Segundo tudo indica, houve na Nossa Terra um tipo de cães que guardavam a casa e as propriedades, ajudavam a tornar as vacas e mesmo acompanhavam os marinheiros nas suas fainas. Estes cães dormiam no palheiro e esta sua casinha deu-lhes o nome. Com a passagem do tempo, o termo “palheiro”, seguindo a tradição de desprezar o que é nosso, passou a ser sinónimo daqueles que os portugueses denominam “rafeiros” e os brasileiros “vira-latas”, quer dizer, dos cães sem raça.
Antes de falarmos do cão-de-palheiro, debrucemo-nos no conceito de raça, qu e tal e como o entendemos hoje, foi inventado polos britânicos a meados do século XIX com a criação do Kennel Club. As raças caninas antigas não eram as raças puras atuais, fruto duma criação seletiva endogámica conforme a rígidos estalões, quer dizer, de acordo com “standards cinológicos” que determinam quais características morfológicas e comportamentais deve possuir um cão de raça. Anteriormente, o que havia eram, mais exatamente, agrupamentos raciais ou, melhor, ecótipos raciais onde os cães, tal como acontecia com o resto de animais domesticados, eram selecionados, fundamentalmente, com critérios de funcionalidade. E foi assim que surgiram os coelheiros, os perdigueiros, os mastins, os pastores… diferentes tipologias caninas que se têm diversificado em razão da sua adaptação aos ambientes locais e aos caprichos da genética. Mas há que sublinhar que nestes ecótipos raciais predominava a variabilidade, quer morfológica, quer de caráter, sobre a homogeneidade.
As raças modernas também têm muito a ver com o nacionalismo. O conceito do estado-nação, surgido a cavalo dos séculos XVIII e XIX, procura para a sua legitimação diversos e variados símbolos. As raças de animais domésticos e, nomeadamente, as raças caninas tornaram-se num desses poderosos instrumentos que dão naturalidade à nação. São parte do nacionalismo banal, esse quotidiano e inconsciente teorizado por Michael Billig. Poremos um exemplo significativo. A Alemanha, unificada em 1871, também quis ter uma raça canina emblemática e assim um militar chamado Max von Stephanitz, usando cães pastores locais de Vurtemberga, Turíngia e Baviera, “inventou” em finais do século XIX o pastor-alemão. O seu sucesso foi enorme, difundindo-se primeiro entre as famílias aristocráticas e burguesas, para depois se converter na raça canina mais popular de todo o século XX. Na Galiza, a partir de 1936, a sua expansão vê-se favorecida polas relações fraternais entre o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães e a Falange Espanhola, mas serão as décadas de sessenta e setenta as da grande invasão, não ficando, praticamente, aldeia galega sem o seu pastor-alemão…
Em 2001, impulsionado por subvenções da União Europeia, o Governo Galego publica os estalões oficiais de quatro supostas raças caninas autóctones, o podengo-galego, o perdigueiro-galego, o quisquelo e o cão-de-palheiro. As duas primeiras correspondiam-se (na origem) com as portuguesas podengo-português-meão e perdigueiro-português, o que provocou a irritação dos criadores lusos. A última com um cão pastor assombrosamente similar aos pastores-alemães, mas aos primeiros pastores-alemães, um bocado diferentes dos modernos cães de exposição, muito mais ligeiros… como a própria Blondi, a cadela de Adolf Hitler.
É possível que na Galiza existisse um pastor, alobado e de orelhas eretas, como existiu em muitos outros territórios da Europa?
É possível que na Galiza existisse um pastor, alobado e de orelhas eretas, como existiu em muitos outros territórios da Europa? É. De facto, achamos no castelo de Santo Antão, na Crunha, um sarcófago gótico do séc. XIV onde se encontra a mais antiga representação dum cão deste tipo na Península. Porém, somos muitos a pensar que estes “palheiros da Junta” são mormente filhos mestiços dos pastores-alemães que chegaram massivamente ao nosso país desde os anos quarenta. Não foi feito ainda qualquer estudo genético que demonstre o carácter genuíno da raça. Nem esta foi ainda reconhecida por qualquer instituição cinológica estatal ou internacional. Aliás o nome, em todo o caso, deveria ser pastor-galego, porque o autêntico palheiro era um cão bem diferente…
Toda a vida se falou no cão-de-palheiro. Castelão dedicou-lhe um dos seus desenhos em Cousas da Vida. Para Cordo Boulhosa, o magnate petroleiro português de origem galega, era a lembrança infantil que tinha ficado com mais força na sua memória e foi assim que mandou erigir-lhe um monumento na aldeia familiar de Caritel, em Ponte Caldelas (uma escultura de J. Luís Penado hoje, infelizmente, roubada). O cantautor Bibiano, pola sua parte, serviu-se dele para criticar dissimuladamente a ditadura franquista. Menciona‑o também Celso Emílio num dos seus poemas. Mas o problema foi que quase ninguém se ocupou de o estudar, nem de o proteger.
à falta de fontes documentais, temos comunicações pessoais e todos os testemunhos definem uns traços comuns: Cães de porte médio, robustos, com um certo ar amastinado e de orelhas pendentes
Em 1993, o veterinário espanhol C. Contera descreve a raça para “La Revista del Perro”. Em 2008, J. Manuel Bouzo no artigo “O cão-de-Castro-Laboreiro” cita‑o como “o mastim do país”, na sintética descrição de M. Ferreño, um dos seus informantes. Dous veterinários galegos, Jorge Díaz e Ezequiel Pérez, na década de noventa pensaram em fazer a sua tese de licenciatura sobre estes cães, mas o projeto viu-se truncado e as conclusões das suas investigações de campo nunca chegaram a publicar-se. Ora, à falta de fontes documentais, temos comunicações pessoais e todos os testemunhos definem uns traços comuns: Cães de porte médio, robustos, com um certo ar amastinado e de orelhas pendentes… nunca pontiagudas! A pelagem rija e espessa podia apresentar variedade de cores, mas abundavam os amarelos. Fiéis e com um marcado instinto de guarda, dotados duma grande rusticidade e próximos doutras raças como o cão-de-Castro-Laboreiro ou o cão-majorero. Desconhecemos se algures poderiam restar exemplares com certo grau de pureza, mas sabemos que esta tipologia de cães se conservava ainda, na década de noventa, em amplas regiões do sul de Ourense e da Dorsal Galega.
Enfim, já se está a ver que o palheiro não tinha lá muitas parecenças com o pastor-alemão, o principal causante da sua mais que provável extinção, mas conta-lhe tu às crianças que o Pai Natal não é o que a Coca Cola desenhou ou convence tu a gentinha deste Impaís que o autêntico cão-de-palheiro não é o do anúncio do Gadis.