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Na era pós-Prestige

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Em 2002 pro­du­zia-se na Galiza, por oi­tava vez nas úl­ti­mas dé­ca­das, o nau­frá­gio dum na­vio com subs­tân­cias con­ta­mi­nan­tes. As im­pru­dên­cias e a falta de le­gis­la­ção so­ma­das ao efeito dos tem­po­rais dei­xam po­luí­das as nos­sas cos­tas pe­ri­o­di­ca­mente e tor­nam-nos na re­gião cos­teira do mundo mais afe­tada por esta de­sor­dem da in­ter­ven­ção hu­mana na na­tu­reza, que não é aci­den­tal. Na al­tura, os acon­te­ci­men­tos fo­ram re­trans­mi­ti­dos quase em tempo real, visto que o tris­te­mente cé­le­bre Prestige foi tra­tado como um epi­só­dio de guerra; cri­ava a mesma alarme, a mesma in­qui­e­tude. Aquele epi­só­dio foi ful­cral na to­mada de cons­ci­ên­cia po­lí­tica de mui­tas ga­le­gas: 300.000 ma­ni­fes­tan­tes sob uma chuva in­cle­mente tes­te­mu­nha­vam um des­con­ten­ta­mento fe­roz. O Prestige mo­bi­li­zou uma so­ci­e­dade sem­pre re­tra­tada como obe­di­ente; or­ga­ni­zou uma insubmissão. 

O ba­ru­lho so­cial sub­se­quente foi tão imenso quanto im­pos­sí­vel de re­pro­du­zir por­que, en­quanto se er­guia o mo­vi­mento Nunca Mais, o mundo não iria de­ter-se e os pro­tes­tos iriam con­fluir com a opo­si­ção con­tra a guerra do Golfo. A so­li­da­ri­e­dade ex­te­rior che­gou atra­vés dum forte mo­vi­mento de vo­lun­tá­rias pron­tas a apa­nhar o fuel. No en­tanto, mui­tas vo­zes la­men­tá­mos tan­tos mi­nu­tos te­le­vi­si­vos a can­tar a fra­ter­ni­dade. Pior te­ria sido que fôs­se­mos fi­cando sós o mar, o barco e mais nós, mas o im­por­tante era pôr em pé de luta um país mal­tra­tado, com pés­si­mos go­ver­nan­tes que to­ma­vam de­ci­sões in­con­tor­ná­veis. A po­lí­tica não se faz com emo­ções, mas com aná­li­ses e, por­tanto, os acon­te­ci­men­tos não de­man­dam sim­ples so­lu­ções; es­tão aí, à nossa vista, e po­dem ser­vir para por­mos às aves­sas a his­tó­ria. O na­vio par­tido a ser en­go­lido pelo mar, as ca­deias so­li­dá­rias de mãos da­das, os uni­for­mes e mas­ca­ri­lhas, o ter­ror pe­tri­fi­cado nos olhos do ar­tista Man, aque­les pás­sa­ros com as asas im­preg­na­das de pe­tró­leo gra­va­ram-se nos nos­sos ar­qui­vos men­tais. Há qual­quer cousa de so­lene quando pes­soas que nem se co­nhe­cem par­ti­lham uma me­mó­ria co­le­tiva que se in­cor­pora a elas para sempre. 

O Prestige foi tra­tado como um epi­só­dio de guerra, cri­ava a mesma alarme, a mesma in­qui­e­tude, e foi ful­cral na to­mada de cons­ci­ên­cia po­lí­tica de mui­tas galegas. 

Enquanto a mo­bi­li­za­ção po­pu­lar lim­pava como po­dia as cos­tas, as eli­tes, que per­de­ram o con­trolo da si­tu­a­ção e re­a­gi­ram com ab­so­luta ne­gli­gên­cia, con­ten­ta­vam-se com emi­tir nor­mas de es­tilo: de­via evi­tar-se a ex­pres­são maré ne­gra; ape­nas eram man­chas dis­per­sas; uns fios com as­peto de plas­ti­lina. O ri­dí­culo das au­to­ri­da­des pa­re­cia apon­tar o co­meço do seu des­pres­tige. No en­tanto, o di­ri­gente que usara as tais ima­gens para pré-es­co­la­res, Rajoi, che­ga­ria a pre­si­dente do es­tado vo­tado de ma­neira ma­ciça. A der­rota do ver­tido viu-se acres­cen­tada por ou­tra: a dos ide­ais eman­ci­pa­do­res, a da con­fi­ança na so­ci­e­dade co­mum. Ainda es­ta­mos aí.

A res­posta po­pu­lar ar­ti­cu­lou-se atra­vés da pla­ta­forma Nunca Mais, cu­jos ma­ni­fes­tos re­cla­ma­vam res­pon­sa­bi­li­da­des meio-am­bi­en­tais, ju­di­ci­ais e po­lí­ti­cas. Mas o termo meio-am­bi­en­tal so­ava light; con­cei­tu­al­mente pouco de­fi­nido. Insistiam nas con­sequên­cias eco­nó­mi­cas do que cha­ma­vam de tra­gé­dia. Uma tra­gé­dia é um fio de des­gra­ças or­ques­trado a sós, por um ca­pri­cho fu­nesto do acaso; aquilo era re­sul­tado de não se apli­ca­rem le­gis­la­ções que proi­bis­sem as mer­ca­do­rias pe­ri­go­sas se apro­xi­mar das cos­tas. Como a Galiza ti­nha uma im­por­tante eco­no­mia pes­queira e um cres­cente se­tor tu­rís­tico, é claro que o ver­tido pre­ju­di­cava pos­tos de tra­ba­lho e ri­queza. Afetava a eco­no­mia, os cha­ma­dos de se­to­res pro­du­ti­vos. Mas, a eco­lo­gia es­tava pre­sente? Não se in­sis­tia na morte de or­ga­nis­mos vi­vos, nem no di­reito a ter­mos águas lim­pas e pai­sa­gens com que nos de­li­ciar, nem muito me­nos nos de­ve­res que te­mos re­la­ti­va­mente à na­tu­reza, no­me­a­da­mente o de a pre­ser­var­mos. Não se fa­lava do des­frute psi­co­ló­gico e afe­tivo do mar. Conformávamo-nos com jus­tiça res­tau­ra­tiva e com sub­ven­ções por zona ca­tas­tró­fica. O dis­curso eco­lo­gista nunca che­gou a abrir-se passo, não sendo por bo­cas iso­la­das, duma ma­neira or­ga­ni­zada e sis­te­má­tica. Ficamos des­pres­ti­gi­a­dos, no sen­tido de não ter­mos o Prestige à vista, por­que es­tava fun­dido e fe­liz­mente se­lado, di­ziam, e tam­bém no sen­tido de não de­sen­vol­ver­mos uma re­fle­xão pro­funda. Este país, onde a in­dus­tri­a­li­za­ção ti­nha che­gado tarde e mal, onde a cul­tura ru­ral es­tava ainda pre­sente, po­dia ter res­pon­dido a ex­pe­ri­men­tar al­guma via di­fe­rente do pro­du­ti­vismo ca­pi­ta­lista e ser van­guarda num novo re­la­ci­o­na­mento com a na­tu­reza. Chamamos o caso de ca­la­mi­dade, de ca­tás­trofe, de des­graça, como se não sou­bés­se­mos que es­ses ter­mos res­tam culpa aos cul­pa­dos. O Prestige pôde ter sido um mo­mento para criar maior co­e­são so­cial e bem-es­tar. Perdemos essa oportunidade. 

A so­li­da­ri­e­dade ex­te­rior che­gou atra­vés dum forte mo­vi­mento de vo­lun­tá­rias, mas mui­tas vo­zes la­men­tá­mos tan­tos mi­nu­tos te­le­vi­si­vos a can­tar a fra­ter­ni­dade quando o im­por­tante era pôr em pé de luta um país maltratado. 

Muitos dos cor­pús­cu­los fe­mi­nis­tas, eco­lo­gis­tas e in­de­pen­den­tis­tas que na Galiza fa­zem parte da al­ter­na­tiva ao po­der em ter­mos de po­lí­tica real sen­ti­ram que a ban­deira ga­lega so­bre fundo ne­gro on­de­ava com es­cas­sas ar­gu­men­ta­ções eco­ló­gi­cas e fo­ram evo­luindo para po­si­ci­o­na­men­tos des­cri­dos das or­ga­ni­za­ções. Esperavam que a ação po­lí­tica não se vin­cu­lasse só aos in­te­res­ses de gru­pos di­ver­sos, que os pro­ce­di­men­tos fos­sem mais par­ti­ci­pa­ti­vos e par­ti­lha­dos. Era uma crise sin­gu­lar: como se vá­rias dé­ca­das de apa­rente de­mo­cra­cia ti­ves­sem fra­guado al­ter­na­ti­vas tre­men­da­mente exi­gen­tes, ma­du­ras e com ca­pa­ci­dade para uma crí­tica rica em ma­ti­zes que en­con­trou as or­ga­ni­za­ções clás­si­cas de­sa­cau­te­la­das. Dalguma ma­neira, o Prestige foi o nosso 15M, oito anos an­tes. Contra a ideia de an­dar­mos atra­sa­das, tudo o que acon­tece em qual­quer mo­mento em Madrid, sem­pre tem um avanço na Galiza. Infelizmente, não con­se­gui­mos ren­di­bi­li­zar essa in­ten­si­dade po­lí­tica que em po­tên­cia temos.

josé ma­nuel casal

O Prestige não im­pli­cou uma vi­rada eco­ló­gica. Nem se­quer con­se­guiu in­te­grar a na­tu­reza no campo da ação po­lí­tica nem nos es­tu­dos ci­en­tí­fi­cos es­pe­ci­a­li­za­dos. Nos anos se­guin­tes o as­sunto foi pouco tra­tado do ponto de vista do pen­sa­mento e, cu­ri­o­sa­mente, as ci­ên­cias sa­li­en­ta­ram a in­crí­vel ca­pa­ci­dade de re­ge­ne­ra­ção de­mons­trada pelo mar, como se os tó­xi­cos se ti­ves­sem vo­la­ti­li­zado. Talvez fi­que ainda a pos­si­bi­li­dade de re­o­ri­en­tar, na lenta re­fle­xão das hu­ma­ni­da­des, aquele epi­só­dio para uma vi­são de mundo mais eco­cên­trica, para in­fluir na so­ci­e­dade e in­ci­dir na to­mada de de­ci­sões. Agora que o clima nos pre­o­cupa mais, agora que ju­ven­tude eu­ro­peia ar­vora no­vas men­sa­gens, agora que no mundo a ci­ên­cia pa­rece con­victa da ne­ces­si­dade de im­pri­mir­mos uma mu­dança, agora que o co­lapso ener­gé­tico as­soma a sua si­lhu­eta, o Prestige está ao nosso dis­por na me­mó­ria re­cente para não co­me­ter mais dis­pa­ra­tes. O pro­blema foi mal abor­dado, por parte das au­to­ri­da­des e, tam­bém, por parte da so­ci­e­dade ci­vil, que não con­se­guiu ar­mar-se em de­fesa de va­lo­res al­ter­na­ti­vos nem en­ce­nar na ação po­lí­tica e ética al­gu­mas sub­je­ti­vi­da­des al­ter­na­ti­vas. Falta é tempo. Sobram tó­xi­cos nas nos­sas cos­tas para nos co­lo­car em pé de guerra, para dar pres­tí­gio ao que foi uma nar­ra­tiva desprestigiada.

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