Periódico galego de informaçom crítica

O trabalho penitenciário a revista

por
ima­gen his­tó­rica dos ta­lhe­res de car­pin­ta­ria no Penal de El Dueso (Santonha, Cantábria).

Antecedentes his­tó­ri­cos: a re­den­ção de pe­nas por trabalho

Eu acho que há, no caso da Espanha, dois ti­pos de cri­mi­no­sos; os que cha­ma­ría­mos de cri­mi­no­sos tei­mu­dos, sem re­den­ção pos­sí­vel den­tro da or­dem hu­mana, e os ca­pa­zes de sin­cero ar­re­pen­di­mento, os re­di­mí­veis, os adap­tá­veis à vida so­cial e ao pa­tri­o­tismo. Quanto aos pri­mei­ros não de­vem vol­tar a so­ci­e­dade […]. Quanto aos se­gun­dos, é a nossa obriga dis­por as coi­sas de forma que fa­ça­mos pos­sí­vel a sua re­den­ção atra­vés do tra­ba­lho. Isto im­plica uma pro­funda trans­for­ma­ção do sis­tema pe­nal, do que eu aguardo muito. A re­den­ção pelo tra­ba­lho pa­rece-me que res­ponde a um con­ceito pro­fun­da­mente cris­tão e a uma ori­en­ta­ção so­cial irrepreensível”.

Com es­tas pa­la­vras in­tro­du­zia o ge­ne­ral Franco já na al­tura de ja­neiro de 1939 o nú­cleo do pro­grama pe­ni­ten­ciá­rio do re­gime. A pe­dra de to­que desse pro­grama foi o sis­tema de “Redención de Penas por el Trabajo”, que se ba­se­ava por sua vez em qua­tro pi­a­res económicos. 

Em pri­meiro lu­gar, uma re­mu­ne­ra­ção exí­gua do tra­ba­lho, de forma tal que a diá­ria ti­nha de ser, por re­gra ge­ral, “de duas pe­se­tas por dia, das quais será re­ser­vada uma pe­seta com cin­quenta cên­ti­mos para a ma­nu­ten­ção do in­te­res­sado” (ar­tigo 3º, Decreto 281 de 28 de maio de 1937). Quer di­zer, tra­tava-se duma re­tri­bui­ção que era des­ti­nada prin­ci­pal­mente a en­fren­tar as des­pe­sas car­ce­rá­rias, pro­cu­rando as­sim que as pri­sões fos­sem au­to­fi­nan­ci­a­das. No en­ten­der dum dos mai­o­res ideó­lo­gos do sis­tema, Pérez del Pulgar: “se al­guém tem de ser sus­ten­tado pela pú­blica be­ne­fi­cên­cia sem tra­ba­lhar, mais justo se­ria que fosse o ope­rá­rio li­vre que não tem co­me­tido de­lito ne­nhum e que o pe­nado tra­ba­lhasse por ambos”.

Durante o fran­quismo, nu­me­ro­sas em­pre­sas pú­bli­cas e pri­va­das be­ne­fi­ci­a­ram di­re­ta­mente do tra­ba­lho es­cravo nas pri­sões, mas tam­bém a igreja ca­tó­lica, o es­tado e a Falange

Além disso, e em se­gundo lu­gar, tam­bém não se pro­cu­rava que o ope­ra­ri­ado li­vre ti­rasse par­tido da si­tu­a­ção, mas pelo con­trá­rio. Assim, a re­gu­la­ção da re­tri­bui­ção diá­ria do ope­ra­ri­ado preso vi­nha li­mi­tada por uma ar­bi­trá­ria cons­tri­ção: a diá­ria de­via ser ne­ces­sa­ri­a­mente me­nor do que “el jor­nal me­dio de un bra­cero de la lo­ca­li­dad”. Desse jeito, pro­cu­rava-se pôr em jogo um efeito dis­ci­pli­nar so­bre o ope­ra­ri­ado li­vre, blo­que­ando a sua ca­pa­ci­dade ne­go­ci­a­dora  –como exi­gir me­lho­res con­di­ções se há mi­lha­res que tra­ba­lham sob pi­o­res con­di­ções e por me­nos sa­lá­rio?– e con­se­quen­te­mente bai­xando ar­ti­fi­ci­al­mente o preço do seu sa­lá­rio, de forma a ga­ran­tir o en­ri­que­ci­mento eco­nó­mico da burguesia. 

Em ter­ceiro lu­gar, o sis­tema ca­rac­te­ri­zava-se pela pos­si­bi­li­dade de o es­tado e as em­pre­sas pri­va­das ar­ren­da­rem o tra­ba­lho das pes­soas pre­sas. Este foi um pre­sente do re­gime ao grande em­pre­sa­ri­ado es­pa­nhol que, en­car­re­gado da re­cons­tru­ção das in­fra­es­tru­tu­ras es­ta­du­ais com fi­nan­ci­a­mento pú­blico, con­se­guiu as­sim pou­par o gasto em mão de obra. Foram nu­me­ro­sas as em­pre­sas pú­bli­cas e pri­va­das que be­ne­fi­ci­a­ram di­re­ta­mente do tra­ba­lho es­cravo. Entre elas, as an­te­ces­so­ras de OHL, Acciona, Dragados ou ACS. Mas tam­bém par­ti­ci­pa­ram da ex­plo­ra­ção a igreja ca­tó­lica, o es­tado e a Falange.

Pôde-se ainda re­fe­rir que exis­tiam uma se­rie de es­tí­mu­los ex­tra-la­bo­rais para in­cen­ti­var o ope­ra­ri­ado preso a tra­ba­lhar, como a re­du­ção de pe­nas ou a me­lhora pro­gres­siva das con­di­ções in­di­vi­du­ais de de­ten­ção, que ti­nham tam­bém im­por­tân­cia eco­nó­mica. Contudo, ca­mi­nho de 90 anos de­pois do es­ta­be­le­ci­mento do sis­tema de re­den­ção de pe­nas, sob um ou­tro re­gime po­lí­tico e com ou­tro va­lo­res e ideias so­bre a pri­são, cum­pre per­gun­tar-se: Estão ainda em vi­gor em re­la­ção ao tra­ba­lho das pes­soas pre­sas os ob­je­ti­vos de auto-fi­nan­ci­a­mento do sis­tema pe­ni­ten­ciá­rio, dis­ci­pli­na­mento da força de tra­ba­lho li­vre e for­ne­ci­mento de tra­ba­lho ba­rato ao grande capital?

A si­tu­a­ção atual do tra­ba­lho nas pri­sões: a regulação 

A pe­dra an­gu­lar da re­gu­la­ção ju­rí­dica do sis­tema vem na pró­pria cons­ti­tui­ção es­pa­nhola. Em li­nhas ge­rais, o ar­tigo 25 ins­ti­tui como di­reito fun­da­men­tal a proi­bi­ção dos tra­ba­lhos for­ça­dos e enun­cia que as pes­soas con­de­na­das te­rão “di­reito a um tra­ba­lho re­mu­ne­rado e aos be­ne­fí­cios cor­res­pon­den­tes da Segurança Social”. A Lei or­gâ­nica ge­ral pe­ni­ten­ciá­ria de 1979, que foi, em certa forma, o re­sul­tado da luta das pes­soas pre­sas da­que­les anos, acres­centa que o tra­ba­lho na pri­são não aten­tará con­tra a dig­ni­dade da pes­soa in­terna, que a re­tri­bui­ção será con­forme com o ren­di­mento, a ca­te­go­ria pro­fis­si­o­nal e a classe de ati­vi­dade de­sen­vol­vida e que o tra­ba­lho não será su­bor­di­nado ao atin­gi­mento de in­te­res­ses eco­nó­mi­cos pela Administração. 

Contudo, o tra­ba­lho é con­fi­gu­rado para as pes­soas pre­sas como um de­ver, tanto na lei or­gâ­nica como no re­gu­la­mento que a de­sen­volve, de 1976. Além disso, é pro­ble­má­tico de­ter­mi­nar se as pes­soas pre­sas têm di­reito a se sin­di­ca­rem e a fa­ze­rem greve. Na re­a­li­dade, trata-se de di­rei­tos fun­da­men­tais que ne­nhuma norma ju­rí­dica li­mita para as pes­soas pre­sas, o qual leva a con­cluir que a pri­va­ção de li­ber­dade não os faz per­der. Ora bem, nem é co­nhe­cida ne­nhuma sec­ção sin­di­cal de pes­soas pre­sas, nem é clara a pos­si­bi­li­dade de fa­ze­rem greve, se se tem em conta o re­gime dis­ci­pli­nar que rege nas pri­sões. Com efeito, tal re­gime dis­ci­pli­nar proíbe e cas­tiga a re­a­li­za­ção e con­vo­ca­tó­ria de plan­tes –quer di­zer, o aban­dono das ta­re­fas ha­bi­tu­ais– e a re­sis­tên­cia e de­so­be­di­ên­cia às or­dens das au­to­ri­da­des penitenciárias.

As pes­soas pre­sas têm di­reito a ne­go­ci­a­rem os seus di­rei­tos la­bo­rais, mas não po­dem con­tar com os ins­tru­men­tos de ne­go­ci­a­ção co­le­tiva re­co­nhe­ci­dos às pes­soas que es­tão em liberdade

O mais que vem re­co­nhe­cer a le­gis­la­ção pe­ni­ten­ciá­ria é que “a ad­mi­nis­tra­ção es­ti­mu­lará a par­ti­ci­pa­ção dos in­ter­nos na or­ga­ni­za­ção e na pla­ni­fi­ca­ção do tra­ba­lho” e, no re­gu­la­mento que es­ta­be­lece a re­gu­la­ção da re­la­ção la­bo­ral pe­ni­ten­ciá­ria diz-se que as pes­soas pre­sas po­de­rão par­ti­ci­par for­mu­lando pro­pos­tas para a fi­xa­ção anual do mó­dulo re­tri­bu­tivo”, quer di­zer, do seu sa­lá­rio. Em re­sumo, é re­co­nhe­cido o di­reito a ne­go­ci­a­rem os seus di­rei­tos la­bo­rais, mas em tais ne­go­ci­a­ções as pes­soas pre­sas não po­dem con­tar com os ins­tru­men­tos de ne­go­ci­a­ção co­le­tiva re­co­nhe­ci­dos às pes­soas que es­tão em li­ber­dade. O efeito é, por­tanto, uma ca­pa­ci­dade de ne­go­ci­a­ção re­du­zida, agra­vada pelo feito de os pos­tos de tra­ba­lho re­mu­ne­ra­dos se­rem es­cas­sos –de uma po­pu­la­ção pe­ni­ten­ciá­ria de perto de 60000 pes­soas, me­nos de 13000 têm tra­ba­lho re­mu­ne­rado– com o qual não é fá­cil con­tar com um.

A si­tu­a­ção atual do tra­ba­lho nas pri­sões: os efeitos

Tal ca­pa­ci­dade de ne­go­ci­a­ção re­du­zida re­flete-se nas con­di­ções la­bo­rais. Assim, os da­dos dis­po­ní­veis so­bre a re­mu­ne­ra­ção das pes­soas tra­ba­lha­do­ras pri­va­das de li­ber­dade in­di­cam que é muito es­cassa. E, se bem que o real-de­creto 782/2001 es­ta­be­lece que “será to­mado como re­fe­rên­cia o sa­lá­rio mí­nimo in­ter­pro­fis­si­o­nal vi­gente em cada mo­mento”, sa­be­mos que a re­mu­ne­ra­ção para o ano 2016 os­ci­lava en­tre os 2,61€ bru­tos por hora para quem tra­ba­lhar no eco­no­mato da ca­deia e os 4,51€ bru­tos por hora para os ope­rá­rios su­pe­ri­o­res que de­sen­vol­viam as suas ta­re­fas pro­fis­si­o­nais em obra­doi­ros de ma­deira ou me­tal. Façam contas. 

Os da­dos dis­po­ní­veis so­bre a re­mu­ne­ra­ção das pes­soas tra­ba­lha­do­ras pri­va­das de li­ber­dade in­di­cam que é muito escassa

O or­ga­nismo en­car­re­gado da ges­tão do tra­ba­lho das pes­soas pre­sas é Trabajo pe­ni­ten­ci­a­rio y for­ma­ción para el em­pleo (TPFE), uma en­ti­dade es­ta­tal ad­mi­nis­trada com cri­té­rios em­pre­sa­ri­ais, que no úl­timo exer­cí­cio or­ça­men­tá­rio teve um ba­lance ao seu fa­vor de perto de dois mi­lhões de eu­ros. Contudo, e ape­sar de ter um vo­lume de ne­gó­cio de quase 170 mi­lhões de eu­ros, o TPFE pre­cisa das trans­fe­rên­cias eco­nó­mi­cas do Estado e da UE para po­der en­fren­tar as suas des­pe­sas em ma­te­rial e pes­soal. Assim fica con­tes­tada a pri­meira per­gunta: o sis­tema pe­ni­ten­ciá­rio não se auto-fi­nan­cia na atu­a­li­dade com o tra­ba­lho das pes­soas presas.

Porém, há que sa­li­en­tar que o sis­tema posto em jogo pelo TPFE per­mite ter à dis­po­si­ção dos in­ves­ti­do­res in­te­res­sa­dos em con­tra­tar com ele uns meios de pro­du­ção e uma força pro­du­tiva a baixo custo. Aqueles por­que são em parte ad­qui­ri­dos e man­ti­dos pela pró­pria en­ti­dade pú­blica, esta por­que os sa­lá­rios são mais bai­xos do que para as pes­soas li­vres. Além de mais, tudo isto é con­se­guido com um bai­xís­simo in­ves­ti­mento por parte do es­tado. Esta é a chave do sistema.

ar­turo chomyzsyn

Ora bem, for­nece o tra­ba­lho pe­ni­ten­ciá­rio mão de obra ba­rata para o grande ca­pi­tal? Sem dú­vida. Não há trans­pa­rên­cia ne­nhuma en­quanto aos con­vé­nios en­tre o TPFE e as em­pre­sas, de forma que não se pode sa­ber quan­tas em­pre­sas be­ne­fi­ciam do sis­tema, nem quais são as con­di­ções dos seus con­tra­tos. Mas sabe-se que exis­tem es­pa­ços de tra­ba­lho em quase to­dos os cen­tros pe­ni­ten­ciá­rios –de in­dús­tria têx­til, car­pin­ta­ria, ar­tes grá­fi­cas, pro­du­tos em­ba­la­dos, ele­tró­nica, etc.–, que em 2020 tra­ba­lha­vam perto de 3000 pre­sos pro­du­zindo para em­pre­sas pri­va­das den­tro da pri­são e que em ou­tros es­ta­dos acon­te­cem si­tu­a­ções si­mi­la­res que são am­pla­mente apro­vei­ta­das pelo grande capital.

O sis­tema atual de tra­ba­lho nas pri­sões per­mite ter à dis­po­si­ção dos in­ves­ti­do­res in­te­res­sa­dos uns meios de pro­du­ção e uma força pro­du­tiva a baixo custo

E este sis­tema serve para dis­ci­pli­nar tam­bém os tra­ba­lha­do­res li­vres? Se bem que a mag­ni­tude de tra­ba­lha­do­ras e tra­ba­lha­do­res pre­sos é pe­quena –so­bre­tudo em com­pa­ra­ção com ou­tros es­ta­dos, no­me­a­da­mente os EUA– e, por­tanto, não al­cança a ter gran­des efei­tos no ope­ra­ri­ado li­vre, sim acon­tece que, se­gundo tem de­nun­ci­ado CC.OO, têm-se dado ca­sos em que as em­pre­sas que tra­ba­lham em pri­sões, ao mesmo tempo que con­tra­ta­vam a cus­tes in­ter­nos muito bai­xos, le­va­vam ao cabo ERE fora de prisão.

Em sín­tese, o tra­ba­lho na pri­são se­gue a ba­sear-se na ex­plo­ra­ção das pes­soas pre­sas, que re­ce­bem um sa­lá­rio mi­se­rá­vel e ca­re­cem de di­rei­tos la­bo­rais, mas nem tão só são as pes­soas pre­sas afe­ta­das por esta si­tu­a­ção in­justa, se­não tam­bém o ope­ra­ri­ado li­vre, que vê di­mi­nuí­dos os seus di­rei­tos la­bo­rais. E, com cer­teza, os gran­des ga­nha­do­res do sis­tema con­ti­nuam a ser o grande ca­pi­tal e o sis­tema penitenciário.

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