Provavelmente, um dos exercícios que me resultam mais gratos quando viajo é tentar captar a sintonia das cidades quando chego, ser consciente do espetáculo ao que (ainda) nom pertenço, do caminho em que ainda ando com passos desastrados.
A coreografia da cidade, claro, pede umha estreita observaçom, pede que fiquemos atónitas perante a sua dança: acho que muito poucas vezes ficamos já diante de nada atónitas. E assim, pede também observar com empatia os lugares que poderiam chegar a ser nossos, e portanto a ser nós (talvez por isso o primeiro que procuro em todas as cidades seja as suas livrarias). Entrar na cidade exige a humildade de umha convidada: os sapatos na entrada, o caminhar devagar, o silêncio. É ela quem tem que abrir a porta, quem tem que mostrar-nos a cozinha, quem nos mostra os corredores compridos, os quartos das crianças, o recanto livre na lareira. É provável que primeiro nos acheguemos tímidas, como nos achegamos ao torreiro as que nom sabemos bailar, que continuemos a olhar mais do que fazendo, que nos sintamos intrusas ao introduzir o pé. Pouco a pouco, se assim queremos, vamos encontrando também a nossa dança, os lugares dentro do lugar; passamos a fazer parte, sem querê-lo, da foliada imensa que é umha cidade em movimento. Podemos dizer, entom, que a cidade aceitou partilhar casa, que entramos nela com as botas cheias de lama; que se calhar, também é nossa.
Regresso a Compostela e pergunto-me o que fica das cidades quando se extermina o ritmo, quando já ninguém abre a porta da casa porque nom há casa, porque nengum lugar de passo é umha casa (assim como nengum ponto se apreende sem perseverância). porque ainda que fique vivenda em pé, a casa já é a casa de ninguém. O que fica quando já nengumha cidade soa a nada porque todas soam ao mesmo, como as sintonias natalícias dos centros comerciais.
Regresso a Compostela e pergunto-me o que fica das cidades quando se extermina o ritmo, quando já ninguém abre a porta da casa porque nom há casa
A cidade vibra a um tom porque provocamos nós esse vibrato com a nossa dança imperfeita de conjunto, com a nossa tristeza, por vezes, e o nosso entusiasmo outras, com essa forma de imitar as cousas das demais ao nosso jeito que confirma que algo já é inevitavelmente nosso: como fazemos, claro, com todas as genealogias. Assim os olhares foráneos contemplam o ritmo da cidade, às vezes, desde a barreira, outras com a vontade ardente de bailá-lo no agarrado.
A cidade é porque nós somos nela, porque decidimos aceitar a relaçom entre esse lugar que nos habita e como nós o habitamos: porque fazemos dela afetos, frustraçons, agoiros, esperanças. Porque som as suas habitantes, com as suas vidas oferecidas, as que armam a foliada, e assim apreendemos a cidade: com a paciência com a que se apreende qualquer dança; com a que se apreendem também os seus barulhos, os seus defeitos e as suas carências, que as tem. Porque queremos entrar no baile e lembrar o som aquele que lhe é ao baile único, porque nom há forma de copiar a ingenuidade de muitas vidas juntas que improvisam um foliom. Porque apenas se pode pertencer a um organismo vivo. Porque ninguém quer dançar na casa de ninguém.