Em final de janeiro falecia Domingos Merino, primeiro alcalde da Corunha após o franquismo. Dizia Xurxo Souto que “para os setores instalados no poder era um ser estranho, um elemento a bater porque representava a Corunha mais popular, mais criativa e mais culta”. Com certeza, Merino, como Xurxo Souto, e como tantos outros personagens corunheses, saem dessa outra Corunha que foi desterrada do relato oficial do franquismo e o vazquismo. Umha Corunha latejante, tabernária, cascarilheira, que bate com a imagem “provinciana, cinzenta e um tanto elitista” que tanto calhou em parte dos seus habitantes e da Galiza toda.
Muitas som as vozes que levam anos reivindicando o relato dessa outra Corunha, e parece que nos últimos meses está mais na agenda do que nunca. Diversas iniciativas culturais e sociais estám a pôr mais forças nesta recuperaçom da memória da cidade, já nom tanto como umha lembrança etnográfica, senom como umha construçom político-identitária; com capacidade para achegar informaçons marginadas do passado e fazer-nos compreender melhor o presente.
Ángeles Huerta, “otimista incurável”, afirma que “mesmo que se nos despojara da nossa memória toda, vai haver gente depositária dela”. Diretora do premiado documentário Esquece Monelos, um dos grandes fitos na recuperaçom da memória coletiva, fala-nos dessa outra Corunha oculta, os passados borrados, e as vozes que nunca podes acabar de calar.
Tés comentado que o processo do documentário che fijo chegar ao conceito do “rio agachado”, um conceito mais político que a metáfora do rio como memória com a que começaste. Mas, por que Corunha agacha um rio?
Monelos sepultou-se porque era umha cousa de pobres, nom se entende sem esse discurso de classe. É a pura representaçom das vozes baixas, que diria Manolo Rivas. Povoavam-no mulheres, sobretudo lavandeiras, ciganos, e gente de classe baixa. Essas três circunstâncias provocam um triplo interesse para o seu ocultamento. Os senhores que governavam a cidade e as suas donas nem lavavam no rio nem o viviam como outros habitantes.
"O rio Monelos povoavam-no mulheres, sobretudo lavandeiras, ciganos e pessoas de classe baixa. Essas três circunstâncias provocam um triplo interesse para o seu ocultamento"
Olhando esta e outras intervençons urbanísticas parece haver umha Corunha popular da qual se tentou apagar o seu relato por toda a parte…
É. Na estreia do documentário no Rosalia de Castro, umha vizinha de Monelos, que mora dentro dessa zona tam castigada a nível urbanístico, dixo: “o filme mui bem, mas porque quitades Corunha feia?”. Há vizinhança, vítima dessa configuraçom de cidade que margina as suas formas de vida e a sua memória, à que lhe estranha nom ver o relato oficial. Tenhem claro qual é a imagem da cidade, embora nom ser a que habitam eles. A grande vitória do vazquismo – ainda que é provável que venha de antes- é que o moçote da Agra do Orçám reproduza o mesmo discurso que Paco Vázquez, que sonhe a mesma Corunha. Mas, como no rio, cimentas, recebas, mas a memória sempre acaba enchendo e agromando. Porque esse outro relato está aí, apesar de que à gente de fora da Corunha ainda lhe siga a surpreender.
Nas entrevistas desenterras toda umha cheia de lembranças. Tinham as pessoas ganas de falar disto ou percebeste que fora um tabu?
A gente tem muita mais gana de falar da que por vezes pensamos. Temos medo a achegar-nos aos demais e importunar, e na cultura galega sodes especialmente cuidadosas nisso. Só percebemos desconfiança ao começo nos ciganos, totalmente compreensível, porque temem ser cousificados. Ainda que claramente o discurso de fundo do projeto nom era o seu, os entrevistados de classes dominantes nom se cortárom nada, suponho que pensavam “como no voy a estar yo en una película?”. As conversas com as mulheres fôrom do mais emocionante, porque falavam das suas histórias de vida. Levam toda a vida na cozinha e querem falar; tem muito poder que sejam elas quem contem a sua história. Vam à essência da sua dor, que é também umha dor universal.
"Poderia fazer-se outro documentário baseado só nos movimentos da comunidade cigana na cidade, como reverso das operaçons urbanísticas"
Impressionam também muito as cenas ciganas. O que descobriste da sua cultura e da cidade com pessoas como Bienvenido?
O que redondeia o filme é o diálogo com os ciganos, algo que nós nom tínhamos previsto ao começar. Poderia fazer-se outro documentário baseado só nos movimentos da comunidade cigana na cidade, como reverso das operaçons urbanísticas. É a história do bairro das Flores, Sam Diego, a Cubela, Penamoa. As pessoas das Ranhas som “as que tivérom sorte”, porque tinham algum colega paio que os representassem para poder pagar o crédito. A muitos níveis, estavam antes mais integrados graças ao trabalho: Bienvenido contava como ia trabalhar à estiva com paios, e ao remate da jornada iam tomar os vinhos. Acho que se estám a fazer avanços no desmantelamento dos assentamentos, o repto é reintegrá-los no tecido da cidade. O que lhe quita a vida a Bienvendio é pensar ter os filhos em bairros distintos; os vínculos familiares som sagrados.
O rio Monelos finaliza em Sam Diego, umha zona que também se transformará muito nos próximos anos com a liberaçom dos terrenos do porto. Como vizinha da Corunha, que erros nom queres que se volvam cometer?
Para mim o básico é que nom se borrem as cousas como se nunca tiveram existido, e que nom se perda o ecossistema humano. Penso em que era a Palhoça nom há tanto, a praia das Canhas, o castelo de Sam Diego… e dá-me muita impotência. Nom estou a falar dum canto naïf contra o progresso; mas de que os vínculos sociais sejam substituídos por outros, que mesmo podam melhorar em termos de justiça social, riqueza humana, diversidade. Mas nom asfalto, carros e capital. Na Alemanha os centros históricos estám tam belos como mortos. Preocupa-me que as cidades nos encapsulem e isolem cada vez mais.
Algumhas iniciativas recentes sobre a memória da cidade
- A Caixa da memória, promovido polo grupo de investigaçom universitário Hispona. No seu ciclo de conferências debatêrom açons que se podem realizar na cidade para vencelhar passado e presente de forma acessível para a cidadania.
- Histórias da Corunha. A memória da cidade, da A.C. Alexandre Bóveda e AS-PG. Com conversas sobre as transformaçons urbanas e os movimentos obreiros e galeguistas.
- Pantasmas de Oza, da AAVV de Oza, Gaiteira e Os Castros. Incluiu umha Festa da Memória, recompilaçom de fotografias antigas, obradoiros com adolescentes, entre outras atividades. Na mesma zona contam também com o projeto Remexendo. Revivindo a memoria da xente de Oza.
- Corunha Rebelde, no marco de Corunha Digital, com laboratório transmédia para recuperar e catalogar material presente na rede e fazer um repositório em código aberto.