
Os telejornais deste verão seco e caloroso são um bom exemplo do efeitistas, inconexas e pouco informativas que resultam as notícias. O conhecimento fundamenta-se em relações, não em dados, mas a imprensa não convida nem sequer para ligar umas informações com as outras. Por exemplo, nestes dias estivais de 2022 está-se a dar com tom triunfal a notícia do recorde “histórico” de turistas a visitarem Galiza, para logo falar com urgência e preocupação da escassez de água que sofre o país, e que faz prever um outono igualmente “histórico”, mas por seco.
É sabido que os números vermelhos dão conta de uma relação negativa entre ingressos e despesas, mas no que respeita à água os média só falam da falta de chuvas. Os excessos de consumo, que explicam muitos dos problemas a que nos enfrentamos hoje, som um tabu nas principais redações. Mas não é banal que algumas zonas turísticas multipliquem por 5 ou até por 10 a sua pressão demográfica nos meses de verão: a olho, aventuraria-me a afirmar que em Combarro ou em São Genjo consome-se em Julho e Agosto a mesma quantidade de água que os seus habitantes necessitam para o resto do ano. O turismo deixa dinheiro, sim, mas a chuva não se pode comprar.
As notícias também não aprofundam nas histórias que há por trás das imagens. Nestes dias informam de como o baixo nível de água dos encoros está a deixar à vista muitas das aldeias que o Estado expropriou e destruiu nas décadas de 50 e 60 do século passado. No telejornal falam do aspeto curioso e até espetacular do fenómeno, agachando o drama nacional que subjaz. E é que essas aldeias arrasadas para alimentar de eletricidade a indústria simbolizam à perfeição a relação da Galiza e Espanha durante o século XX.
Talvez as gerações mais novas não conheçam os feitos, e a televisão pública faria um bom trabalho lembrando-os em horário de máxima audiência. Os mesmos telejornais que denunciam alarmados as ocupações de prédios abandonados neste ou aquele outro bairro das nossas cidades, deveriam contar como os engenheiros e os polícias foram chegando às paróquias situadas nos vales mais férteis das bacias do Minho e do Sil, para expulsarem as famílias das casas e das terras que vertebravam as suas vidas. Não foi algo muito diferente do que as madeireiras fazem ainda hoje com os povos da Amazónia: a sociedade industrial necessitava enormes quantidades de energia, e uma turbina hidroelétrica bem valia o sacrifício das vidas labregas destruídas e os ecossistemas sepultados. Valendo-se de uma ditadura (contam-se com os dedos de uma mão os países que se industrializaram “democraticamente”) e sem qualquer coisa parecida a um estudo de impacto ambiental, a vizinhança foi despejada e os vales foram anegados para que a modernidade espanhola se abrisse caminho.
O sacrifício idólatra daquelas comunidades em troca do prometido paraíso industrial não se levou a cabo sem oposição, e sim com extrema violência. Hoje seria ilegal, e é de justiça que nalgum momento uma lei de memória reconheça como vítimas do franquismo todas aquelas famílias cujas vidas foram condenadas no fundo das barragens. O nacionalismo galego contemporâneo arraigou na sociedade fazendo-se valedor do povo nalgumas dessas luitas contra a industrialização, que a esquerda obreirista e a direita capitalista abraçavam eufóricas. A modernidade estabeleceu-se pola força, e aquele movimento incipiente teve a lucidez de perceber que o que Espanha afogava baixo as águas (como o que expulsava dos montes comunais roubados, ou fendia e asfaltava com a Autoestrada do Atlântico) era a alma mesma da nação, que agora se nos aparece em forma de fantasma, ou de monstro do lago Ness. Como esses cadáveres que os mafiosos dos filmes afundem atados a umha pedra, a história, a cultura, a identidade e as vidas arrasadas da Galiza indígena emergem cada vez que há seca, clamando para que o crime não seja esquecido.