O historiador Martín Fernández Calo vem de presentar o seu primeiro trabalho editorial, ‘Estado, poder e estruturas políticas na Gallaecia: séculos II a.C. — VIII d.C.’, um completo e extenso repasso desde os povos galaicos até aos visigodos.
O teu trabalho atual, enquanto investigador, centra-se na Gallaecia Porque este período?
A Gallaecia nom é só um período, um intervalo de tempo; mas também, e sobretudo, um lugar no espaço. Toda a investigaçom histórica, por si só, tem que definir um tema de estudo juntamente com umas coordenadas espaciais e temporais. Se nom, é irrealizável. Eu tive sempre, simplesmente, uma inclinaçom pessoal polas época antigas, escuras, arcaicas; e em geral polo exotismo. No meu interesse particular influiu ainda ter cursado matérias específicas de história da Galiza na minha licenciatura, o que me ajudou a compreender a riqueza da nossa própria história, o que muitas vezes é difícil de se perceber a partir do público nom especializado.
Como definirias a tua contribuiçom à nossa história?
Tenho especial orgulho em algo tam simples como ter dedicado, igual que a temas clássicos como à conquista romana, capítulos específicos aos séculos III e IV; ou seja, ao Baixo Império, absolutamente marginado por muitos especialistas da história romana, para os que parece nom existirem mais do que as duas primeiras dinastias do Império. Pois essa época é importantíssima. O desenvolvimento das villae, o do latifúndio e o do regime senhorial estám aí. Como havemos entender as raízes do feudalismo galego, e, portanto, do mesmo Medievo galego e até da Época Moderna, se nom nos esforçamos em compreender o século III? O meu contributo é o de definir um tema de estudo e em profundar nas fontes históricas e nos debates historiográficos suscitados por elas. O resultado é uma síntese para quase mil anos da nossa história mais antiga, alicerçada sobre as mesmas bases analíticas e os mesmos objetivos: tanto tem se para o Império Romano ou os domínios germânicos; ou mesmo os períodos sem Estado. Numa palavra, dar uma resposta coerente a um tema que, muito embora a sua importância, nunca a tivera.
Atopamos um enfoque mui interessante no espaço dedicado ao reino suevo, quiçá um dos períodos mais desconhecidos e com mais incógnitas da nossa história. Porque esta decisom?
Em primeiro lugar, temos a questom das fontes. Som mui poucas, e embora desde décadas atrás se tenha vindo a insistir em que a Arqueologia poderia melhorar a situaçom com projetos específicos, o que é verdade é que esta continua, polo geral, atascada a tratar dos seus temas fetiche e orientada para os períodos castrejo e romano. Em segundo lugar, está o currículo académico: em geral, a especialidade tardo-antiga é marginal, quase inexistente na Espanha e Portugal, e os especialistas em história romana e medieval costumam, simplesmente, eludir o tema dos reinos germânicos. Mas todos sabemos que há uma terceira razom de índole política. A investigaçom moderna dos reinos germânicos esteve tradicionalmente ligada a intencionalidades nacionalistas e, frequentemente conservadoras quando nom reacionárias, no contexto da criaçom dos relatos nacionais contemporâneos. Historiadores como Anselmo López Carreira e sobre todo Pablo C. Díaz Martínez têm estudado a forma como o reino suevo foi marginado sempre, simplesmente, polo seu difícil encaixe no relato nacional espanhol. O mesmo importa apontar para o relato nacional português. Mas se o reino suevo nom alcançou um lugar destacado na historiografia galega nom pode ser atribuído só a isto. Antes e depois de nascer o relato nacional espanhol contemporâneo, antes e depois de morrer Franco, houve muitos bons historiadores galegos, mas quase nenhum deixou contributos relevantes para a historiografia do reino suevo.
Neste tema pesa mais, sem dúvida, o contributo de autores franceses, alemáns, portugueses ou espanhóis nom galegos, do que galegos. Sobre os reinos germânicos, nom fai falta evocar os mitos raciais e os nazistas: refiramos simplesmente aquilo da lista dos reis godos que memorizavam os alunos da escola franquista. Há melhor exemplo, já nom do conservadorismo, mas da rançosa pedagogia e historiografia dominante? Mas nesta linha, eu tenho a suspeita de que quando desde os anos 1980 se desenvolveu, se se me permite a expressom, um novo consenso progre para a história de Espanha, os reinos germânicos foram condenados ao ostracismo.
Historiadores como Anselmo López Carreira e sobre todo Pablo C. Díaz Martínez têm estudado a forma como o reino suevo foi marginado sempre, simplesmente, polo seu difícil encaixe no relato nacional espanhol.
Que aspetos ficam ainda inexplorados dentro da nossa história?
Nas conclusons do meu libro cito treze verdadeiros enigmas, atendidos nos diversos capítulos, mas nem por acaso já resolvidos. Por exemplo, o do praefectus Callaeciae, o primeiro cargo com mandato exclusivo para a nossa regiom, que surpreendentemente passa quase desapercebido nos estudos sobre a Galiza romana. Outro exemplo: sabemos que o primeiro grande abandono dos castros, e a consequente origem de algo tam importante para a história do nosso país como a aldeia galega, coincide com a concessom de um privilégio jurídico romano, lá por volta do ano 70 d.C. É muito difícil interligar esses factos, embora todos os que batemos com eles possamos ter suspeitas mais ou menos plausíveis ao respeito. O que sabemos é que as duas cousas ocorreram à vez e intuímos que estiveram relacionadas, mas concretizarmos mais um bocado isso é complexo. Outros enigmas têm a ver com a história eclesiástica. É bem sabido que toda a articulaçom política da Tardo-antiguidade esteve protagonizada polo poder episcopal, e nom é só que nom possamos sequer reconstruir os episcopológios (listas de bispos) de cada igreja, mas que constatamos alguns bispados que nom sabemos nem localizar no mapa! Isso é, se se me permite a comparaçom, como se nom soubéssemos as capitais de província antes de pormo-nos a estudar o regime liberal contemporáneo. O mesmo se pode dizer para o caso das cecas visigodas, das igrejas suevas, das civitates romanas. Olhemos para as cecas (centros de emissom de moeda): na Gallaecia temos metade das de todo o reino visigodo, o que ninguém consegue explicar, embora a todos nos convença das particularidades do poder local galaico daquele tempo.
Olhemos para as cecas (centros de emissom de moeda): na Gallaecia temos metade das de todo o reino visigodo, o que ninguém consegue explicar, embora a todos nos convença das particularidades do poder local galaico daquele tempo.
Quais fôrom os entraves que encontraste, tendo em conta a dificuldade das fontes?
Na Antiguidade, as fontes som poucas, mas muito mais acessíveis do que na generalidade dos períodos históricos. Essa é a grande vantagem que pode ter um historiador coma mim que só está a começar. Relativamente ao principatus, as dificuldades emergem mais da historiografia do que das fontes históricas. É uma instituiçom que chama a atençom, e em geral todo o mundo assume que teve um papel relevante no seu tempo (o trânsito da cultura castreja para a romanizaçom), mas ninguém assumira nunca algo tam óbvio como que, para compreendê-la, era preciso estudá-la. No meu trabalho tomei-me a moléstia de analisar os limites interpretativos que as próprias fontes que documentam os principes (duas lápidas, só isso!) imponhem para eles, e a partir daí pesquisar os paralelos históricos noutras regions da Europa e da bacia mediterránica. Eu defendo que o principatus galaico é umha chefia étnica, anterior ao desenvolvimento de qualquer estrutura estatal na Galiza, mas mediatizado polo poder romano quando deixou constância epigráfica. Nom pretendo que a minha resposta para o principatus seja infalível, mas sim reivindicar uma forma diferente de nos aproximar dele. Algo tam simples como deixar falar às fontes, nom falar por elas. E o dito para o principatus vale para qualquer outra instituiçom.