Periódico galego de informaçom crítica

O cão de palheiro que foi

por
ne­rea v. lameiro

Segundo tudo in­dica, houve na Nossa Terra um tipo de cães que guar­da­vam a casa e as pro­pri­e­da­des, aju­da­vam a tor­nar as va­cas e mesmo acom­pa­nha­vam os ma­ri­nhei­ros nas suas fai­nas. Estes cães dor­miam no pa­lheiro e esta sua ca­si­nha deu-lhes o nome. Com a pas­sa­gem do tempo, o termo “pa­lheiro”, se­guindo a tra­di­ção de des­pre­zar o que é nosso, pas­sou a ser si­nó­nimo da­que­les que os por­tu­gue­ses de­no­mi­nam “ra­fei­ros” e os bra­si­lei­ros “vira-la­tas”, quer di­zer, dos cães sem raça.
Antes de fa­lar­mos do cão-de-pa­lheiro, de­bru­cemo-nos no con­ceito de raça, qu e tal e como o en­ten­de­mos hoje, foi in­ven­tado po­los bri­tâ­ni­cos a me­a­dos do sé­culo XIX com a cri­a­ção do Kennel Club. As ra­ças ca­ni­nas an­ti­gas não eram as ra­ças pu­ras atu­ais, fruto duma cri­a­ção se­le­tiva en­do­gá­mica con­forme a rí­gi­dos es­ta­lões, quer di­zer, de acordo com “stan­dards ci­no­ló­gi­cos” que de­ter­mi­nam quais ca­rac­te­rís­ti­cas mor­fo­ló­gi­cas e com­por­ta­men­tais deve pos­suir um cão de raça. Anteriormente, o que ha­via eram, mais exa­ta­mente, agru­pa­men­tos ra­ci­ais ou, me­lhor, ecó­ti­pos ra­ci­ais onde os cães, tal como acon­te­cia com o resto de ani­mais do­mes­ti­ca­dos, eram se­le­ci­o­na­dos, fun­da­men­tal­mente, com cri­té­rios de fun­ci­o­na­li­dade. E foi as­sim que sur­gi­ram os co­e­lhei­ros, os per­di­guei­ros, os mas­tins, os pas­to­res… di­fe­ren­tes ti­po­lo­gias ca­ni­nas que se têm di­ver­si­fi­cado em ra­zão da sua adap­ta­ção aos am­bi­en­tes lo­cais e aos ca­pri­chos da ge­né­tica. Mas há que su­bli­nhar que nes­tes ecó­ti­pos ra­ci­ais pre­do­mi­nava a va­ri­a­bi­li­dade, quer mor­fo­ló­gica, quer de ca­rá­ter, so­bre a homogeneidade.

ne­rea v. lameiro

As ra­ças mo­der­nas tam­bém têm muito a ver com o na­ci­o­na­lismo. O con­ceito do es­tado-na­ção, sur­gido a ca­valo dos sé­cu­los XVIII e XIX, pro­cura para a sua le­gi­ti­ma­ção di­ver­sos e va­ri­a­dos sím­bo­los. As ra­ças de ani­mais do­més­ti­cos e, no­me­a­da­mente, as ra­ças ca­ni­nas tor­na­ram-se num des­ses po­de­ro­sos ins­tru­men­tos que dão na­tu­ra­li­dade à na­ção. São parte do na­ci­o­na­lismo ba­nal, esse quo­ti­di­ano e in­cons­ci­ente te­o­ri­zado por Michael Billig. Poremos um exem­plo sig­ni­fi­ca­tivo. A Alemanha, uni­fi­cada em 1871, tam­bém quis ter uma raça ca­nina em­ble­má­tica e as­sim um mi­li­tar cha­mado Max von Stephanitz, usando cães pas­to­res lo­cais de Vurtemberga, Turíngia e Baviera, “in­ven­tou” em fi­nais do sé­culo XIX o pas­tor-ale­mão. O seu su­cesso foi enorme, di­fun­dindo-se pri­meiro en­tre as fa­mí­lias aris­to­crá­ti­cas e bur­gue­sas, para de­pois se con­ver­ter na raça ca­nina mais po­pu­lar de todo o sé­culo XX. Na Galiza, a par­tir de 1936, a sua ex­pan­são vê-se fa­vo­re­cida po­las re­la­ções fra­ter­nais en­tre o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães e a Falange Espanhola, mas se­rão as dé­ca­das de ses­senta e se­tenta as da grande in­va­são, não fi­cando, pra­ti­ca­mente, al­deia ga­lega sem o seu pastor-alemão…
Em 2001, im­pul­si­o­nado por sub­ven­ções da União Europeia, o Governo Galego pu­blica os es­ta­lões ofi­ci­ais de qua­tro su­pos­tas ra­ças ca­ni­nas au­tóc­to­nes, o po­dengo-ga­lego, o per­di­gueiro-ga­lego, o quis­quelo e o cão-de-pa­lheiro. As duas pri­mei­ras cor­res­pon­diam-se (na ori­gem) com as por­tu­gue­sas po­dengo-por­tu­guês-meão e per­di­gueiro-por­tu­guês, o que pro­vo­cou a ir­ri­ta­ção dos cri­a­do­res lu­sos. A úl­tima com um cão pas­tor as­som­bro­sa­mente si­mi­lar aos pas­to­res-ale­mães, mas aos pri­mei­ros pas­to­res-ale­mães, um bo­cado di­fe­ren­tes dos mo­der­nos cães de ex­po­si­ção, muito mais li­gei­ros… como a pró­pria Blondi, a ca­dela de Adolf Hitler.

É possível que na Galiza existisse um pastor, alobado e de orelhas eretas, como existiu em muitos outros territórios da Europa?

É pos­sí­vel que na Galiza exis­tisse um pas­tor, alo­bado e de ore­lhas ere­tas, como exis­tiu em mui­tos ou­tros ter­ri­tó­rios da Europa? É. De facto, acha­mos no cas­telo de Santo Antão, na Crunha, um sar­có­fago gó­tico do séc. XIV onde se en­con­tra a mais an­tiga re­pre­sen­ta­ção dum cão deste tipo na Península. Porém, so­mos mui­tos a pen­sar que es­tes “pa­lhei­ros da Junta” são mor­mente fi­lhos mes­ti­ços dos pas­to­res-ale­mães que che­ga­ram mas­si­va­mente ao nosso país desde os anos qua­renta. Não foi feito ainda qual­quer es­tudo ge­né­tico que de­mons­tre o ca­rác­ter ge­nuíno da raça. Nem esta foi ainda re­co­nhe­cida por qual­quer ins­ti­tui­ção ci­no­ló­gica es­ta­tal ou in­ter­na­ci­o­nal. Aliás o nome, em todo o caso, de­ve­ria ser pas­tor-ga­lego, por­que o au­tên­tico pa­lheiro era um cão bem diferente…

carla trin­dade

Toda a vida se fa­lou no cão-de-pa­lheiro. Castelão de­di­cou-lhe um dos seus de­se­nhos em Cousas da Vida. Para Cordo Boulhosa, o mag­nate pe­tro­leiro por­tu­guês de ori­gem ga­lega, era a lem­brança in­fan­til que ti­nha fi­cado com mais força na sua me­mó­ria e foi as­sim que man­dou eri­gir-lhe um mo­nu­mento na al­deia fa­mi­liar de Caritel, em Ponte Caldelas (uma es­cul­tura de J. Luís Penado hoje, in­fe­liz­mente, rou­bada). O can­tau­tor Bibiano, pola sua parte, ser­viu-se dele para cri­ti­car dis­si­mu­la­da­mente a di­ta­dura fran­quista. Menciona‑o tam­bém Celso Emílio num dos seus po­e­mas. Mas o pro­blema foi que quase nin­guém se ocu­pou de o es­tu­dar, nem de o proteger.

à falta de fontes documentais, temos comunicações pessoais e todos os testemunhos definem uns traços comuns: Cães de porte médio, robustos, com um certo ar amastinado e de orelhas pendentes

Em 1993, o ve­te­ri­ná­rio es­pa­nhol C. Contera des­creve a raça para “La Revista del Perro”. Em 2008, J. Manuel Bouzo no ar­tigo “O cão-de-Castro-Laboreiro” cita‑o como “o mas­tim do país”, na sin­té­tica des­cri­ção de M. Ferreño, um dos seus in­for­man­tes. Dous ve­te­ri­ná­rios ga­le­gos, Jorge Díaz e Ezequiel Pérez, na dé­cada de no­venta pen­sa­ram em fa­zer a sua tese de li­cen­ci­a­tura so­bre es­tes cães, mas o pro­jeto viu-se trun­cado e as con­clu­sões das suas in­ves­ti­ga­ções de campo nunca che­ga­ram a pu­bli­car-se. Ora, à falta de fon­tes do­cu­men­tais, te­mos co­mu­ni­ca­ções pes­so­ais e to­dos os tes­te­mu­nhos de­fi­nem uns tra­ços co­muns: Cães de porte mé­dio, ro­bus­tos, com um certo ar amas­ti­nado e de ore­lhas pen­den­tes… nunca pon­ti­a­gu­das! A pe­la­gem rija e es­pessa po­dia apre­sen­tar va­ri­e­dade de co­res, mas abun­da­vam os ama­re­los. Fiéis e com um mar­cado ins­tinto de guarda, do­ta­dos duma grande rus­ti­ci­dade e pró­xi­mos dou­tras ra­ças como o cão-de-Castro-Laboreiro ou o cão-ma­jo­rero. Desconhecemos se al­gu­res po­de­riam res­tar exem­pla­res com certo grau de pu­reza, mas sa­be­mos que esta ti­po­lo­gia de cães se con­ser­vava ainda, na dé­cada de no­venta, em am­plas re­giões do sul de Ourense e da Dorsal Galega.
Enfim, já se está a ver que o pa­lheiro não ti­nha lá mui­tas pa­re­cen­ças com o pas­tor-ale­mão, o prin­ci­pal cau­sante da sua mais que pro­vá­vel ex­tin­ção, mas conta-lhe tu às cri­an­ças que o Pai Natal não é o que a Coca Cola de­se­nhou ou con­vence tu a gen­ti­nha deste Impaís que o au­tên­tico cão-de-pa­lheiro não é o do anún­cio do Gadis.

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