O pensamento marxista historicamente inspirou o surgimento de vários movimentos sociais e políticos de esquerda. Nas décadas de 60 e 70, alimentou ideologicamente os movimentos revolucionários de libertação nacional do chamado Terceiro Mundo, o que conhecemos como pensamento anticolonial. Uma combinação dessas duas correntes foi o que definiu o caminho de grande parte do pensamento de esquerda contemporâneo na Galiza.
Embora tenha passado muito tempo e as transformações vivenciadas pelo país sejam numerosas, várias premissas desses quadros teóricos acompanharam as sucessivas iterações da esquerda soberanista no desenho de suas estratégias. Especificamente, a forma de entender o Estado, excessivamente maniqueísta e funcionalista, julgo que continua tendo uma influência significativa sobre a esquerda galega.
Em primeiro lugar, um elemento consubstancial ao marxismo clássico tem sido entender o Estado como uma ‘coisa’ susceptível de ser possuída, e cuja orientação geral pode ser controlada por aqueles que conseguirem chegar ao seu topo. Desta perspetiva, a posse de um Estado próprio permitiria o seu uso. A sua ausência, segue-se, obrigaria ao seu padecimento. No entanto, longe de ser um objeto neutro sujeito a potencialmente diversos fins, o Estado em questão será sempre um Estado ‘capitalista’, na medida em que está obrigado a facilitar a acumulação de capital, manter o valor da moeda própria, continuar facilitando a exploração do trabalho assalariado, criar condições favoráveis para os capitais estrangeiros… Galego ou espanhol, esses são os seus compromissos fundamentais. Alterar a sua escala geográfica, por si só, revelar-se‑á incapaz de alterar a sua natureza ‘capitalista’.
Relacionar-se com o Estado apenas como um agente repressor perde perspetiva sobre as suas fissuras internas. Não participar nelas permitirá que aqueles a quem nos opomos o façam
Em segundo lugar, o ênfase no antagonismo entre Galiza e Espanha tem limitado a compreensão das múltiplas escalas geográficas do Estado que nos governa. Tão Estado são os mais de trezentos municípios galegos e suas quatro diputaciones, quanto as regulamentações decididas em Madrid, Bruxelas, Estrasburgo ou Frankfurt. Em consequência, um imaginário político que divide as forças de esquerda que trabalham em e a partir da Galiza entre um polo ‘espanhol’ e outro nitidamente ‘galego’ prejudica as possibilidades de ação concertada por parte das forças políticas contrárias ao regime de dominação atual, ao mesmo tempo que desvaloriza a participação em escalas territoriais diferentes da sonhada para um futuro estado próprio. Onde quer que se decida sobre as nossas condições laborais, nossas infraestruturas ou nossa educação, é obrigatório estar.
Finalmente, existe uma marcada tendência em considerar o Estado primariamente como repressivo. Como Borxa Colmenero esclareceu em um artigo recente em Clara Corbelhe, a função eminentemente repressiva e controladora do Estado, seja próprio ou estrangeiro, não elimina sua função ativamente criadora de identidades, consensos e subjetividades. Ele não apenas cria a ‘espanholidade’, mas também, embora de uma forma que possamos rejeitar, a ‘galeguidade’. Por exemplo, nas eleições galegas de 2016, dentro do eleitorado que se autoidentificava como ‘nacionalista’, a força mais votada foi o PPdG. A partir do Estado, constrói-se uma ideia de galeguidade que pode não ser do nosso agrado, mas que funciona.
Em resumo, ao nos relacionarmos com o Estado como se fosse apenas um agente repressor, perdemos a perspectiva sobre suas fissuras internas. Não participar delas resultará naqueles a quem legitimamente nos opomos assumindo esse papel. Não se pode deixar nenhum espaço sem disputar.