Salva-me da boca dos leões,
e dos cornos dos bois selvagens.
(Salmos 22:21)
Há uns 9.300 anos, num frio dia de inverno, uma pastora caminhava, acompanhada de três auroques, polas terras do Zebreiro, quando caíram acidentalmente numa dolina cársica. A cova do Chão do Lindeiro, oculta sob um espesso manto de neve, convertia-se assim numa armadilha mortal. Os restos da mulher e dos auroques foram estudados no Instituto Universitário de Geologia da Universidade da Corunha.
Sabemos polo registro fóssil e por gravuras e pinturas rupestres como as de Foz Côa, El Pozu’l Ramu, Altamira ou Aitzbitarte, que nestas latitudes da Europa, em tempos idos, pastavam rebanhos de bovinos selvagens de grande tamanho como o mencionado auroque ou o bisonte.
O auroque (Bos primigenius primigenius) vivia na maior parte do hemisfério norte. Considerado o ancestral dos touros (B. p. taurus), supõe-se que a sua domesticação teria acontecido durante a Revolução Neolítica, há cerca de 12.500 anos atrás. Depois os auroques rarefizeram-se devido à pressão da caça e à concorrência do gado. Assim, foram ficando restritos às florestas mais remotas; tendo, a partir do século XVI, os seus últimos refúgios nos bosques polacos de Wiskitki e Jaktorów. Em Jaktorów morreu em 1627, por causas naturais, a última fêmea da espécie.
Um bisonte na Galiza
O bisonte-europeu (Bison bonasus), que descende provavelmente da hibridação entre o antigo bisonte-da-estepe (Bison priscus) e os auroques, correu melhor sorte e foi salvado in extremis da extinção. Na pré-história, o bisonte habitava uma vasta área que se estendia desde o Maciço Galaico-Duriense à Sibéria Ocidental. Mas por causas similares às vistas para o auroque, a sua distribuição foi-se reduzindo gradualmente. Desde meados do século XIV, a espécie tinha desaparecido da Europa Ocidental, encontrando-se apenas nalguns escassos pontos da Oriental. Durante a Grande Guerra, uns 600 foram mortos para alimentar as tropas alemãs em Białowieża (Polónia), onde se extinguiria em 1921, e já, em 1927, foi caçado no Cáucaso o último exemplar selvagem. Na altura, os poucos bisontes restantes sobreviviam em zoos. A partir de 1951, alguns exemplares foram reintroduzidos em Białowieża. Hoje em dia, são encontradas manadas livres em diferentes países, estimando-se a população mundial em mais de 5.000 indivíduos, porém todos eles descendentes de apenas 12 bisontes. Devido a este limitado património genético, continua a espécie a ser considerada como extremamente vulnerável. Nos últimos anos existiram mesmo intentos de (re)introdução na Península Ibérica.
Na Alemanha nazi os irmãos Heck, mediante acasalamentos seletivos de diferentes raças bovinas, tentaram recriar o auroque. Fracassaram. Os animais obtidos, ainda que morfologicamente mantenham certas semelhanças, têm uma etologia e uma genética completamente diferentes das do seu antepassado. Projetos atuais como o Taurus, o Uruz ou o Auerrind visam esse mesmo objetivo. E entre as raças “primitivas” escolhidas para os cruzamentos, destacam-se a Sayagüesa, a Maronesa, a Barrosã e a Limiã.
‘Morenas do Noroeste’
O Censo Oficial de Raças de 1970 agrupou sob a denominação de “Morenas do Noroeste”, um conjunto de variedades de vacuns desse quadrante peninsular: a Caldelã, a Cachena, a Limiã, a Vianesa, a Frieiresa, a Seabresa, a Alistana, a Sayagüesa e a, tristemente desaparecida, Manteigueira do Alto Sil. A taxonomia espanhola não incluiu nesta denominação raças portuguesas estreitamente aparentadas com as anteriores, como a Mirandesa, a Maronesa ou a Barrosã. Era previsível!
A denominação de Morenas vem das suas cores predominantes, com mistura de diferentes tonalidades de pardos, castanhos e negros. Sendo típicos os focinhos escuros com orla abrancaçada.
Embora, no presente, o principal aproveitamento seja para a produção de carne, têm boa aptidão para o trabalho. Os bois caldelãos, vianeses e frieireses exportam-se ainda para Euskal Herria, com o objetivo de serem utilizados nas idi probak (arrastamento de pedras). Na Galiza, a maior parte das Morenas passaram por um momento crítico no final do século XX com o desaparecimento da agricultura tradicional. Nessa altura desenvolveu-se um programa governamental de recuperação.
Originária da região com centro em Castro Caldelas, a Caldelã tem tamanho médio e cabeça bem conformada. As suas cores evoluem, com a idade, dos dourados aos pretos, mantendo muitas a linha dorso-lombar aloirada.
A Cachena é uma das raças mais pequenas do mundo (altura ao garrote inferior a 120 cm). Vaca própria das serras Amarela, Peneda, Soajo, Jurês, Leboreiro e Quinjo, comum a ambos os lados da Raia. Se bem que na Galiza, nos anos 80, ficaram circunscritas à aldeia de Olelas (Entrimo). Agora é uma raça em expansão. Considera-se amiúde como o ecótipo de alta montanha da muito maior Barrosã, típica do oeste de Trás-os-Montes e do Minho interior. Em Cachenas e Barrosãs sobressaem as cabeças curtas com imponentes cornos em lira.
São as serras centrais transmontanas (Marão, Alvão e Padrela) o berço da Maronesa. Vaca bem proporcionada e de cabeça algo estreita com “guedelhas” (marrafa de pêlos na testa) e armação em lira projectada para a frente que sobe depois, com as pontas para fora.
A Limiã tem o seu solar numa comarca rica em pastagens, polo que não surpreendem as suas importantes dimensões. A cabeça bem proporcionada caracteriza-se por uma fronte e focinho largos e orelhas com longos pêlos.
Das Terras do Bolo procede a Vianesa. Vaca vigorosa, mas de cabeça que se estreita no focinho, com ‘guedelhas’ e orelhas também muito peludas.
Distribuída desde o Vale de Monte Rei (onde absorveu a Verinesa) até as Portelas, a variedade das Terras das Frieiras apresenta tantas similitudes morfológicas e continuidade genética com a Mirandesa de Trás-os-Montes e com as castas Alistano-Seabresas, que bem poderiam agrupar-se todas elas numa mesma raça. São vacas grandes de cabeça pequena, adornada de longas ‘guedelhas’.
Aparentada com as anteriores, a Sayaguesa tem origem no território que, situado ao sudoeste da província de Samora, limita com a Terras de Miranda e de Aliste. Animais em que predominam tonalidades negras nos adultos, a maioria apresenta linha dorso-lombar marcada. Alcançam grande corpulência e têm cabeça forte e orelhas pequenas.
Desgraçadamente, dificilmente poderemos ‘ressucitar’ os auroques, mas possuímos por sorte raças autóctones que conservam características ‘primitivas’ de rusticidade e resistência que as fazem idóneas para serem exploradas, em modo extensivo, em áreas de difícil permanência para outros bovinos, o que lhes concede um papel fundamental na conservação da biodiversidade, na prevenção de incêndios e mesmo, em termos económicos, na fixação de população rural. Vai uma posta de Cachena?