A recente candidatura de Tanxugueiras a possíveis representantes espanholas na Eurovisom está destinada a tornar-se um episódio relevante na história das relaçons entre a Galiza e Espanha no início desta década —marcada, como na anterior, polo conflito nacional no interior do Estado. Apesar do clima de celebraçom identitária provocado pola intervençom do grupo no BenidormFest, é preciso dirigir um olhar crítico que aponte algumhas das suas possíveis consequências negativas.
A Eurovisom nasceu com o duplo objetivo de unir os países europeus e consolidar parte dos estados-naçom após a Segunda Guerra Mundial. Trata-se de um espetáculo deliberadamente nacionalista e nacionalizador. Por esta razom, devemos começar por aquele que é talvez o problema mais óbvio deste fenómeno Tanxugueiras: o da representaçom nacional. Considerando o apoio maciço e transversal à candidatura das pandeireteiras, parece que para umha enorme maioria da esfera pública galega nom é problema as artistas e inventários culturais galegos representarem a Espanha na Europa. O apoio popular à candidatura foi partilhado por umha maioria dos altos dirigentes políticos e dos dirigentes culturais do país, desde a presidência do governo ao principal partido da oposiçom, passando pela CRTVG, a RAG e umha longa lista de personalidades, instituiçons e associaçons. Todos estes sectores considerárom que, polo menos no contexto da Eurovisom, ser galego era umha forma legítima de ser espanhol. A ausência de debates públicos sobre as implicaçons deste consenso leva a concluir que a populaçom irá certamente interiorizar: que o duplo patriotismo galego-espanhol goza da aprovaçom entusiasta de todo o espectro político representado no parlamento galego. Pensar fora desse consenso é mais difícil hoje do que era ontem.
Seria necessário estudarmos como a esperança normalizadora e o aldraje constituem duas faces da mesma moeda
Para além da magnitude quantitativa da celebraçom, é importante ter em conta a sua dimensom qualitativa — que foi claramente hiperbólica. A possível vitória de Tanxugueiras foi imaginada como um evento nacional de primeira classe, mobilizando todos os tropos da ideologia da ‘normalizaçom’: como um antídoto para a ‘perda da língua’ e a baixa ‘autoestima’ nacional capaz de superar os tradicionais ‘preconceitos’ linguístico-culturais. Confirmada a vitória de Chanel, surgiu, porém, a acesa retórica da “aldraje”, que levou à convocaçom —finalmente abortada— de manifestaçons e ao pedido de comparecimento do presidente da RTVE no parlamento espanhol. Seria necessário estudarmos como estes dois sentimentos (esperança normalizadora e aldraje) constituem duas faces da mesma moeda, e como tendem a impedir análises mais eficazes. É mais urgente agora meditar sobre qual foi a aparência política que a Galiza projetou com essa reaçom massiva. Que impressom dá toda a institucionalidade política e cultural de um país ao depositar a sua autoimagem nom só na participaçom na Eurovisom, mas num festival destinado a escolher quem vai representar a Espanha na Eurovisom? É claro que nom é umha imagem de força. É a imagem de um sistema cultural deficiente que fai enormes esforços para aproveitar esta oportunidade. Isto é, com toda a probabilidade, o que somos. Mas admira que nom pretendamos ser outra cousa.
Tam relevante quanto questionarmos que a Galiza represente a Espanha é refletirmos sobre que Galiza representa que Espanha. No meio da vaga de entusiasmo que referim, houvo elementos evidentes da proposta de Tanxugueiras e da sua receçom espanhola que fôrom consensualmente ignorados. Nom foi relevado, por exemplo, o enquadramento ideológico despregado polas artistas em Espanha para ganharem as simpatias populares, marcado por um nacionalismo banal espanhol que ainda nos custa muito detetar. Por exemplo, quando perguntadas polo elDiario.es sobre o que a sua presença na Eurovisom significava para a Espanha, respondiam: “Representa a unidade e […] e dizer ‘as línguas existem, som preciosas e é normal que cada povo, cada comunidade autónoma que tenha a sua própria língua se orgulhe disso’; que possamos comunicar todos com um elo como o espanhol, mas ao mesmo tempo se respeite”.
No mesmo sentido, também nom se discute o facto de a única candidatura em língua diferente do espanhol ter de estar duplamente marcada: polo seu caráter folclórico, com todos os custos simbólicos associados; mas também polo compromisso explícito com cousas mal denominadas ‘co-oficiais’, o que levou as artistas a assumirem um papel de porta-vozes da pluralidade cultural espanhola. Ambos os requisitos constituem umha forma evidente de tokenizaçom, ou seja, umha concessom ritualizada de espaços às minorias para que o Estado possa exibir a sua pretensom ao multiculturalismo. Por que a populaçom galega, que soube denunciar o evidente pink-washing na vitória de Israel na Eurovisom 2018, é incapaz agora de detetá-lo em si mesma? Umha resposta muito sucinta é que ainda consideramos que o papel de minoria nacional que nos foi atribuído polo Estado é o melhor a que podemos aspirar. E isto, embora legítimo, é falso: nós podemos ser muito mais.
A atuaçom magistral das Tanxugueiras na Espanha provocou umha intensa vaga de sentimento patriótico na Galiza. É certo. Mas um balanço deve incluir também os custos
No mesmo sentido, nom deixamos de admirar o esquema súbito e generalizado da vaga repressiva e homogeneizadora experimentada polo Estado espanhol nos últimos anos; que é, precisamente, a sujeira que devia lavar a RTVE —um dos principais aparelhos de reproduçom sociopolítica do Estado— com o que a jornalista e investigadora Marta Roqueta soube ler como national-washing. A ofensiva contra a imersom linguística na Catalunha e os repetidos anúncios de um aumento da proeminência do espanhol na educaçom estatal som tam recentes que chega a ser chocante que nom tenham sido postos em relaçom com aquilo que estava a acontecer na televisom. A aplicaçom do 155 à Catalunha o o encarceramento de políticos e militantes independentistas de todas as naçons sem Estado constituem um pano de fundo tam sinistro que a celebraçom pública das “línguas cooficiais” em prime time devia produzir, no mínimo, perplexidade —a que sempre produz a hipocrisia. Porém, a julgarmos pola receçom maioritária do BenidormFest na Galiza, poderá haver quem pense que aquilo que estou a atestar nos “apanha longe”. A nossa incapacidade pública para colocar em relaçom ambos os eventos é a prova indesmentível da alta produtividade política do festival.
A atuaçom magistral das Tanxugueiras na Espanha provocou umha intensa vaga de sentimento patriótico na Galiza. É certo. Mas um balanço deve incluir também os custos e ajudar a pensar que é o que vai ficar depois. E, na verdade, as hipóteses unionistas saem claramente blindadas deste evento, como também é reforçada a estratégia do executivo de compensar as suas políticas homogeneizadoras com distinçons culturais. Isto nom devia preocupar apenas quem ocupemos posiçons independentistas, mas também qualquer um que esteja interessado polo bem da política e da cultura galegas. O reconhecimento pontual e ritualizado dos nossos artistas nom é o primeiro passo para a internacionalizaçom; é, polo contrário, umha última barreira de segurança para garantir que tudo continue como até agora. Sem se mover.