Som as sete e meia da tarde quando Silvia Federici entra no salom com um sorriso e umha energia que surpreendem. Ninguém pensaria que o dia anterior chegou à Galiza num voo de dez horas, nem que esta mesma manhá inaugurou a Semana Galega da Filosofia em Ponte Vedra com um relatório sobre as mulheres e a reconstruçom do comum. Federici chega intrigada após escuitar a palestra da tarde a que acaba de assistir. “Era português?”, pergunta Federici sobre o conferencista. Quando se acomoda na poltrona, inclina-se ligeiramente cara diante e olha fixamente aos olhos, algo que nom deixará de fazer nos seguintes quarenta minutos.
A ideia do comum marca profundamente o seu trabalho. Como configura este conceito?
Silvia Federici: O comum nom se pode pensar de forma pura porque estamos inundadas de relaçons capitalistas, portanto, pensamos no comum numha situaçom de transiçom. Isto pode-se fazer com projetos limitados, como as hortas urbanas ou a banca do tempo. Assim e todo resulta mui importante ir mais aló de projetos assim. Cumpre pensar o comum como umha perspetiva, umha criaçom de espaços decisionais coletivos. Pode-se pensar no comum como um princípio que nos ajuda a conformar todas as luitas, como por exemplo a da vivenda. Da perspetiva do comum, nom se trata só de conseguir um teito nas também de criar um espaço de açom coletiva que nos permita juntar-nos com outras pessoas. O comum une o que o capitalismo divide.
Essa via que abre a perspetiva do comum acolheria, por exemplo, a luita das naçons sem Estado?
S.F.: Claro, poderia ser umha das situaçons para ir além do Estado! O Estado é opressom, capitalizaçom e justificaçom da exploraçom.
Entom, a finalidade seria que nom nos figesse falta o Estado porque viveríamos da autogestom?
S.F.: O conceito do comum é o da autodeterminaçom e autogoverno, e isso significa nom- Estado.
As mulheres tenhem um papel protagonista na resistência e luita polo comum. Deve o feminismo tê-lo em conta para combater o patriarcado?
S.F.: Nom fago diferenças entre luita de mulheres e feminismo, sempre que seja de classe. Nom falo do feminismo captado polo Estado ou que busca a paridade com os homens!
Se pensamos o comum como a capacidade de subverter as divisons sociais e as hierarquias, entom presume-se umha perspetiva anticapitalista e antipatriarcal. Existe umha luita de mulheres em comunidades indígenas que buscam despatriarcalizar o comum indígena sem que leve à privatizaçom da terra. O comunitário tem que englobar todo! O uso e herdança da terra é de todas e a assembleia deve estar conformada por todas as pessoas. As luitas contra a lógica capitalista e patriarcal som inseparáveis.
Essa perspetiva anticapitalista também se encontra nas suas reflexons sobre os cuidados. Defende que os cuidados nom som só afetos mas que também produzem mao de obra para o capitalismo. Como desenvolve esta ideia?
S.F.: Nos anos setenta vimos que os beneficiários reais do trabalho reprodutivo que fazíamos as mulheres nom eram os nossos familiares mas os patrons. A classe capitalista, na sua totalidade, é a que beneficia dos trabalhos que fam as mulheres porque do contrário teriam que criar umhas infraestruturas que permitissem que as pessoas puidessem ir trabalhar. Entom, o capitalismo pode reproduzir a força de trabalho a um preço mui baixo com a desvalorizaçom do trabalho das mulheres, umha exploraçom que serve à acumulaçom do capital.
“Somos parte da reproduçom da manutençom desta máquina de capital e temos o poder de subvertê-la. Termos a consciência do nosso papel como mulheres proletárias constituiu um grande empoderamento”
Esta reflexom foi muito importante. Primeiro, fomos capazes de ver que rejeitar o trabalho doméstico nom é um crime contra a nossa família. Quando compreendes que através do trabalho doméstico se disciplinam as nenas e nenos, se produzem trabalhadoras, abres um olhar que che permite rejeitá-lo sem o sentimento de culpa. Também vês que este trabalho é a parte central da acumulaçom de riqueza. Sempre che dixérom que eras a dependente quando és o eixo central do sistema. Isto dá força e confiança, porque podes luitar a partir do teu trabalho, da tua exploraçom e nom através da dos homens. Somos parte da reproduçom da manutençom desta máquina de capital e temos o poder de subvertê-la. Termos a consciência do nosso papel como mulheres proletárias constituiu um grande empoderamento.
As trabalhadoras do lar assalariadas ainda tenhem menos direitos que as demais trabalhadoras dentro do estado espanhol. Em que medida nos está a influir a todas as mulheres, que desenvolvemos esses trabalhos de forma nom remunerada, e que relaçom guarda com a divisom internacional do trabalho?
S.F.: Quando as mulheres de Europa e dos Estados Unidos rejeitárom fazer o trabalho doméstico e fôrom assalariadas fora da casa, colocou-se o problema de quem ia fazer esse trabalho de cuidado do lar. Parte da reestruturaçom da economia global foi a do trabalho reprodutivo com a importaçom de mulheres migrantes empobrecidas. Para que umha mulher receba umha remuneraçom polo trabalho doméstico, tem que o realizar fora da sua casa e, ainda assim, o trabalho reprodutivo acha-se sempre em más condiçons e desvalorizado.
O trabalho doméstico nom remunerado nom se eliminou mas todo o contrário, cresceu. O governo recortou boa parte dos serviços polo que o trabalho de reproduçom é maior. No hospital dam-che a alta muito cedo polo que recebes esses cuidados na casa, por exemplo.
“O trabalho doméstico nom remunerado nom se eliminou senom todo o contrário, cresceu. O governo recortou boa parte dos serviços polo que o trabalho de reproduçom é maior”
Existe umha naturalizaçom da institucionalizaçom do casal heterossexual monógamo?
S.F.: A heteronormatividade é um dos aspetos da divisom sexual do trabalho. Se deves reproduzir o trabalhador assalariado, claro que deve ser umha família heterossexual. O capitalismo começa com o ataque à comunidade das mulheres.
Sustenta que a violência contra as mulheres está a aumentar no mundo. Qual é a razom?
S.F.: É um discurso mui longo! — Ri -. Estamos a armar umha website sobre o incremento da violência contra as mulheres e a nova forma de acumulaçom capitalista. A violência contra as mulheres nom é umha novidade, mas é um elemento contínuo na organizaçom da família nuclear debaixo da proteçom do Estado. Agora também vemos umha violência nova relacionada com a acumulaçom originária, umha nova caça às bruxas. Falamos de assassinatos como os de Berta Cáceres ou Marielle Franco, também se matam mulheres em áreas zapatistas pola sua resistência. Rita Segato diz que assassinar mulheres é enviar umha mensagem à populaçom. As mulheres estám mais presentes na rua, emigram, recebem a violência da polícia fronteiriça. A nova condiçom do trabalho das mulheres também as coloca numha maior vulnerabilidade porque antes serviam um homem e agora muitos.
“Agora também vemos umha violência nova relacionada com a acumulaçom originária, umha nova caça às bruxas. Falamos de assassinatos como os de Berta Cáceres ou Marielle Franco”
A violência individual dos homens penaliza a autonomia, nom te deixam ir embora. Todo isto relaciona-se com a militarizaçom da vida e o aumento do número de pessoas, a maioria homens, que trabalham com a violência: exércitos formais ou informais, guardas de segurança, soldados… A violência é impune a olhos do Estado polo que legitima essa violência individual e cria modelos mui agressivos da masculinidade.
É importante ver que a violência nom agride todas as mulheres da mesma forma, mas também ter em conta os factores comuns e que, na realidade, somos testemunhas dum incremento da violência seja no número de violaçons ou no aumento da brutalidade. Nom só se mata como também se tortura. É umha violência que fai pedagogia da crueldade, umha violência que nom só é utilitária mas também expressiva já que envia umha mensagem para aterrar as mulheres e a populaçom do lugar.
Denuncia o uso perverso e degradante da imagem das mulheres, como é o das bruxas. Que deveríamos fazer para dignificar a sua figura, sobretodo na Galiza onde as meigas tenhem muita importância?
S.F.: Com a equipa de Traficantes de Sueños fomos visitar lugares em que houvo caças às bruxas e atopamos um comércio obsceno. Vendem-se bruxas com vassoira, os dentes saídos para fora, olhos satânicos… um horror! Visitamos lugares como Zugarramurdi onde houvo umha perseguiçom de mulheres em começos do século XVII.
Assenta a ideia de que a caça às bruxas é a expressom da luita antiga entre a superstiçom e a razom. Nom! Falamos das mulheres como as de Zugarramurdi! No verao figemos um chamamento aos coletivos para dizer basta e haverá umha seguinte reuniom perto do 8 de março de 2019 em Zugarramurdi. Pedimos umha visom real do que foi a caça às bruxas porque isto tem impacto sobre o nosso presente. As nenas e os nenos vam com a sua bruxinha… nom! Perpetua umha imagem misógina e obscena sobre as mulheres. Como se pode apresentar umha matança de mulheres como algo folclórico? Como?!
Face ao incremento da violência contra as mulheres, que papel jogou este 8 de março?
‘Ni una menos, ni una más’, foi promovido polas mulheres que protestavam contra os feminicídios na Argentina. Este 8 de março foi mui importante, um “basta já” desta violência, umha prova da força das mulheres.
“Seria fatal que o movimento feminista voltasse a desinvestir o seu poder social para o dar ao Estado e espero isso nom aconteça. A nova geraçom feminista é mais forte, mais combativa."
Para mim, o mais importante é ver como coagula esse poder, como se traduz em práticas, em horizontes de luita, estruturas, espaços… A presença das mulheres nas ruas demonstrou que som capazes de mobilizar-se, e agora o importante é defini-lo, mobilizar-se para quê.
Existe um risco de que diante deste auge se procure institucionalizar o movimento feminista?
S.F.: Espero que nom! O movimento feminista está vacinado polo que aconteceu no passado, o que ocorreu nos anos 80 ensinou-nos a evitar a institucionalizaçom. Seria fatal que voltasse a desinvestir o seu poder social para o dar ao Estado e espero que isso que nom aconteça. A nova geraçom feminista é mais forte, mais combativa.
É otimista, nom é?
S.F.: Se nom, nom se fai nada! Claro que som otimista!