Em tanto que presença constante do que de “natural” há em cada pessoa, o corpo sempre foi o suporte privilegiado em que as ideologias reacionárias inscreveram (incorporaram) as suas sociodiceias, essas narrações míticas de autojustificação dos seus privilégios sociais. Exaltando um determinado modo de entender o desporto, os fascismos pretendiam mostrar a suposta evidência das hierarquias “naturais” que defendiam, num exercício de darwinismo social que escondia a exploração de género, de classe e racial, numa imaginada meritocracia biológica que expressaria o corpo. Ainda, estas ideologias criaram o discurso que contrapõe a atividade “útil” do exercício físico às futilidades culturais da esquerda.
O último refúgio de classe
Coincidindo com uma forte crise na passagem do século XIX ao XX, as elites culturais alemãs viram ameaçado o seu tradicional statu quo pola democratização do acesso ao ensino superior. Boa parte da produção dos chamados “revolucionários conservadores” foi uma reação contra essa ameaça aos seus privilégios; através de alambicadas fórmulas metafísicas estes filósofos não faziam outra cousa que expressar o seu mal-estar e resistência perante a plebeização da academia (1). Agora que a cultura parecia estar ao alcance de qualquer um –não se esqueça a epopeia autoeducativa do movimento obreiro da altura‑, a aristocracia cultural foi elaborando a ideia do corpo como última evidencia da sua superioridade. Nietzsche, nos aforismos do seu O que falta aos alemães, expressou-no com mais rotundidade do que ninguém: “Tudo o que é bom é herança e não há que enganar-se aqui: o cultivar meros sentimentos ou ideias não é nada ou quase nada, ante tudo há que persuadir o corpo. O severo mantimento de gestos significativos escolhidos, o o brigar-se a viver como homens que não se deixam castrar é suficiente para tornar-se seleto, e em duas ou três gerações terá ficado interiorizado”; “A cultura deve começar no lugar devido, não na alma (funesta superstição de clérigos), o lugar preciso é o corpo, o gesto, a dieta, a fisiologia, o resto é consequência”.
Em certa maneira Nietzsche estava no certo: a hexis corporal, em tanto que diferença social incorporada, lei social feita corpo, agrupa as disposições mais profundas do habitus e polo tanto as mais difíceis de modificar, que continuam a funcionar mesmo durante muito tempo depois de que as condições que as engendraram tenham desaparecido; eis o exemplo caricaturesco do Fidalgo depauperado que mantém o seu porte aristocrático e maneiras esquisitas à mesa de uma taberna miserável ou, igualmente, a do novo-rico incapaz de adquirir os hábitos corporais legítimos da burguesia e cuja gestualidade camponesa indissimulável delata todo o tempo a sua origem social. No corpo, pois, atrincheira-se melhor do que em nenhum outro lugar a antiga classe do desclassado, permitindo-lhe continuar a ver o seu anterior privilégio como um direito natural, exatamente da mesma maneira que um cavalo sempre será melhor do que um burro.
No corpo, pois, atrincheira-se melhor do que em nenhum outro lugar a antiga classe do desclassado, permitindo-lhe continuar a ver o seu anterior privilégio como um direito natural, exatamente da mesma maneira que um cavalo sempre será melhor do que um burro.
A regeneração anatómica da sociedade
Como é bem sabido as ideias dos revolucionários conservadores foram usadas polo nazismo para a sua ideologia, em um contexto epistémico (de Gall à frenologia, passando polo neomalthusianismo) em que era crença generalizada a existência de uma correlação entre os aspetos físicos e morais das pessoas, e portanto a possibilidade de uma reforma biológica-social que, em última instância, deu cobertura teórica ao terror eugenésico. Mas seria um erro atribuir tal barbárie exclusivamente ao fascismo; as próprias ferrolanas Aurora Rodríguez Carballeira e a sua filha Hildegart, junto com muitos outros intelectuais republicanos, lutavam pola “eliminação das vidas sem valor polo gás ciclão” como método de transformação social, brutal utopia materializada depois polo III Reich (2).
Porém esta foi só a cara oculta da ideologia corporal fascista, que ao mesmo tempo exibia a plena luz do dia e por todos os meios a outra cara da mesma medalha: a exaltação desportiva dos “corpos úteis”. As Olimpíadas, de Berlim, mesmo com o preto Jesse Owens a desluzir a festa, foram um evento propagandístico sem comparação, onde a apresentação espetacular do corpo ário tornava completamente prescindível a palavra para difundir a ideologia nazista, cuja superioridade aparecia tão natural como a do atleta que corre mais do que os outros. A chave deste sucesso foi o inegável talento cinematográfico de Leni Riefenstahl, quem para o seu impressionante trabalho de estetização e divinização do corpo contou com os meios da maior das superproduções (3). As imagens dos atletas no estádio ou na vila olímpica, sem nenhum tabu à hora de mostrar o corpo, constituíram o mais potente dos discursos que o nazismo podia imaginar; a beleza corporal fascista colonizava todas as mentes. Nos seus filmes de ficção Riefenstahl aprofundara na épica de alta montanha –Zizek analisou-nos como fascistas‑, para rematar nos seus últimos anos surpreendendo ao mundo com a publicação de um fascinante álbum fotográfico, Afrika, onde a artista germana, já idosa, retratava em toda a sua plenitude a beleza física dos povos pretos do Nilo, e especial o Nuba. A apologeta do nazismo estava a desconstruir-se para redimir-se da mão dos pretos? Ou a sua ideologia do corpo continuava intata, projetando-se agora em um novo objeto?
Desporto na ‘Sección Femenina’
De entre todas as correntes que desputavam a hegemonia do primeiro franquismo, os “revolucionários” da Falange eram os mais predispostos a importarem a ideologia corporal do nazismo, com o seu imaginário (o ar livre, as montanhas nevadas) e a sua estética (os cartazes de guerra com soldados-atletas). A importação hispana desta ideologia é especialmente interessante no âmbito da Sección Femenina, não só polo conflito com a visão católica do corpo da mulher, senão também por ver como lidavam com o paradoxo de promover uma atividade, o desporto feminino, que ainda que só fosse involuntariamente encerrava em si um questionamento dos roles tradicionais de género, com a brutal lógica patriarcal do fascismo corporal.
No seu excelente Usos amorosos de la postguerra española –que seguirei neste apartado‑, Carmen Martin Gaite assinalava que “a ginásia inscrevia-se na luta do limpo contra o sujo, do são contra o malsão. A afeção ao ar livre e ao sol era um antídoto contra o ambiente impuro de bares, cinemas e tertúlias (4)”, isto é, os espaços culturais da socialização esquerdista. As falangistas também justificavam a sua atividade física como uma prática que, sobretudo, ajudava à higiene da sua função fundamental no patriarcado: a maternidade, posto que, como diziam na revista Medina, assim obtinha-se a mulher “limpa moralmente que o Estado quer para a mãe dos seus homens do porvir” (5). Igualmente, María Pilar Morales defendia o desporto como potenciador de todos os atributos da feminidade tradicional: “A ginásia e o desporto adequados exercem uma ação bem-feitora sobre a mulher (…), ajudam-lhe a atingir a plenitude da sua graça e harmonia física; desenvolvem a sua agilidade e força; despertam nela o sentido da disciplina e esclarecem a sua inteligência, constituindo à vez um entretimento alegre, são e honesto. E fam-na mais apta para a sua missão maternal (6)”.
Em efeito, a atividade física das falangistas acarretava o problema da vestimenta; lembre-se que a aparição da bicicleta já produzira em Europa uma revolução colateral, ao libertar as mulheres burguesas do corsé e proporcionar-lhes uma justificação ergonómica para o uso das calças
Contudo, esta circunscrição do desporto feminino aos roles patriarcais não parecia convencer à Igreja, e Eijo Garay, bispo de Madrid-Alcalá, atacará em 1941: “O desenfreio desonesto não necessita certamente de grandes estímulos para desenvolver-se. Antes bem, revela-se com pujança em qualquer circunstância favorável, mas a juventude costuma acrescentar-se, sob pretexto de lícitos exercícios desportivos e ginásticos, até mascarar um neopaganismo de incalculáveis consequências” (7). Perante tal apocalipse Pilar Primo de Rivera defendia-se calmando a obsessiva suspeita sexual dos católicos: “o perigo que pudesse haver para as mulheres de que se afeiçoem a apresentarem-se diante do público com uns fatos que não se acomodam quiçá às normas da moral cristã, ou a cousa um pouco pagã que tem em si de dar-lhe demasiada importância à beleza do corpo, está salvada com uma vigilância constante sobre a indumentária” (8). Em efeito, a atividade física das falangistas acarretava o problema da vestimenta; lembre-se que a aparição da bicicleta já produzira em Europa uma revolução colateral, ao libertar as mulheres burguesas do corsé e proporcionar-lhes uma justificação ergonómica para o uso das calças que, como bem sabiam os reacionários, também iriam supo ruma maior liberdade de movimentos políticos. Este problema resolveu-se com a invenção do “pololo” (7), uma espécie de calças muito folgadas, de certo ar mourisco, que foram a particular contribuição falangista a essa extensa história de prendas de vestir e complementos pensados para proteger as mulheres das maldades do seu próprio corpo.
A disciplina nacional-católica dos corpos
Se atendemos às manifestações de filosofia desportiva espontânea de muita gente de hoje, tópicos como “os rapazes enquanto estão no desporto não estão em cousas piores”, comprovaremos como esta ideologia corporal continua a ressoar com força.
NOTAS
1. Veja-se: P. Bourdieu, L’onthologie politique de
2. Sobre este pasado incômodo da esquerda hispana escreveu Guillermo Rendueles em El manuscrito encontrado en Cienpozuelos, Madrid, Morata, 2017 [1989].
3. Veja-se o documentário de Jean-Christophe Rosé, Les champions de Hitler, 2016.
4. Carmen Martín Gaite, Usos amorosos de la postguerra española, Barcelona, Círculo de Lectores, 1988 [1987], p. 67.
5. Medina, 10/7/1941.
6. María del Pilar Morales, Mujeres, Madrid, 1944, pp. 55–56.
7. Ecclesia, 15/12/1941.
8. Pilar Primo de Rivera, “Discursos, circulares y escritos”, cit. em: Historias del franquismo, Sedmay, 1977, fascículo 42, p. 235.
9. Carmen Martín Gaite, op. cit., pp. 68–69.
10. Medina, 31/5/1942.
11. Michel Foucault, Vigilar y castigar, Madrid, Siglo XXI, 1994, p. 224.