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O outro Mediterrâneo: migração e saúde mental no Sul da Europa 

por
ope­narms

Falta de rotas seguras, inferno burocrático, marginalização e precariedade para as migrantes: algumas das principais consequências da política de migração da União Europeia, com um impacto particular na sua fronteira sul, são letais para as pessoas que atravessam o Mediterrâneo a partir de vários pontos. 

O Tratado de Amesterdão (1997) con­fe­riu à União Europeia com­pe­tên­cias em ma­té­ria de mi­gra­ção e pas­sou a fa­zer parte do seu qua­dro ju­rí­dico. A UE não é uma or­ga­ni­za­ção po­lí­tica in­ter­na­ci­o­nal cujo de­sen­vol­vi­mento es­teja con­cluído; pelo con­trá­rio, os Estados que a in­te­gram rei­vin­di­cam a sua so­be­ra­nia, pelo que as com­pe­tên­cias não es­tão cla­ra­mente de­li­mi­ta­das e há lu­tas para as en­qua­drar den­tro ou fora das fron­tei­ras es­ta­tais. Do mesmo modo, as po­lí­ti­cas de mi­gra­ção são uma res­pon­sa­bi­li­dade par­ti­lhada en­tre a UE e os Estados: exis­tem re­gras de­ter­mi­na­das pela co­mu­ni­dade eu­ro­peia, mas são os di­fe­ren­tes mem­bros que de­ci­dem au­to­no­ma­mente so­bre as au­to­ri­za­ções de residência. 

Por seu lado, a le­gis­la­ção da UE é firme na sua opo­si­ção à imi­gra­ção ile­gal: a che­gada de pes­soal es­tran­geiro deve ser efec­tu­ada atra­vés de ca­nais le­gais e se­gu­ros, con­tro­la­dos pe­los Estados-Membros. No en­tanto, a maior parte dos paí­ses de ori­gem não dis­põe de me­ca­nis­mos bu­ro­crá­ti­cos de pe­dido de re­fú­gio ou de re­si­dên­cia, pelo que es­tes ca­nais le­gais sim­ples­mente não exis­tem. A po­lí­tica de ad­mis­são de mi­gran­tes dos Estados torna-se en­tão de­pen­dente de uma va­riá­vel prin­ci­pal: a si­tu­a­ção do mer­cado de trabalho. 

Na União Europeia são os di­fe­ren­tes Estados mem­bros que de­ci­dem au­to­no­ma­mente so­bre as au­to­ri­za­ções de residência

Um exem­plo atual é a Itália, onde Giorgia Meloni, a pre­si­dente pós-fas­cista do país, que ga­nhou as elei­ções com a sua re­tó­rica anti-imi­gra­ção, está agora a re­nun­ciar a es­tes pos­tu­la­dos de­pois de ter fa­lado com os em­pre­ga­do­res ita­li­a­nos, que es­ti­mam que pre­ci­sam de 500.000 pes­soas para em­pre­gos que não es­tão a ser preenchidos. 

Em ge­ral, as leis de imi­gra­ção con­de­nam as mi­gran­tes à pre­ca­ri­e­dade, pelo me­nos du­rante um pri­meiro pe­ríodo de tempo após a sua che­gada ao país eu­ro­peu. Desta forma, dis­ci­plina e mar­gi­na­liza os mi­gran­tes para se con­for­ma­rem com as ne­ces­si­da­des do mer­cado de tra­ba­lho de cada Estado, no qual ocu­pam o es­trato mais baixo em ter­mos de di­rei­tos la­bo­rais, du­reza e tem­po­ra­ri­e­dade. A ou­tra al­ter­na­tiva é mi­grar com um certo ca­pi­tal para po­der su­por­tar al­guns anos de ir­re­gu­la­ri­dade ad­mi­nis­tra­tiva, mesmo na in­cer­teza que isso im­plica, sem po­der re­gres­sar ao país de ori­gem, uma op­ção dis­po­ní­vel para muito pou­cos. Em to­dos os ca­sos, as di­fi­cul­da­des im­pos­tas pe­los Estados obri­gam as po­pu­la­ções mi­gran­tes a ar­ris­car a vida numa vi­a­gem pe­ri­gosa, ge­ral­mente por mar. 

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Em con­versa com Novas da Galiza, a psi­có­loga clí­nica e da saúde Mireia Vila, es­pe­ci­a­li­zada em vi­o­lên­cia fa­mi­liar e no tra­ta­mento de mi­gran­tes na área me­tro­po­li­tana da ci­dade de Barcelona, afirma a exis­tên­cia de uma re­la­ção cau­sal en­tre a si­tu­a­ção psi­co­ló­gica ge­ral dos mi­gran­tes e as po­lí­ti­cas es­ta­be­le­ci­das pelo qua­dro ju­rí­dico eu­ro­peu e pe­los Estados. Embora cada in­di­ví­duo te­nha a sua his­tó­ria pes­soal e exis­tam mui­tas ca­suís­ti­cas di­fe­ren­tes que le­vam uma pes­soa a mi­grar, existe um qua­dro des­cri­tivo no qual se en­qua­dra uma grande parte das pes­soas que che­gam à fron­teira sul da União Europeia, prin­ci­pal­mente Espanha, Itália e Grécia. 

Em pri­meiro lu­gar, as prin­ci­pais vias de che­gada são a ter­res­tre e a ma­rí­tima. A via aé­rea é me­nos co­mum, de­vido à ne­ces­si­dade de so­li­ci­tar a pro­te­ção in­ter­na­ci­o­nal ime­di­a­ta­mente após a en­trada no ter­ri­tó­rio como re­fu­gi­ado ou, na sua falta, de ob­ter um visto no país de ori­gem, o que im­plica a exis­tên­cia de de­ter­mi­na­dos re­cur­sos eco­nó­mi­cos que mui­tos não pos­suem e é, na mai­o­ria dos ca­sos, uni­di­re­ci­o­nal (os ci­da­dãos eu­ro­peus não ne­ces­si­tam nor­mal­mente de visto para vi­a­jar para os paí­ses de onde pro­vém a maior parte dos mi­gran­tes). A pro­te­ção in­ter­na­ci­o­nal tem pro­ce­di­men­tos de de­ter­mi­na­ção muito rá­pi­dos, que po­dem re­sul­tar na re­cusa do es­ta­tuto de re­fu­gi­ado, uma vez que o re­que­rente deve pro­var que está a fu­gir de uma si­tu­a­ção de con­flito re­co­nhe­cida. Por exem­plo, uma pes­soa de ori­gem ma­gre­bina (ofi­ci­al­mente, Marrocos, Argélia ou Tunísia) não terá esse es­ta­tuto re­co­nhe­cido; a mai­o­ria mi­gra por ra­zões eco­nó­mi­cas, a me­nos que haja ca­sos es­pe­cí­fi­cos de per­se­gui­ção de­vido à iden­ti­dade ou ori­en­ta­ção sexual. 

De acordo com Vila, em ge­ral, as pes­soas mi­gran­tes têm um per­fil mas­cu­lino, en­tre os 18 e os 35 anos, mai­o­ri­ta­ri­a­mente de ori­gem afri­cana, em­bora exis­tam al­guns ca­sos de mu­lhe­res de ori­gem la­tino-ame­ri­cana com uma his­tó­ria an­te­rior de vi­o­lên­cia de gé­nero ou que fo­ram ex­pos­tas ao trá­fico. Quanto ao es­ta­tuto so­ci­o­e­co­nó­mico, de­pende muito do mo­tivo da fuga e do país ou re­gião donde pro­vêm: “mui­tos dos paí­ses de onde re­ce­be­mos a maior po­pu­la­ção na Europa são en­ten­di­dos como paí­ses po­bres ou sub­de­sen­vol­vi­dos do nosso ponto de vista, mas al­gu­mas das pes­soas que vêm, por exem­plo, da Somália, per­ten­cem a fa­mí­lias abas­ta­das que fo­gem do jiha­dismo, por­que afi­nal os ter­ro­ris­tas ten­tam che­gar às pes­soas com di­nheiro para as co­a­gir e ter acesso às suas ri­que­zas e bens. Quando re­cu­sam, fo­gem, e este é um per­fil de re­fu­gi­ado que mui­tas ve­zes não te­mos em conta”, afirma. O es­ta­tuto de re­fu­gi­ado “não im­plica a pro­cura de me­lho­res con­di­ções ma­te­ri­ais. É pre­ciso pro­var que existe um pe­rigo real para a vida”. 

A pro­te­ção in­ter­na­ci­o­nal tem pro­ce­di­men­tos de de­ter­mi­na­ção muito rá­pi­dos, que po­dem re­sul­tar na re­cusa do es­ta­tuto de re­fu­gi­ado, uma vez que o re­que­rente deve pro­var que está a fu­gir de umha si­tu­a­ção de con­flito reconhecida

As pa­ci­en­tes com quem tra­tou apre­sen­tam um qua­dro de stress pós-trau­má­tico e de luto mi­gra­tó­rio, de­pois de te­rem dei­xado as suas fa­mí­lias para trás e de se en­con­tra­rem num país des­co­nhe­cido, tanto a ní­vel so­cial como cul­tu­ral e lin­guís­tico. Esta di­fe­rença en­tre “o que a fa­mí­lia es­pera do país de ori­gem e o que este lhe pode re­al­mente tra­zer, por­que o que en­con­tra­ram não era o que es­pe­ra­vam, cria gran­des pro­ble­mas fa­mi­li­a­res. Por exem­plo, em ter­mos de re­cur­sos eco­nó­mi­cos, mui­tos es­pe­ram che­gar à Europa e en­con­trar um em­prego fa­cil­mente, e com isso aju­dar a sus­ten­tar as suas fa­mí­lias, mas a re­a­li­dade é que quando che­gam, de­vido a li­mi­ta­ções bu­ro­crá­ti­cas, é muito di­fí­cil en­con­trar um em­prego re­gu­la­men­tado que lhes per­mita pou­par di­nheiro su­fi­ci­ente para o po­de­rem en­viar para a sua família”. 

No caso do Estado es­pa­nhol, es­tas li­mi­ta­ções re­flec­tem-se na Ley de Extranjería, que não per­mite a re­gu­la­ri­za­ção atra­vés da fi­gura ju­rí­dica do en­rai­za­mento so­cial até três anos de re­si­dên­cia com­pro­vada no país, atra­vés do re­gisto cen­si­tá­rio, um di­reito que nem sem­pre é ga­ran­tido. A este res­peito, Vila re­lata as di­fi­cul­da­des que os mi­gran­tes en­fren­tam para en­trar no sis­tema de­vido ao atual qua­dro le­gis­la­tivo, que con­si­dera de­ver ser re­for­mado, a co­me­çar pela apro­va­ção da Iniciativa Legislativa Popular Regularización Ya.  

A im­pos­si­bi­li­dade de acesso ao sis­tema e, por­tanto, de sub­sis­tên­cia, atra­vés da vin­cu­la­ção da au­to­ri­za­ção de re­si­dên­cia ao tra­ba­lho, “faz com que es­tas pes­soas caiam na si­tu­a­ção de sem-abrigo, au­men­tando a clí­nica, uma vez que es­tar na rua as ex­põe a de­ter­mi­na­das si­tu­a­ções de vi­o­lên­cia, a que se junta a fa­ci­li­dade com que po­dem cair no con­sumo de subs­tân­cias para su­por­tar o frio, a fome, bem como a pos­si­bi­li­dade de so­fre­rem agres­sões fí­si­cas. Dentro do pró­prio pro­cesso mi­gra­tó­rio, por exem­plo, para che­gar à Argélia, a Marrocos, à Líbia ou à Turquia, ao pas­sar por cer­tos paí­ses afri­ca­nos, já exis­tem si­tu­a­ções muito pe­ri­go­sas. Podem ser de­ti­dos, quer pela po­lí­cia deste úl­timo país an­tes de che­ga­rem à Europa, quer por má­fias, con­trair do­en­ças, fome… Tudo isto ali­menta os pró­prios trau­mas da pes­soa, já ini­ci­a­dos no país de ori­gem, e que agra­vam o qua­dro psi­quiá­trico e afec­tam o seu bem-es­tar emocional”. 

De acordo com o seu tes­te­mu­nho, a po­pu­la­ção mi­grante apre­senta mui­tas per­tur­ba­ções do hu­mor, tanto an­si­e­dade como depressão.A isto há que acres­cen­tar que, mui­tas ve­zes, no país de ori­gem, a fi­gura do psi­có­logo ou do psi­qui­a­tra não existe como tal ou está car­re­gada de es­tigma, o que di­fi­culta muito a li­ga­ção te­ra­pêu­tica e a acei­ta­ção dos con­se­lhos dos pro­fis­si­o­nais. Quando se trata de per­ce­ber a cau­sa­li­dade das coi­sas, ten­tar in­ter­vir sem per­ce­ber esse back­ground in­ca­pa­cita-nos en­quanto profissionais”. 

“A po­pu­la­ção mi­grante apre­senta mui­tas per­tur­ba­ções do hu­mor, tanto an­si­e­dade como de­pres­são. Muitas ve­zes, no país de ori­gem, a fi­gura do psi­có­logo ou do psi­qui­a­tra não existe como tal ou está car­re­gada de estigma”

A fu­tura in­clu­são das po­pu­la­ções mi­gran­tes na UE e nos paí­ses do Sul en­volve dois cam­pos de ba­ta­lha, o so­cial e o político/jurídico. Miereia Vila con­si­dera que “de­ve­mos ten­tar ter cons­ci­ên­cia so­cial e ten­tar mu­dar os pen­sa­men­tos que mui­tas ve­zes nos le­vam a pre­jul­gar a pró­pria mi­gra­ção e a cair em cli­chés que aca­bam por fa­ci­li­tar que mui­tas des­tas pes­soas se sin­tam des­lo­ca­das ou que exis­tam gue­tos. Como so­ci­e­dade, de­ve­mos con­si­de­rar que de­ve­mos to­mar me­di­das con­cre­tas para aju­dar es­tas pes­soas a in­te­gra­rem-se, e a pró­pria lei deve fa­ci­li­tar isso, por­que neste mo­mento ape­nas im­pede ou atrasa o acesso des­tas pes­soas ao mer­cado de tra­ba­lho ou a co­ber­tura de ne­ces­si­da­des bá­si­cas como a saúde ou o re­gisto, que per­mite o acesso à ajuda”. 

A sa­tis­fa­ção das ne­ces­si­da­des bá­si­cas e dos di­rei­tos das mi­gran­tes deve ser ga­ran­tida a ní­vel le­gal, o que exige uma mu­dança no qua­dro re­gu­la­men­tar eu­ro­peu que passa por uma re­vi­são e mo­der­ni­za­ção das pri­o­ri­da­des mi­gra­tó­rias, de forma a criar vias de acesso se­gu­ras e ga­ran­tir a sua in­te­gra­ção no sis­tema dos paí­ses de chegada. 

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