O bloqueio que o povo cubano leva sessenta anos a padecer paralisa o comércio e a entrada de insumos para o país, deteriora a economia e impede o seu desenvolvimento pleno e, durante anos, foi também capaz de isolar a ilha, deslocando‑a do concerto regional e dificultando enormemente as suas relaçons diplomáticas com outros países, especialmente após o desmembramento do campo socialista. O que o bloqueio nom conseguiu parar foi o vírus SARS-CoV‑2, que entrou proveniente da Europa e supera já, no momento de escrever estas linhas, 500 pessoas infetadas (15 mortes). O sistema de saúde cubano — reconhecido mundialmente como um dos mais eficazes — e a rápida resposta das autoridades para decretarem e fazerem efetivo o confinamento da populaçom impedírom um aumento descontrolado das cifras de afetaçom, em contraste com países onde a COVID-19 foi considerada como mais uma gripe com — é certo — umha taxa de contágio superior à normal. Mas isto, que em todo o caso descreve um padrom de atuaçom mais ou menos comum a todos os países com governos verdadeiramente progressistas, hábito de planificaçom e soberania para o fazer (China, Vietname, Cuba, Venezuela, etc.), nom explica toda a realidade. Porque, além do seu componente sanitário e técnico, a crise do coronavírus pom de relevo umha realidade geopolítica que convém conhecer e compreender — até porque as suas implicaçons vam muito além de Cuba.
Os 28 mil colaboradores da saúde que Cuba mantém em 59 países incluem missões em lugares abertamente hostis e noutros onde, nas condiçons atuais, é impossível conseguir umha declaraçom contra a política ingerencista dos Estados Unidos.
O primeiro a chamar a atençom é a capacidade do povo cubano para, em meio a um bloqueio económico de seis décadas, continuar a enviar polo mundo mais e mais equipas médicas. O que alguns governos imperialistas acusam cinicamente de ser «diplomacia de médicos» é, na realidade, umha prática de solidariedade que, é claro, pode ter um impacto no modo como outros países percebem a Revoluçom Cubana e eventualmente ganhar apoios contra o bloqueio, mas que sob nenhuma circunstância pode considerar-se como uma simples medida de soft-power com interesses puramente instrumentais. Os 28 mil colaboradores da saúde que Cuba mantém em 59 países incluem missões em lugares abertamente hostis e noutros onde, nas condiçons atuais, é impossível conseguir umha declaraçom contra a política ingerencista dos Estados Unidos. A eficácia da vintena de brigadas Henry Reeve mobilizadas só para travar o avanço da pandemia em lugares como a União Europeia — o outro grande pólo anti-cubano —, ficaria em evidência se do que se tratasse, no fundo, fosse de conseguir apoios para a Revoluçom. Ninguém nega que Cuba tenha interesse em normalizar a sua situaçom no mundo, inclusive entre quem nom partilha o caminho que começou a andar em 1959. Mas pensar que todo tem a ver com forçar esse reconhecimento seria puro cinismo e umha estupidez.
No outro lado da balança: o recrudescimento do embargo justamente em meio a esta crise sanitária e política. O último episódio é o bloqueio da venda de ventiladores à ilha depois de os dous provedores do Sistema Nacional de Saúde cubano terem sido comprados por uma companhia estadunidense com sede no Illinois. Estes ataques, que nom som por acaso, contrastam com a negativa da Casa Branca a realizar qualquer movimento para proteger a sua própria populaçom, além do chamamento geral a se armar. Mas, contrariamente àquilo que se pode ouvir nestes dias, a questom nom responde à mesquinhez de Donald Trump, como antes à natureza mesma de um sistema doído que acredita de maneira fanática no darwinismo social e, acima de tudo, à necessidade das elites norte-americanas de travar, como for, a apariçom do modelo cubano como umha alternativa viável e mesmo desejável. Afinal, a tentaçom de comparar um sistema que pom no centro a preservaçom da vida e a garantia de condiçons dignas para todos e outro baseado no laissez faire — traduzível nas crises por salve-se quem puder — é grande de mais. Sobretodo quando a comparaçom se estabelece em relaçom à possibilidade de sobrevivência depender ou nom do seguro médico que for capaz de pagar, num momento em que milhares de pessoas morrem cada dia e milhons a perderem os seus trabalhos pola crise económica que esta pandemia contribuiu para adiantar. Nom é, portanto, umha questom moral, como ainda, umha sobredose de realpolitik.
Afinal, a tentaçom de comparar um sistema que pom no centro a preservaçom da vida e a garantia de condiçons dignas para todos e outro baseado no laissez faire — traduzível nas crises por salve-se quem puder — é grande de mais.
Por último, com os Estados Unidos a perderem a sua posiçom hegemónica — lentamente, mas, polos vistos, de maneira inexorável— é possível que estes ataques tenham menor impacto do que teriam noutras circunstâncias, em tempos passados. Os apoios às políticas ingerencistas da Casa Branca e ao conceito mesmo de pax americana som cada vez menores e mais simbólicos do que efetivos. Mesmo apoios como o do Estado espanhol, negando-se a receber a ajuda oferecida pola Havana, podem sair caros aos seus aliados se a notícia chegar a ter o relevo que merece, e todas as partes som cientes disto. Ademais, esta crise de apoios dá-se num cenário muito concreto, que é o da disputa interimperialista dos velhos aliados da NATO — que continua viva e com manobras militares programadas diante da fronteira russa, mas cuja coesom interna está evidentemente quebrada. Mesmo assim, esta quebra ou a progressiva retirada de tropas e esforços estadunidenses do vespeiro árabe, persa e afegám, de onde saem evidentemente derrotadas, nom significa o começo do fim do imperialismo, até porque o imperialismo nom é umha questom de vontades, mas de possibilidades e exigências das elites capitalistas, que se importam pouco com este tipo de problemas e só reparam na relaçom custo-benefício. Polo momento, o que se consegue enxergar é o traslado do cenário bélico de volta para o quintal traseiro imediato — a América do Sul e o Caribe. E aí, Cuba, que nos últimos tempos recuperou perfil e peso político real, tem todo a dizer. Ainda mais se, como parece, as medidas adotadas contra a crise do covid-19 continuam a funcionar e a Revoluçom consegue sair com bem desta prova. Se o conseguir, será mais umha prova da ineficácia do bloqueio. Numha leitura custo-benefício, apenas isso poderá fazer com que a situaçom comece a mudar.