentaçom, as fotografias e jornais e foi conhecendo e recuperando a memória do pai, contando com a colaboraçom, agora sim, da memória familiar. A família Villaverde foi pioneira na chamada memória histórica, obtendo uma cópia da certidom de óbito de José Villaverde incluindo o motivo real da sua morte, ou colocando em “La Voz de Galicia” umha necrologia polo 41 aniversário do seu assassinato, em setembro de 1977 (anos depois, o jornal corunhês recusou-se a publicar necrologias semelhantes, demonstrando a sua sensibilidade com os vitimários e a sua insensibilidade para com as vítimas).
A memória da Corunha e da Galiza rebelde foi melhor conhecida graças à família Villaverde, que disponibilizou a consulta dos jornais e a documentaçom às pessoas interessadas na investigaçom da história do anarco-sindicalismo galego. Na maior parte dos casos, Mariquinha foi a pessoa que facilitou a consulta dos documentos, e quem acolheu a gente nova que investigava aquela parte da nossa história. Ainda pouco foi valorizado o facto de acompanhar a consulta dos documentos históricos com as explicaçons do Mariquinha arredor da sua própria história e com episódios da memória familiar. Na visita ao “santuário” da rua Orillamar o material a preto e branco dos materiais históricos contrastava com a cor que sempre presidiu à sua vida, tanto no vestir como na decoraçom da casa. A combinaçom da mulher livre e moderna que ela era com os antigos documentos da história sindical dava sentido a uma frase por ela proferida: “agora estamos no mesmo que estavam eles no tempo da República”.
Simpatia, alegria, rebeldia, eram em Mariquinha caracteres que pouco tinha a ver com a genética. Eram antes sinais da supervivência duma família que foi golpeada pola repressom fascista, que resistiu os quarenta anos da ditadura franquista e depois resgatou para a coletividade a cultura solidaria e rebelde das geraçons precedentes. Com a morte de Mariquinha foi-se algo da luz que iluminava o nosso caminho, mas também é verdade que, como o mar, graças a ela ondas de rebeldia e solidariedade ainda continuam batendo incansáveis nas rochas da cidade herculina.