A localização geográfica do Egipto confere-lhe um papel crucial no genocídio aplicado pelo Estado de Israel ao povo palestiniano: a passagem de Rafah permite o trânsito entre a Palestina e o Egipto sem prévio atravessamento das fronteiras israelitas. Qual é, então, a razão para a inação do Egipto?
Por mais que a história narrada pelo ocidente, pelos meios de comunicação tradicionais, pelas elites políticas e pelas tradições ideológicas tentem transmitir o contrário, especialmente desde o 11 de setembro de 2001, o mundo árabe não é monolítico. É um conjunto de países muito diversos, unidos por uma língua comum cheia de variantes dialetais, desempenhando um papel crucial na transmissão de outra das identidades fundamentais na maioria dos países árabes: o islão.
Ao contrário de outras religiões, a língua árabe está estreitamente ligada à divulgação das palavras que Allah (Deus em árabe) transmitiu ao profeta Muhammad. Portanto, no estudo das relações internacionais, ao denominar esta região, os países que a compõem são descritos como árabe-muçulmanos.
Por definição, o mundo árabe abrange os países que falam a língua árabe, deixando de fora atores tão relevantes como a Turquia ou o Irão, e incluindo diversos países da África Subsaariana, como Mauritânia ou Somália. No entanto, existem dinâmicas políticas, linguísticas e religiosas que se refletem na designação mais comum, Região MENA (pelas siglas em inglês Middle East North Africa: Médio Oriente e Norte da África).
O país considerado mais representativo e central do mundo árabe é o Egipto, não apenas por ser o mais populoso e densamente povoado, com 103 milhões de habitantes, mas também por constituir o primeiro contato do mundo árabe com o imperialismo europeu
O país considerado mais representativo e central do mundo árabe é o Egipto, não apenas por ser o mais populoso e densamente povoado, com 103 milhões de habitantes, mas também por constituir o primeiro contato do mundo árabe com o imperialismo europeu, marcado pelo choque entre oriente e ocidente com a invasão de Napoleão em 1798.
Desde o século XVIII, os impérios francês, britânico e otomano lutaram pelo controlo colonial do canal egípcio de Suez, um ponto de grande valor comercial e geoestratégico. Mesmo após a constituição do Egipto como monarquia parlamentar em 1922, o canal continuou sob domínio britânico.
No século XX, o Egipto se desenvolve como uma nação herdeira de uma das civilizações mais antigas do mundo, cuja união se configura através do Nilo, da identidade árabe e do islamismo. O Cairo é a sede da Liga Árabe desde sua fundação em 1945, e o país se consolida como centro cultural do mundo árabe. Isso resulta de um processo histórico de migração de intelectuais, principalmente vindos de territórios do Oriente Próximo, ainda sob protetorado ou colonização de regimes europeus, para o Cairo e Alexandria, favorecendo a criação de uma indústria editorial, jornalística e audiovisual importante, promovendo a exportação da cultura egípcia para o restante dos países árabes.
Após a Segunda Guerra Mundial, um novo mundo bipolar se configura, enfraquecendo significativamente os poderes coloniais tradicionais, principalmente o Reino Unido e a França. No Egipto, forma-se um bloco nacional-popular centrado em sindicatos e movimentos nacionalistas de esquerda, aliados aos Irmãos Muçulmanos, um dos movimentos políticos e religiosos mais importantes da história recente do Médio Oriente, surgido precisamente no país. O apoio dos Irmãos Muçulmanos ao projeto revolucionário de libertação nacional é vacilante, enfraquecendo o bloco diante da correlação de forças da aliança entre a monarquia governante e o Reino Unido. Historicamente, os Irmãos Muçulmanos centraram seu projeto na fusão entre islamismo e política, sendo mais aceitos durante a época em países que começavam a surgir, como a Arábia Saudita, enquanto no Egipto predominavam os eixos ideológicos da tradição ocidental, nacionalismo e comunismo.
Em 1952, o militar Jamal Abdel Nasser assume o poder por meio de um golpe de estado, cuja principal demanda é a independência real do Império Britânico, ainda controlando o Canal de Suez. Com a nacionalização realizada pelo presidente em 1956, França, Reino Unido e Israel declaram guerra ao Egipto, mas os Estados Unidos intervêm para conter a agressão, marcando um ponto de inflexão na ruptura com a antiga ordem colonial europeia e no surgimento de um novo mundo bipolar liderado pelos EUA e pela União Soviética. No entanto, este não será o último conflito do Egipto com o bloco ocidental, pois em 1967, a Guerra dos Seis Dias termina com a anexação da península do Sinai, adjacente às atuais fronteiras israelenses e à Faixa de Gaza, pelo Estado de Israel em sua expansão. Também é anexado um território que hoje continua em disputa, as Colinas de Golã, adjacentes ao Líbano e à Síria, que Israel reivindica como próprias e que atualmente estão sendo alvo de bombardeios sionistas. O controle do Sinai será devolvido ao Estado egípcio após a mediação dos EUA nos Acordos de Camp David em 1978 entre Egipto e Israel.
Nasser torna-se assim um líder carismático, cuja aposta no socialismo pan-arabista e na busca de um equilíbrio na distribuição de riqueza e poder, tanto em seu país quanto no resto do mundo, o transforma em um ícone do mundo árabe e dos chamados “países não alinhados” ou “terceiro mundo”, que começam a surgir com os processos de descolonização.
Nasser torna-se um líder carismático, cuja aposta no socialismo pan-arabista e na busca de um equilíbrio na distribuição de riqueza e poder, tanto em seu país quanto no resto do mundo, o transforma em um ícone do mundo árabe e dos chamados “países não alinhados”
A figura de Nasser gera uma visão muito positiva do exército como ator político de mudança na sociedade egípcia, até os dias de hoje. Essa cultura militarista explica o apoio inicial ao atual regime liderado pelo ex-militar Al-Sisi, líder do golpe de estado contra a eleição democrática dos Irmãos Muçulmanos em 2013, dois anos após a Primavera Árabe na Praça Tahrir do Cairo. Atualmente, o Egipto é um país autoritário com mais de 40.000 presos políticos, segundo estimativas de organizações de direitos humanos como a Amnistia Internacional, a Front Line Defender ou a Human Rights Watch.
O Egipto, de costas viradas para a Palestina
O Estado egípcio prefere não intervir no conflito palestino, através da abertura do posto de Rafah, uma fronteira não limítrofe com Israel. Apesar da limpeza étnica em curso em Gaza, o regime político autocrático liderado por Sisi prefere preservar seus interesses econômicos com o bloco ocidental. Isso ocorre mesmo quando a população egípcia tem na memória a guerra de 1967 com seu vizinho israelense pelo controle da península do Sinai, que foi anexada na época e posteriormente devolvida pelo Estado judeu ao Egipto.
O que Al-Sisi subestima é o poder de mobilização do povo egípcio, maioritariamente favorável à causa palestina, que todos os dias se dirige à fronteira com ajuda humanitária à espera de uma abertura real do posto, e não a conta-gotas, simultaneamente à intenção de evitar uma nova Nakba em direção ao deserto do Sinai.
O governo egípcio, respaldado pelo seu caráter militar e pelo respeito que os egípcios têm pelo seu exército, uma sociologia herdada da era nasserista, continua a não respeitar o legado do seu líder contemporâneo mais carismático e celebrado: o pan-arabismo, essa união de povos árabes contra o colonialismo que parece cada vez mais esquecida.