Um exercício saudável em certa altura da vida das pessoas é perguntar-se de quem somos devedores. Que restaria de cada um de nós sem as achegas decisivas que recebemos da família, das amizades, das companheiras de luita e de viagem, da contorna social, dos nossos mestres formais ou informais, dos autores que, salvando as distâncias do tempo, nos fornecérom as leituras mais marcantes? Provavelmente, quase nada, apenas umha sombra em que nem sequer íamos reconhecer-nos. Dada a força que tem o mito liberal da autosuficiência, com ele construimos a nossa auto-imagem do indivíduo que vai somando méritos numha escala de logros ascendente. No político, académico ou laboral, nada se nos dá, senom que tenazmente o conquistamos com esforço e atitude. “Fazemo-nos a nós mesmos”, fala o dito de inspiraçom norteamericana. Mas esse fazermo-nos, de ser certo, só é possível com umha contribuiçom tam enorme e tam valiosa do comum que o indivíduo revela-se, finalmente, numha dimensom mui modesta, tam modesta que chega a incomodar a nossa fachenda.
Como as pessoas, os movimentos também podem fazer esse exercício para entender-se cabalmente. E para tal tarefa, precisam da memória. Nas duas últimas décadas, umha entente entre o movimento popular e a comunidade historiográfica reconstruiu devagarinho a Galiza prévia a 1936, analisou a dimensom do genocídio posterior e descobriu que sectores do nosso país afiançárom o seu domínio de décadas na brutalidade e no espólio. Podemos dizer que, graças a essa tarefa recuperadora, hoje somos mais dignos, mais sábios e quiçá também um pouco mais confiantes nas nossas capacidades como povo. Mas penso que graças a este contributo podemos ser também um bocado mais humildes.
Nas duas últimas décadas, umha entente entre o movimento popular e a comunidade historiográfica reconstruiu devagarinho a Galiza prévia a 1936 e analisou a dimensom do genocídio posterior
Com as palavras do nosso tempo e os peculiares formatos políticos que adotamos neste século, quem botar umha olhada atrás dará-se de conta de que nom nos cabe o orgulho de nengum invento especialmente original. Muito, muito atrás no tempo, numha sociedade iletrada, pobre, submetida a formas de servidume menos subtis e mais descarnadas que as que hoje conhecemos, gentes do nosso povo pugérom em andamento todo aquilo que nós, com mais ou menos sucesso, tencionamos ainda fazer realidade. Estendêrom a sindicaçom, figérom esforços por alfabetizar-se e formar-se dentro ou fora dos centros educativos estatais; ideárom e ensaiárom pedagogia galega e em galego; escrevêrom imprensa sem terem o título ou a profissom oficial de jornalistas; pugérom em contacto a Galiza de aquem e além mar para que os que engrossárom o êxodo económico puderam contribuir na distância para a obra que se edificava na Terra; luitárom por instituiçons nacionais e os mais ambiciosos mesmo sonhárom e difundírom a ideia dumha República galega; denunciárom a perversom da dinâmica democrática baixo as formas do caciquismo e a coaçom; como nós ainda fazemos hoje, alguns caminhárom incansavelmente os nossos montes, para inventariar os milhares de tesouros do passado galego, com a convicçom de irmos superar assim o persistente desprezo polo próprio. Quando fôrom perseguidos policialmente, e em 1936 ameaçados com o extermínio, socializárom formas de autodefesa, desenvolvêrom toda umha infraestrutura de rotas e de agochos e ativárom umha rede de cumplicidades populares que salvou vidas e permitiu mesmo espaços respiráveis nos piores tempos que podemos recordar.
Um dos motivos informais mais recorrentes da militância do presente é a queixa polo pouco nível de compromisso. Numha sociedade passiva ‑di-se ou pensa-se- só um fato de irredutíveis mantém vivo o facho do compromisso coletivo e do sacrifício pola causa. O laio tem parte de compreensível, porque ser parte dumha minoria nom é nunca doado e, num mundo aliás em que dependemos de espaços laborais precários e hostis, é normal sentirmo-nos tristes e isolados pola indiferença. Mas, como é mui doado transitar da crítica à genreira e do orgulho à soberbia, cumpriria lembrar como militavam os nossos devanceiros: a classe obreira, após jornadas inacabáveis e atendendo famílias numerosas; as mulheres, num sistema que acabava de permitir o seu direito ao voto; os nacionalistas, num país sem instituiçons nacionais reconhecidas e em que a expressom pública em galego era considerada provocaçom ou rareza; os internacionalistas, expulsados de país em país polas autoridades e condenados a umha vida nómade em defesa da ideia, num apostolado moderno. Claro que se todas as fasquias da vida naquele tempo eram mais duras e exigentes, também o seria a participaçom política, polo que pouco sentido fai qualquer comparaçom entre nós e os homes e mulheres dum mundo já desaparecido. Se as comparaçons improcedentes levam à frustraçom, umha perspetiva ampla das cousas fai-nos cientes da verdadeira dimensom dos nossos problemas. A nossa militância é relativamente doada se a compararmos com a que passadas geraçons de luitadores viviam com tanta devoçom; o nosso ativismo tem no século XXI umha carga estética e narcisista que era alheia aos antepassados, educados em formas de participaçom comunitária e anonimatos muito estritos. Bom seria que, já que a nossa natureza mais mole nom pode equiparar-se à deles, estivéssemos dispostos quanto menos a inspirar-nos com os seus exemplos e reduzir a nossa autocomiseraçom. Utilizando umha expressom bem gráfica à que recorria Paulo Painceiras nestas mesmas páginas, podemos ver mais ao longe, e avançar mais distância, se subirmos nos ombros de gigantes.
Nos processos de perseguiçom massiva do século XX nom se enfrentam umhas elites cruéis contra um povo digno e flagelado, senom que o terror fomenta umha vasta zona gris de passividade
Que aconteceu com toda aquela obra coletiva? Sabemo-lo bem e, nestes últimos lustros, com as achegas da historiografia popular e académica, temos acedido a novas perspetivas muito reveladoras. Aqui aconteceu um genocídio sem precedentes na memória dos vivos e o seu alcanço e a sua extensom eram tam difíceis de enxergar por umha pessoa comprometida na década de 30, que a incredulidade e a parálise dominárom parte do campo popular, inclusive destacados militantes que nom se imaginavam poder ser vítimas de tamanha violência. Contra o que diz a literatura mais simplória da esquerda, nos processos de perseguiçom massiva do século XX nom se enfrentam umhas elites cruéis contra um povo digno e flagelado, senom que o terror fomenta umha vasta zona gris de passividade calculada e umha peçonha moral feita de silêncio envenena geraçons e geraçons. O que Primo Levi escreveu sobre a atitude quotidiana na Alemanha dos campos de extermínio pode ilustrar-nos sobre isto: “quem sabia nom falava, quem nom sabia nom perguntava, quem perguntava nom obtinha resposta. Deste modo, o cidadao típico conquistava e defendia a sua ignorância.” A Galiza, como qualquer outro país enfrentado a estes horrores, encheu-se destes cidadaos típicos, muitos deles reconvertidos procedentes da causa galega ou de ideários progressistas. Na realidade, estes cidadaos típicos numha experiência extraordinária podemos ser qualquer um de nós; assim temos que vê-lo, superando as nossas ilusons de grandiosidade e precisamente sabendo que a dignidade, a integridade, a resistência — o bem, ao cabo- nom som dons gratuitos que manam abundantes; mais bem som exemplos muito estranhos na conduta humana em situaçons terríveis, que precisam enorme trabalho e paciência para abrolharem. Oxalá os movimentos, grandes ou pequenos, saibam cultivá-los.